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Se os abusos sexuais são "terríveis em todo o lado", ainda são piores na Igreja, que deveria ser "o lugar da confiança". É a opinião da teóloga Véronique Margron, que se tornou, nos últimos anos, uma das
principais figuras da luta contra os abusos sexuais na Igreja em França.
A Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja em França estima que pelo menos 216 mil menores terão sido abusados no país por padres e outros membros da Igreja católica, entre 1950 e 2020. A projeção da
Comissão Independente que estudou o fenómeno poderá mesmo ultrapassar
as 330 mil vítimas, se forem tidos em conta os abusos perpetrados por
leigos, como é o caso de catequistas. Os números podem também estar
subestimados, visto que muitas vítimas já terão morrido sem terem
quebrado o silêncio.
Margron preside à Conferência das Religiosas e Religiosos Franceses, que representa vários institutos e congregações católicas. Ouviu centenas de vítimas e viu como a problemática dos abusos traiu "de forma atroz" a confiança dos franceses na Igreja.
Em entrevista à Renascença, conta como o processo de investigação fez mudar a “cultura do silêncio” que imperava, criando condições para as vítimas denunciarem o que calaram durante anos.
Segundo a Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja em França (CIASE) projeta-se que tenham sido abusadas, pelo menos, 216 mil vítimas no seio da Igreja Católica, entre os anos 1950 e 2020.
Segundo a estimativa, os números podem mesmo superar as 330 mil vítimas, se tivermos em conta os membros leigos que trabalhavam em instituições católicas e que também cometeram abusos. No geral, quanto tempo é que as vítimas sofreram em silêncio sem nada denunciarem?
É difícil dizer porque, até essa altura, quase ninguém acreditava nas vítimas. A investigação da CIASE remonta aos anos 1950, e o que nos apercebemos é que houve vítimas que tentaram denunciar nessa altura, mas ninguém acreditou nelas.
Há também o fenómeno traumático que faz com que as vítimas falem cinco, 10, 20 ou 30 anos mais tarde, por exemplo, quando os pais morrem e já não têm medo de os magoar. Este sentimento juntou-se ao fenómeno da Omertá (silêncio) na Igreja. De toda a maneira, a sua palavra não era ouvida.
A cultura do silêncio perdurou durante vários anos. Do seu ponto de vista, o que é que levou as vítimas a falar?
Do meu ponto de vista, as vítimas falaram por duas razões. Em primeiro lugar, devido a um fenómeno social: a França e, talvez, Portugal, foram marcados pelo movimento “Me Too” (que começou em 2017 nas redes sociais, contra agressões sexuais); as vítimas começaram a falar dos abusos, quer no trabalho, no seio da família ou até mesmo nas instituições. Isso ajudou.
"França e Portugal foram marcados pelo movimento “Me Too”. As vítimas começaram a falar dos abusos, quer no trabalho, no seio da família ou até mesmo nas instituições. Isso ajudou."
Depois, houve também um grande escândalo em França, na cidade de Lyon. Um padre, Bernard Preynat, antigo capelão dos escuteiros, fez muitas, muitas vítimas, que tiveram depois a sorte e a coragem de se reunir por vontade própria. Trata-se do primeiro coletivo de vítimas que teve uma voz mediática, o que ajudou muitas outras pessoas que passaram pela mesma situação a começar a falar.
Na sua opinião, porque é que as vítimas sofreram tanto tempo sem falar sobre o assunto?
É um fenómeno complexo. Há, desde logo, a vergonha. No fundo, na violência sexual, é a vítima que tem vergonha e não o agressor. Tragicamente, existe este sentimento de vergonha.
Depois, pensam que não vão acreditar nelas. Um inquérito do Instituto Nacional de Saúde e Investigação Médica, no âmbito do relatório CIASE, mostra que uma em duas vítimas tentou denunciar, por vezes logo após os crimes terem sido cometidos, mas ninguém acreditou nelas. Portanto, quando as vítimas dizem algo tão íntimo e, também terrível, e não acreditam nelas, acabam por calar-se durante décadas.
Existe ainda o fenómeno, agora bastante conhecido, da memória dissociativa. O que as vítimas sofreram é de tal forma traumático que a única forma de prosseguirem com as suas vidas é enterrar o assunto.
"O que as vítimas sofreram é de tal forma traumático que a única forma de prosseguirem com as suas vidas é enterrar o assunto."
O escritor jesuíta, e grande intelectual, Patrick Goujon conta no livro “Prière de ne pas abuser” (“Por favor, não abusar”) que se lembra de ter sido abusado por um padre 45 anos antes, quando tinha quatro anos. A sua memória foi completamente apagada ou, pelo menos, a sua primeira memória [de infância] apagou totalmente estes episódios.
E o que é que pode ser feito para ajudar as vítimas a falar?
Acima de tudo, ouvi-las, acreditar nelas e estarmos atentos aos pequenos sinais. Isto é estar atento quando as pessoas não estão bem, um pouco como se faz noutras situações, como nos casos das crianças que são vítimas de incesto.
Quanto mais se tenta estar atento, mais se ajuda as vítimas a falar. É importante formar as pessoas na igreja, dizer-lhes que esses gestos errados de um padre, não são simplesmente ‘gestos inapropriados’, são abusos.
É todo um conjunto de coisas: a formação, a informação, o consciencializar de que o padre não é uma personagem sagrada, e que se ele faz algo de escandaloso, deve ser submetido à lei, como qualquer outra pessoa.