Instituições da Igreja alertam: preço das casas está a atirar mais pessoas para a rua

A dificuldade de acesso à habitação é fator de exclusão social e há cada vez mais pessoas em situação de sem-abrigo que até trabalham, mas não ganham o suficiente para se sustentar. Reportagem junto de várias instituições da Igreja que atuam em bairros da Grande Lisboa.

18 dez, 2024 - 06:56 • Ângela Roque , Ana Catarina André , Alexandre Abrantes Neves



Instituições da Igreja alertam: preço das casas está a atirar mais pessoas para a rua. Ouça a reportagem
Instituições da Igreja alertam: preço das casas está a atirar mais pessoas para a rua. Ouça a reportagem

Carlos Nunes tem 62 anos. Aos 59 a pandemia obrigou-o a fechar a agência de viagens que tinha em Lisboa, e foi viver para Setúbal. Sem trabalho, começou por pedir apoio alimentar à Cáritas diocesana. Quando o dinheiro acabou, viu-se obrigado a dormir ao relento.

“Foi muito difícil. É traumático”, conta em entrevista à Renascença, onde fala da fome, do frio e do medo que sentiu.

A 1 de abril de 2021, conseguiu uma vaga num dos apartamentos partilhados da Cáritas de Setúbal, onde trabalha como segurança há apenas um mês, depois de um período de formação.

Dezembro trouxe-lhe o primeiro ordenado em anos, que recebeu com muita alegria, apesar de ser ainda curto. “Foram só aqueles diazinhos, comecei a 16 de novembro”, conta.

Sem conseguir, para já, autonomizar-se em termos de habitação, porque as rendas em Setúbal estão “exorbitantes”, agradece ao presidente da Cáritas não ter desistido de o ajudar. O mais importante é trabalhar, diz. “Para quem cai na rua ou no desemprego, a melhor solução é o regresso à vida ativa, porque isto é que nos cria rotinas e nos dá vontade de continuar”. E essa vontade nunca a perdeu.


Carlos Nunes ao lado do presidente da Cáritas Diocesana de Setúbal, Paulo Cruz. Foto: Beatriz Pereira/RR
Carlos Nunes ao lado do presidente da Cáritas Diocesana de Setúbal, Paulo Cruz. Foto: Beatriz Pereira/RR

Cáritas Setúbal. “Já temos 32 sem-abrigo a trabalhar, mas ainda a dormir na rua”

A recuperação de Carlos Nunes só foi possível graças à ação da Cáritas de Setúbal. Para o presidente da instituição, Paulo Cruz, o foco da ajuda tem de ser acabar com a pobreza, e não o perpetuar destas situações. “Sou apologista de que não devemos alimentar a pobreza, mas sim erradicá-la, e este é um testemunho que me agrada muito, o que o Sr. Carlos deu aqui”, porque “prova que é possível”.

À Renascença, Paulo Cruz confirma que houve um “aumento exponencial” das pessoas em situação de sem-abrigo em Setúbal, como prova o número de refeições que a Cáritas diocesana distribui por esta população. “Há três anos dávamos 80 mil refeições, há dois anos 100 mil, o ano passado 135 mil refeições e neste momento já vamos com 142 mil! Só a esta população.”

No concelho de Setúbal estão a apoiar 216 pessoas em situação de sem abrigo, mas no distrito são 482, e o perfil já mudou. “Hoje só 30% das pessoas que apoiamos no concelho de Setúbal é que são do distrito.  Os outros 50% são do resto do país e 20% vêm de fora do país.”

A Cáritas não tem camas suficientes para tanta procura e os preços das casas em Setúbal estão a ficar inacessíveis para boa parte da população. É a crise da habitação que está a levar mais pessoas para a rua.

Conta que para além de uma camarata, com 16 camas, nos últimos dois anos conseguiram “triplicar o número de camas, com o projeto protocolado com a Segurança Social de apartamentos partilhados, mas quem paga os apartamentos somos nós”, revela.

“Já temos cinco apartamentos partilhados e cinco de Housing First. No total já temos 43 camas, mas não chega, como é óbvio”. Isto para além das nove camas que também têm para mães e grávidas desprotegidas.

“A especulação imobiliária que existe neste momento não dá para quase nenhum habitante. E o que é que está a acontecer? Está a aparecer os sem abrigo com emprego”.


Presidente da Cáritas de Setúbal confirma que houve um “aumento exponencial” das pessoas em situação de sem-abrigo no concelho. Foto: Beatriz Pereira/RR
Presidente da Cáritas de Setúbal confirma que houve um “aumento exponencial” das pessoas em situação de sem-abrigo no concelho. Foto: Beatriz Pereira/RR

Considera, por isso, fundamental “a Segurança Social, o Estado Central, apostar na prevenção”, para evitar que “pessoas como o senhor Carlos acabem a viver na rua”.

Mas, para que tudo funcione, tem de haver disponibilidade dos técnicos. “Não podemos estar fechados, qualquer situação que nos apareça é para trabalhar, seja à meia-noite, seja à uma da manhã”. E é por isso que desde dia 12 de dezembro a Cáritas de Setúbal tem um Serviço de Piquete 24h, para situações de emergência relacionadas com os sem abrigo, com distribuição de sacos cama, chá e café. Para dia 23 de dezembro está a ser preparado um jantar de Natal.

Pastoral Social. “As áreas de intervenção mudaram”

Em todo o país há mais de 6500 instituições solidárias ligadas à Igreja Católica, incluindo 388 misericórdias. Em 4361 paróquias existe alguma obra social, sendo que em 1500 há centros sociais paroquiais com valências diversas.

O trabalho das instituições solidárias ligadas à Igreja tem-se revelado fundamental. Do apoio alimentar à compra de medicamentos, passando pelo trabalho educativo com comunidades mais desfavorecidas, são muitas vezes o único garante de sobrevivência e reintegração social.


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No Patriarcado de Lisboa há 200 instituições e projetos da Igreja a trabalhar em áreas como a educação, a saúde e o apoio alimentar e social. À Renascença, o diretor do Departamento da Pastoral Socio-Caritativa e da Pastoral Social explica que nos últimos anos têm surgido novas necessidades de apoio. É o caso dos migrantes, mas não só. Manuel Girão fala dos mais velhos, das pessoas com problemas de saúde mental e até dos jovens.

“Falo de jovens adultos. Tem a ver com o apoio a esta geração no que diz respeito à necessidade que eles têm de criar família e ter autonomia. É algo que nos tem preocupado e é uma nova realidade também, [para a qual] temos de olhar”, afirma.

Outra nova realidade apontada por Manuel Girão é a saúde mental. “É uma realidade que nos bate à porta a todos e temos de estar atentos. Há 20, 30, 40 anos, quando estas instituições foram criadas, não eram áreas de intervenção e, hoje em dia, têm de ser vistas.”

Outro fator é "a questão da terceira idade”, relacionada com a "solidão”. “Cada vez temos mais pessoas idosas a viver isoladas, nota.

A sustentabilidade das instituições sociais continua a ser uma preocupação, sobretudo por causa dos custos com pessoal. “Os custos sobem todos os anos, principalmente os custos com os salários, porque cada vez mais – e ainda bem – os salários têm vindo a aumentar, mas com a agravante de que as instituições muitas vezes não conseguem acompanhar essa subida”, lamenta Manuel Girão.


Cáritas de Setúbal iniciou a 12 de Dezembro um serviço de piquete 24h para apoio e emergência aos sem-abrigo. Foto: Cáritas de Setúbal
Cáritas de Setúbal iniciou a 12 de Dezembro um serviço de piquete 24h para apoio e emergência aos sem-abrigo. Foto: Cáritas de Setúbal
Foram distribuídos sacos cama, chá e café. As equipas informaram a população sem-abrigo de que haverá jantar de Natal a 23 de dezembro. Foto: Cáritas de Setúbal
Foram distribuídos sacos cama, chá e café. As equipas informaram a população sem-abrigo de que haverá jantar de Natal a 23 de dezembro. Foto: Cáritas de Setúbal


Situações mais críticas são encaminhadas para tratamento e acompanhamento. Foto: Cáritas de Setúbal
Situações mais críticas são encaminhadas para tratamento e acompanhamento. Foto: Cáritas de Setúbal

“Cada vez mais, também, estas instituições têm de ter especialistas, ou seja, têm de ter técnicos superiores, equipas multidisciplinares para conseguir dar resposta aos desafios e isso, de facto, é a grande dificuldade. São os custos com os recursos humanos e que depois se agrava quando há a falta dos mesmos. A partir do momento que temos falta de enfermeiros, de educadores, de professores, de médicos, o que acontece é que o custo destes profissionais é mais elevado e esse tem sido o grande desafio, a sustentabilidade das organizações sociais.”

O diretor do Departamento da Pastoral Socio-Caritativa e da Pastoral Social refere também a crise na habitação como fator prejudicial ao trabalho das instituições – e dos seus funcionários. Mesmo quando conseguem encontrar o colaborador ideal, nem sempre o conseguem contratar.

“Não conseguimos depois que ele trabalhe connosco, porque não tem uma habitação – ou tem uma habitação, mas não a consegue pagar. Essa também tem sido uma grande lacuna, [sobre a qual] as instituições sociais da Igreja têm vindo a refletir, que é: como é que poderemos ser parte da solução nesta matéria? Eventualmente através da criação de programas que vão ao encontro da criação de habitação a custos controlados ou de renda acessível”, sugere.

“Os idosos, do pouco que têm, ainda partilham connosco”

Na igreja de Nossa Senhora da Lapa, na Falagueira (Amadora), um grupo de voluntários assegura, há 12 anos, apoio socio caritativo à população carenciada. São ‘Os Samaritanos’, ligados à Cáritas paroquial.  Luísa Dias Ferreira faz as honras da casa. “Sou voluntária desde o início. Já trabalhava na catequese, mas depois dediquei-me essencialmente aos Samaritanos”, começa por contar.


Luisa Dias Ferreira distribui roupa e cabazes de alimentos não perecíveis junto da população da Falagueira, Amadora. Faz parte do grupo de voluntários ‘Os Samaritanos’. Foto: Ângela Roque/RR
Luisa Dias Ferreira distribui roupa e cabazes de alimentos não perecíveis junto da população da Falagueira, Amadora. Faz parte do grupo de voluntários ‘Os Samaritanos’. Foto: Ângela Roque/RR

A paróquia apoia perto de 200 pessoas, embora algumas só apareçam às vezes. Distribuem roupa e cabazes de alimentos não perecíveis. “Às terças-feiras venho cá e atendo as pessoas que procuram a nossa ajuda. Recebemos fundamentalmente da paróquia, que é impecável. Os idosos, do pouco que têm, ainda partilham connosco.”

Entre os que procuram ajuda há também muitos idosos que vivem sozinhos famílias com vários filhos e cada vez mais imigrantes, porque também no concelho da Amadora o preço das casas já é um problema grave. “Uma casa na Amadora, de duas assoalhadas, é capaz de custar 600 euros. Ainda ontem tivemos um caso aqui de uma pessoa que se fartou de chorar, precisava para a prestação da casa. Não demos tudo, mas demos mais de 50%.”

Uma ajuda que, no entanto, só pode acontecer de forma esporádica. “Não temos verbas para pagar rendas de casa, mas temos para pagar e ajudar na água, na luz e nos medicamentos."

Luísa confirma que há cada vez mais imigrantes a residir na freguesia, e a pedir ajuda. “Aquilo que pedem não podemos dar, nem temos capacidade, que é casa e emprego. Alimentos não cozinhados disponibilizamos logo”, assegura.

Rosa Beirão, de 42 anos, é uma das beneficiárias do apoio da paróquia da Falagueira – onde já não mora, mas continua a ir. Estava desempregada quando, há sete anos, ali foi pedir ajuda pela primeira vez. Agora já voltou a trabalhar, mas passa grandes dificuldades. "Tenho uma penhora no ordenado, que estou a tentar resolver. Foi um crédito que eu fiz de um carro. O meu marido é o fiador, então somos os dois… Não tenho os subsídios e tudo o que eu ganho a mais, tiram. Consegui o perdão de cinco anos dos juros”, conta.


Instituições da Igreja garantem junto de comunidades mais desfavorecidas tem sido fundamental. São muitas vezes o único garante de sobrevivência e reintegração social. Foto: Beatriz Pereira/RR
Instituições da Igreja garantem junto de comunidades mais desfavorecidas tem sido fundamental. São muitas vezes o único garante de sobrevivência e reintegração social. Foto: Beatriz Pereira/RR

O último recurso “é pedir insolvência”, o que vai tentar fazer, com a ajuda da DECO. O apoio que recebe na paróquia é, por isso, fundamental. “Na Páscoa e no Natal, recebo um cabaz, e as prendas para as crianças. Eu tenho um adolescente que tem 15 anos, as gémeas que têm 4 anos, e a mais velha com 21”.

Recentemente, com a ajuda da Cáritas paroquial, conseguiu que lhe pagassem os óculos para a filha mais velha. “Foi uma ajuda muito preciosa, porque eu não conseguia estar a comprar os óculos agora nesta altura. Fica sempre quase 200 euros. Ficou toda contente!”


Na paróquia, Luísa garante que a ajuda aparece sempre. "Temos a divina providência sempre ao nosso lado! Quando estamos aflitos, porque não temos isto ou aquilo, aparece um envelope, ou aparece alguém e pronto, nós lá conseguimos compor.”

Conferências Vicentinas. “A palavra desistir não consta do nosso vocabulário”

Em muitas paróquias do Patriarcado, como no resto do país, estão as Conferências Vicentinas.  Adelina Almeida, advogada de 78 anos, integra o Conselho Central da diocese de Lisboa, onde há 612 vicentinos a apoiar mais de 4700 famílias.

“Só em número de assistidos, a nível da diocese de Lisboa, temos 4755 famílias, o que vem a dar um total de 12 mil pessoas. Agregados [familiares] com uma pessoa, só tenho 1977. Em toda a diocese de Lisboa há uma grande percentagem de pessoas idosas e pessoas que vivem sós”, conta.

Só na conferência a que pertence, na Amadora, apoiam 600 famílias, onde se incluem muitos desses casos. “Fez-se uma divisão, uma listagem com as pessoas que vivem sós, e há equipas de Vicentinos que as vão sempre visitar… porque 600 era impossível!”

Mas também apoiam um número significativo de famílias que não estão a conseguir suportar as despesas de habitação. “Há uma grande percentagem de casais com grandes dificuldades. Porque podem estar empregados, os dois até, com ordenado mínimo, mas se têm dois filhos é impossível pagarem uma renda de 900 euros. Não dá! Concretamente na Amadora, tenho vários casos. As pessoas ganham para pagar a renda, e depois o que é que fica?”, questiona.

Para os sem-abrigo, que são também cada vez mais, têm conseguido garantir refeições que vão buscar “ao refetório dos médicos”, a um hospital privado da Amadora. "É uma comida ótima! E todos os dias damos refeições aos sem-abrigo. Mas, como era muita gente a aparecer, teve de se dividir dia sim, dia não aos outros. Os sem-abrigo têm de comer todos os dias, os outros têm de tentar equilibrar e damos dia sim, dia não 20 a 30 refeições.”


Adelina Almeida, 78 anos, integra o Conselho Central das Conferências Vicentinas da diocese de Lisboa. Foto: Ângela Roque/RR
Adelina Almeida, 78 anos, integra o Conselho Central das Conferências Vicentinas da diocese de Lisboa. Foto: Ângela Roque/RR

Nesta altura do ano alargam a ajuda a mais pessoas, com a distribuição de cabazes de Natal, para quem se inscreva nos cartórios paroquiais. Na Amadora “chega a haver cento e tal cabazes, de inscrições, só de pessoas que não recebem mensalmente produtos alimentares, mas que necessitam e vão-se inscrever. Portanto, é fora aqueles outros que temos”, sublinha Adelina Almeida.

Na área geográfica da Amadora, atuam em vários bairros sociais, como o Zambujal ou Santa Filomena – onde, conta, ainda há barracas. Dia 19 de dezembro vão “entregar brinquedos a todas as crianças”.

Adelina diz que mesmo sendo zonas difíceis, nunca teve problemas, e defende que não se pode deixar de ajudar quem precisa. “A palavra desistir não consta do vocabulário do vicentino. Nós, vicentinos, nunca desistimos, porque assim Deus quer. Se nos deu esta missão, é para cumprir”, afirma.

No Zambujal, missionários procuram “unir as várias etnias que existem cá no bairro”

Há mais de 20 anos que os missionários da Consolata se instalaram no bairro do Zambujal, concelho da Amadora. Têm uma pequena capela, pertencente à paróquia da Buraca, mas que em 2003 era bem diferente do que é hoje.  “Isto era quase uma pocilga, uma espécie de garagem que havia aqui. Começámos a remodelar isto, a restaurar”, conta à Renascença o padre José Matias. Começaram por visitar famílias do bairro “e em questão de três, quatro meses, este espaço enchia-se”, recorda.

O espaço tem capacidade para 150 pessoas, mas a afluência ao domingo é variável, e o trabalho de evangelização difícil. “Este domingo estão, no próximo domingo começam a faltar, depois voltam a vir. A situação da catequese é bastante complicada, devido à situação das famílias, talvez... São crianças geralmente bastante agressivas, por tudo e por nada são capazes de se pegar”, conta o padre.

Nos últimos meses, o bairro do Zambujal esteve nas bocas do mundo, por causa da morte de Odair Moniz, que ali vivia, e que foi baleado por um agente da PSP na Cova da Moura. Seguiu-se uma onda de vandalismo.


Os missionários da Consolata acompanharam de perto a família de origem cabo-verdiana. “Quando morre uma pessoa, eles gostam muito e desejam que seja rezado o terço durante sete dias na própria casa. É um dos momentos fortes para estarmos com as pessoas que estão a sofrer”, nota José Matias. "Nós somos missionários da Consolata, e Consolata quer dizer ‘consolar’. Então, em momentos tristes, em momentos alegres, nós procuramos participar sempre.”

Além do apoio religioso, os missionários da Consolata também criaram a Associação Casa. Funciona num ginásio, onde todos podem praticar desporto e receber apoio médico.

No primeiro domingo de maio, organizam um concurso de talentos. Serve para celebrar S. José Operário, o padroeiro do bairro, e para integrar a comunidade cigana, com grande peso no Zambujal. “Não é só festa religiosa, tem a parte lúdica. Aproveitamos os talentos que há aqui no bairro, porque há pessoas que tocam guitarra, que cantam, que fazem teatro. Isso tem a finalidade, também, de unir as várias etnias que existem cá no bairro, principalmente a etnia cigana, que ao princípio era muito complicado. Mas agora, com estas festas, já vêm, gostam de participar”.


Além do apoio religioso, os missionários da Consolata criaram a Associação Casa no bairro do Zambujal. Funciona num ginásio, onde todos podem praticar desporto e receber apoio médico. Foto: António Pedro Santos/Lusa
Além do apoio religioso, os missionários da Consolata criaram a Associação Casa no bairro do Zambujal. Funciona num ginásio, onde todos podem praticar desporto e receber apoio médico. Foto: António Pedro Santos/Lusa

A professora que comprou uma barraca para ensinar

A educação tem sido, ao longo da história, uma das áreas de ação da Igreja. O secretariado diocesano de Lisboa da Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos, uma das 200 instituições e projetos sociais existentes no Patriarcado de Lisboa, dedica uma grande parte do seu trabalho à escolarização e à formação profissional.

Tudo começou em 1965, quando a jovem professora Fernanda Reis foi visitar um doente à Falagueira (no atual concelho da Amadora), e se cruzou, por acaso, com um grupo de crianças, na rua. “Àquela hora, deveriam estar na escola. Comecei a conversar com elas para perceber o que se passava”, recorda. “Viviam num bairro de barracas, numa colina, ali próxima. Entretanto, alguns pais e algumas mães viram uma estranha a falar com os miúdos, desceram [a colina] e aproximaram-se”, conta. Naquela breve troca de palavras, Fernanda Reis apercebeu-se que muitas daquelas crianças não frequentavam a escola. “Não tinham sido matriculadas. Algumas não estariam registadas, ou o pai ou a mãe teriam perdido os documentos. Para mim era uma situação totalmente invulgar.”

Um desses pais pediu-lhe que voltasse em breve – percebeu que Fernanda Reis os poderia ajudar a obterem documentação. “Fui ao registo civil para saber o que era preciso para registar um adulto – era diferente das crianças”, lembra a professora, hoje com 90 anos. “Estávamos em maio e as escolas abriam em outubro. Para termos muitos miúdos para matricular, com documentos em ordem, tínhamos de nos despachar”.

Foi assim que foi conhecendo as famílias e o bairro. Aos poucos, começou a ajudar os mais novos com os estudos e, para mantê-los motivados, criou um espaço dedicado à aprendizagem. “Havia lá uma senhora não cigana que estava na idade da reforma e resolveu voltar para a terra. Eu comprei-lhe a barraquinha. Fizemos ali uma sala de estudo. Nunca tinha pensado comprar uma barraca”, conta, entre risos.


Mural com desenhos alusivos às necessidades sociais da população, no bairro do Zambujal. Foto: António Pedro Santos/Lusa
Mural com desenhos alusivos às necessidades sociais da população, no bairro do Zambujal. Foto: António Pedro Santos/Lusa

Aos poucos, o trabalho com aquela população foi-se estruturando e crescendo, dando origem ao Secretariado Diocesano de Lisboa da Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos, criado oficialmente na década de 1970. Hoje, esta IPSS tem sete centros em bairros sociais da Grande Lisboa. Não trabalham exclusivamente com população de etnia cigana. Há também pessoas de origem africana e vindas de outras latitudes.

Um desses espaços – o Majari, como foi batizado – fica na Quinta da Torrinha, na freguesia de Santa Clara, em Lisboa. Recebe 48 crianças no pré-escolar e 80 no ATL, a grande maioria de etnia cigana.

O grande desafio é sensibilizar a comunidade para a importância da aprendizagem, assumem os técnicos. “Aqui, a escola não é, muitas vezes, valorizada. Não é vista como algo importante para a vida futura”, considera a técnica de ação social Sandra Bento. “Há muito absentismo escolar. Mesmo aqueles [meninos e meninas] que vão às aulas, não se interessam e acabam por desmotivar muito cedo”, diz, contando que continua a haver, entre aquela população, casamentos a partir dos 14, 15 anos.

Para sensibilizar as famílias e contribuir para a sua integração social, o centro disponibiliza também um serviço de apoio à comunidade. “Estamos aqui para a população, tanto para esclarecimentos, como para acompanhamento. Muitos deles têm dificuldades em ler e em escrever. Aparecem aqui com ofícios, cartas, coisas que precisam de resolver.”

Segundo Sandra Bento, no bairro “quase todos” os pais são beneficiários do RSI (Rendimento Social de Inserção). “Assinam os ditos contratos [para receberem o RSI], em que se comprometem a que as crianças frequentem a escola. Elas não vão e nada acontece”, alerta a técnica, dizendo que “faz falta” uma intervenção “das escolas, dos ministérios ou dos grupos que trabalham nesta área” para resolver o problema. “O menino falta um mês à escola e não se faz nada. Manda-se um papel para casa e justificam-se as faltas. É contínuo”, assegura.

Depois de mais de 50 anos de dedicação à causa social, Fernanda Reis assume, aos 90 anos, que “às vezes, dói um bocadinho”, quando se olha ao redor. “Este é um trabalho muito sério e não vemos todos os resultados que queríamos. Somos amigos, temos ótimas relações, mas isso não chega. Queremos que estes meninos se tornem cidadãos ativos, de plena atuação. E não é fácil conseguir isso para a maioria – acontece num ou noutro caso.”


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