"Estou cansado de estar sozinho". Há idosos a contar os dias para estrear novo lar em Fernão Ferro

A oferta de lares para idosos em Portugal está muito aquém das necessidades. Para ajudar a combater o problema, há municípios — poucos — onde se tenta dar uma resposta que devia ser garantida pelo Estado central. Em Fernão Ferro, no Seixal, Eugénio vendeu a casa, ansioso por ir para o novo lar, mas a obra atrasou e obrigou-o a alugar um anexo por 500 euros.

10 out, 2025 - 07:45 • João Cunha (reportagem) , Beatriz Pereira (imagem e edição) , Lara Castro (edição)



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Só falta mesmo cumprir algumas burocracias, ligadas ao fornecimento de energia, para que abra portas o recém-inaugurado Lar Nossa Senhora da Boa Hora, da Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos de Fernão Ferro, no Seixal.

Uma resposta social que promete condições de alojamento e cuidados adequados, bem como serviços domiciliários para quem deseja permanecer no seu lar com acompanhamento profissional.

Joaquim Raposo, presidente da Associação, vê assim cumprido um sonho antigo. “Temos um centro de dia e vejo as dificuldades que as famílias e os próprios utentes têm. Os utentes estão cada vez mais debilitados, cada vez tem menos mobilidade, e por isso achei que era mesmo de uma necessidade extrema fazer-se um lar”, diz, satisfeito, enquanto conduz uma visita guiada às instalações, ainda vazias, mas já totalmente equipadas.

Do hall de entrada do edifício, todo ele térreo, estendem-se, para ambos os lados os corredores de acesso aos quartos e aos gabinetes de apoio. Nas traseiras da receção, a sala de convívio, a cantina e a cozinha industrial de onde, para além das refeições dos utentes do lar, sairão todos os dias as refeições para quem recebe apoio domiciliário.


Liliana Cunha, vereadora com o pelouro do Desenvolvimento Social da Câmara Municipal do Seixal e Joaquim Raposo, presidente da Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos de Fernão Ferro. Foto: Beatriz Pereira/RR
Liliana Cunha, vereadora com o pelouro do Desenvolvimento Social da Câmara Municipal do Seixal e Joaquim Raposo, presidente da Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos de Fernão Ferro. Foto: Beatriz Pereira/RR

“Tinha aqui na cabeça há muito tempo que tinha que ser, que tinha que ser, tínhamos de ter um lar de idosos”, repete Joaquim Raposo. “Falei com a Câmara e começámos a sonhar e a realizar o projeto. A Câmara cedeu-nos o terreno e lá avançámos. Mas não tivemos sorte com o primeiro construtor”, lamenta — declarou falência e a atrasou a conclusão da obra, que já devia estar pronta há alguns anos.

Ainda assim, a Câmara esteve sempre ao lado da Associação. "A Câmara suportou mais de metade do investimento que está aqui", sublinha Joaquim Raposo. Dos quase 5 milhões de investimento, a Câmara deve ter aqui 3 milhões, pelos meus cálculos".

Liliana Cunha, atual vereadora com a pasta da ação social da autarquia do Seixal, esclarece as contas. "Houve um investimento municipal de cerca de 3,2 milhões de euros e um investimento por via dos fundos europeus, e nomeadamente da Segurança Social, de mais 1,3 milhões".

Ao todo, nos últimos quatro anos, houve um investimento em projetos sociais de 44 milhões de euros — sendo que 30 milhões são investimento municipal — em várias respostas sociais como esta, mas não só.

"Estamos a falar de 17 equipamentos novos em termos de respostas sociais no concelho, em termos de estruturas residenciais para pessoas idosas. Construímos agora o lar de Fernão Ferro, está em construção o lar de Casal do Marco e foi apresentado um projeto já para a construção de um lar de Pinhal de Frades", elenca Liliana Cunha, que indica ainda que só a nível da população idosa em estruturas residenciais foram investidos 6 milhões e meio da Câmara Municipal.

"Estamos a falar de equipamentos que rondam os 2,5 milhões de euros cada um, alguns a chegar aos 3 milhões, num investimento que não é comparticipado, é a Câmara Municipal que avança com o investimento".


Equipamento implicou um investimento municipal de cerca de 3,2 milhões de euros, a que se somou 1,3 milhões de euros de fundos europeus e da Segurança Social. Foto: Beatriz Pereira/RR
Equipamento implicou um investimento municipal de cerca de 3,2 milhões de euros, a que se somou 1,3 milhões de euros de fundos europeus e da Segurança Social. Foto: Beatriz Pereira/RR

"Valorizamos a área dos idosos. É um investimento na população, na comunidade", acrescenta a autarca, que lembra ainda que estamos a falar de associações "que vivem do voluntariado dos dirigentes", até porque os acordos que existem com a segurança social, com o centro distrital, "não fazem face às despesas que as valências e as respostas que existem nas associações de reformados merecem".

23% de IVA em obras quando "substituímos o Estado?"

O terreno do novo lar de Nossa Senhora da Boa Hora foi cedido pela autarquia, que suportou quase dois terços do custo total do edifício. A Associação assumiu todos os equipamentos: camas, cadeiras, mesas... "Tudo o que é o recheio", indica Joaquim Raposo, que adianta ainda que todo esse equipamento terá custado cerca de 300 mil euros.

"Foi um esforço grande para a instituição, porque as instituições hoje não têm estes valores. A gente sabe que é muito difícil uma instituição ter positivos de dezenas, quanto mais de centenas".


"Os equipamentos para estas instituições são de centenas de milhares de euros. Não são tostões", sublinha o responsável pelo lar

Acresce a este custo outra despesa, relativa á obra, que o presidente da Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos de Fernão Ferro considera inacreditável.

"Quem é que paga o IVA? Nós pagamos 23% de IVA. Qual é a instituição que pode suportar uma obra de 4 ou 5 milhões de euros e aportar um milhão só de IVA? Ter de pagar ao Estado um imposto pela construção de uma infraestrutura que garante um serviço em que nos substituímos e que estamos a prestar ao Estado? Não se compreende".

Ainda para mais, diz, estando a falar de uma instituição de solidariedade social, onde trabalham voluntários, "porque toda a direção é voluntária, ninguém tem um cêntimo de vencimento".

Câmaras "podiam investir mais nos idosos"

Sem o apoio das autarquias, poucas associações de idosos do país teriam condições para avançar para um projeto deste género. "Não era só a minha, são todas", garante Joaquim Raposo.

"Nenhuma tem condições de fazer uma obra desta envergadura. Nem pouco mais ou menos. A maior parte não tem dinheiro para os equipamentos, quanto mais para fazer uma obra. Porque os equipamentos para estas instituições são de centenas de milhares de euros. Não são tostões".


"Foi um esforço muito grande" para a Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos de Fernão Ferro, sublinha o presidente. Foto: Beatriz Pereira/RR
"Foi um esforço muito grande" para a Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos de Fernão Ferro, sublinha o presidente. Foto: Beatriz Pereira/RR

O presidente da Associação acredita mesmo que haverá muitas instituições que, sem o apoio das autarquias, desistem de pensar sequer numa obra desta envergadura. Por isso, acredita que em outras zonas do país, o exemplo da sua parceria com a autarquia devia ser replicado.

"Sem dúvida nenhuma. Pelo menos onde houvesse mais necessidade. Há cada vez mais idosos isolados, sem ter para onde ir e muitos são sozinhos, não têm sequer familiares. Por isso, devia haver outro acompanhamento e as câmaras cada vez mais podiam investir precisamente nos idosos".


"Temos de garantir lugar a quem possa suportar mais valor, mas também aos que têm menos condições", defende Joaquim Raposo

Liliana Cunha, que não é candidata nestas autárquicas, também considera que "são práticas que podem ser adotadas por outros municípios". "Na área social, cada vez mais, e no contexto em que vivemos, é fundamental criarmos aqui sinergias e estratégias para equilibrar as condições de vida da população, nomeadamente a população mais idosa".

Para ajudar nessa tomada de decisão, Joaquim Raposo deixa mais dados. A Associação vai assinar em breve os acordos com a Segurança Social, que ficará com 20 por cento das camas do lar.

"Corresponde a 12 camas, que ficarão sob gestão da Segurança Social, que põe cá quem quer", explica. Quanto às restantes, "é a instituição que vai gerir as entradas, a autarquia não intervém na gestão".


Como se trata de uma resposta social que devia ser garantida pelo Estado, o valor a receber por cama está previsto nos acordos a estabelecer com a Segurança Social.

"Sei que neste momento, salvo erro, está em 500 e tal ou 600 euros mensais." O presidente da Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos de Fernão Ferro não sabe ainda valores exatos, porque ainda não assinou o acordo. "O que sei é que o cálculo de custo para o utente anda à volta de 1600 euros. Assim, ainda há aqui quase mil euros que têm de ser suportados por alguém".

Vai depender do que cada um puder pagar. Tendo em conta os rendimentos (pensões), o que há é um cálculo entre os que pagam mais e os que pagam menos, de forma a manter a balança equilibrada.

"Temos de saber garantir esse equilíbrio. Garantir lugar a quem possa suportar mais valor, mas também aos que têm menos condições, de forma a darmos acesso a todos", sublinha o responsável pelo equipamento. "Não termos só 'ricos'. Isto tem que servir para todos e tem de haver uma gestão para que sirva para todos", garante Joaquim Raposo, ansioso por abrir portas.

"Por mim, se tudo correr bem, este mês ainda devo ter cá os primeiros utentes. Tenho tudo minimamente preparado para isso. Já tenho as técnicas para vir para aqui, já tenho a secretária, já tenho as pessoas da cozinha... Já estou a pagar salários há três ou quatro meses, porque pensava que isto aqui já estaria pronto", lamenta.

"Já pedi para ser um dos primeiros"

O centro de dia da Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos de Fernão Ferro estava, uma destas manhãs, apinhado. Na cafetaria, movimentada, bebia-se o café, enquanto se olhava para a televisão ou para os jornais desportivos. Os homens falam de bola e as senhoras, mais recatadas, dão dois dedos de conversa, enquanto seguem atentamente a emissão da manhã de uma das televisões nacionais.


Maria da Conceição espera vir a ser uma das primeiras utentes do novo lar de idosos. Foto: Beatriz Pereira/RR
Maria da Conceição espera vir a ser uma das primeiras utentes do novo lar de idosos. Foto: Beatriz Pereira/RR

Na porta para a rua das traseiras, um utente, na casa dos 80, puxa de um cigarro para, como explica, "ajudar à digestão" do café e bolo que acabou de comer.

Numa das mesas está Maria da Conceição Constantino. Não parece, mas tem 91 anos de idade. Ainda que com alguma dificuldade, mantém a mobilidade. E faz questão de garantir que toma banho sozinha.

"Está aí que nem uma alface", diz uma das funcionárias, a caminho da sala de convívio, onde estão cerca de 30 idosos, de olhos postos no écran.

Maria da Conceição Constantino vive em Fernão Ferro e há seis anos — quando, no espaço de três meses, perdeu o marido e o único filho — que é utente do centro de dia.

"Passo aqui todas as manhãs. Ao meio-dia, regresso a casa já com o almocinho, que levo daqui. Tenho aqui a minha manhã de companhia. Que é a única companhia. Tinha semanas que eu não abria a boca".


Espera vir a ser uma das primeiras utentes do novo lar de idosos, onde já esteve várias vezes. "Quando a obra começou, com o primeiro construtor, íamos lá quase todos os dias, quando saíamos aqui da missa. Vi a construir os acessos", lembra, acrescentando que foi nessa altura que decidiu ir para o lar.

"Gosto muito e acho que outras câmaras deviam fazer o mesmo. Devia ser quase uma obrigação. Não peço só para mim, peço tanta gente que está como eu e outros que estarão piores. Há milhares de pessoas que estão à espera e que precisam tanto", reforça.

Atento às palavras de Maria Constantino está Eugénio Gonçalves Martins, que se levanta, com a ajuda de duas canadianas. Tem 84 anos e perdeu uma perna num acidente, há décadas. Também passa as manhãs no centro de dia.

"Estou cansado de estar sozinho. Já vai fazer 15 anos que a minha mulher faleceu e os meus filhos têm a vida deles, não podem estar comigo".


Quando soube da construção do novo lar, Eugénio Martins desfez-se da casa. Mas a obra atrasou e obrigou-o a alugar um anexo por "500 euros por mês". Foto: Beatriz Pereira/RR
Quando soube da construção do novo lar, Eugénio Martins desfez-se da casa. Mas a obra atrasou e obrigou-o a alugar um anexo por "500 euros por mês". Foto: Beatriz Pereira/RR

Há uns anos soube da construção do lar, e não hesitou. "Desfiz-me da minha casinha, mas preferi perder aquilo tudo e ir para o lar, do que estar sozinho e abandonado".

Mas a primeira empresa que devia construir o lar faliu, e assim, com a casa vendida e sem ter para onde ir, teve de arranjar uma alternativa. "De manhã estou por aqui. Mas tive de alugar um quarto, num anexo, em que estou a pagar 500 euros por mês".

Um contratempo que espera ver resolvido em breve.

"Já pedi para ser um dos primeiros a ir para lá. Porque eu não tenho nada que estar a pagar renda, no fim de ter deixado a minha casa. Porque não esperava que o lar abrisse tão tarde. Às vezes nós queremos dar o passo mais largo que a perna... E eu, infelizmente, só tenho uma. Não posso dar o passo muito largo", confessa, rindo desbragadamente.

Talvez ainda este mês seja possível mudar-se de vez para o novo lar. "Eu e outros colegas nossos. É a última casa. Mas também espero que lá esteja muitos anos. 20, 30 ou 40..."

Oferta de lares de idosos só satisfaz 4% das necessidades

A oferta de lares para idosos em Portugal está longe de satisfazer as necessidades da população e os preços estão cada vez mais altos.

O último estudo da plataforma Via Sénior, que abrange 2.700 infraestruturas que representam mais de 105 mil camas, indica que a oferta só satisfaz 4% das necessidades, se tivermos em conta que há 2,5 milhões de pessoas com mais de 65 anos. Se considerarmos a população com mais de 75 anos, aí a cobertura sobe para 8,7%.


“Cerca de 70% das unidades da oferta privada têm 100% de ocupação, portanto, não há vagas", afirma Nuno Saraiva da Ponte, da Via Sénior. Foto: João Cunha/RR
“Cerca de 70% das unidades da oferta privada têm 100% de ocupação, portanto, não há vagas", afirma Nuno Saraiva da Ponte, da Via Sénior. Foto: João Cunha/RR

Em declarações à Renascença, Nuno Saraiva da Ponte, administrador da Via Sénior, sublinha que “cerca de 70% das unidades da oferta privada têm 100% de ocupação, portanto, não há vagas. E 22% têm taxas de ocupação entre os 91% e os 99%".

O mesmo estudo indica que a pressão da procura, associada à melhoria dos serviços prestados, reflete-se também num aumento generalizado dos preços.

Neste momento, Portugal tem um valor médio de alojamento em quarto individual “de cerca de 1700 euros, um quarto duplo à volta de 1400 euros e um triplo à volta de 1300 euros”. Valores que “variam bastante em função da residência em questão e da zona do país, porque podemos ter lares que vão desde os mil e poucos euros até mais de 5 mil euros”.

A taxa de ocupação é mais elevada nos grandes centros urbanos, porque a disponibilidade tem a ver com a relação entre procura e oferta.


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