Onde estão as pessoas? No Fontão, "as festas e os mortos são os últimos a acabar”

Não há números estatísticos sobre as aldeias com zero habitantes. Mas o fenómeno de ‘desruralização’ verifica-se em centenas de lugares por todo o país e é uma realidade que não sendo novidade, se tem vindo a agravar. Restam as emoções que continuam a fazer com que aldeias como o Fontão, no concelho de Seia, recebam diariamente visitas. De quem? E porquê? E onde é que estão as pessoas?

29 abr, 2025 - 06:15 • Liliana Carona



Ouça aqui a Reportagem Renascença de Liliana Carona, "Onde estão as pessoas?". Foto: Liliana Carona/RR
Ouça aqui a Reportagem Renascença de Liliana Carona, "Onde estão as pessoas?". Foto: Liliana Carona/RR

É o fim da ruralidade tradicional? Não há dados estatísticos, mas no interior saltam cada vez mais à vista as aldeias/lugares sem um único habitante permanente. Parecem aldeias museu. Fontão, lugar pertencente à freguesia de Loriga, concelho de Seia, é uma dessas aldeias. Ninguém abre a porta, porque não vive ninguém no Fontão. As cerca de 20 casas de xisto estão rodeadas de água, silêncio e vegetação e o toque das Ave-Marias. Os caixotes do lixo estão vazios e duas visitas ao local serviram apenas para fotografias e recolher sons da paisagem. As vozes, de forma presencial tiveram de ser contactadas, primeiro por telefone.

Um antigo presidente da Junta de Loriga, António Maurício ajudou a fazer a ponte. “A única pessoa que lá habitava faleceu, a outra foi para a casa da filha e pronto, acabou. Fui presidente de junta durante 12 anos. Ainda tinha bastante gente, os funerais vinham para Loriga à mão, por um caminho de terra. É uma pena termos chegado aqui, mas as pessoas de lá ainda vêm cá e na altura do verão também tem bastante gente”, garante António Maurício, sugerindo que entrevistasse “um homem que visita diariamente o Fontão”, porque “as casas do Fontão pertencem maioritariamente a gentes de Lisboa que não vivem lá”.

A resina foi o principal meio de sustento de quem ali um dia viveu, além das fábricas têxteis em Loriga, encerradas no começo do século XXI. Mas o Fontão chegou a ter todos os serviços: mercearia, correios, café, dois fornos comunitários ativos. Alberto Marques, 70 anos, o nome sugerido pelo antigo presidente de junta, saiu do Fontão há mais de 30 anos. “Fazia-se aqui uma bola com cebola, às vezes assim com bacalhau. Era boa, mas boa. Todas estas casas estavam ocupadas. A água abundante, onde lavavam a roupa as senhoras”, aponta, ao abrir a porta de uma das casas, que alberga a Associação de Melhoramentos do Fontão.

Ex-habitantes asseguram manutenção e cuidado da aldeia

Alberto Marques é o rosto mais visível da associação, sendo o responsável da coletividade. Começou a trabalhar aos 14 anos na resina, principal meio de sustento: “Sempre vivi aqui no Fontão, deixei o Fontão quando me casei, há trinta e poucos anos”, diz. Hoje reside em Loriga, mas diariamente vai dar uma espreitadela à aldeia, mais que não seja para abrir a porta da associação que dirige.

Todos os anos fazemos a festa no segundo domingo de agosto e tanto a capela, como a escola, foram feitas pelo povo”, acrescentando que a capela foi arranjada há dois anos. “Gastámos aqui quase 100 mil euros para compor a capela. Está toda arranjada de novo. Tudo com dinheiro do povo”, assegura.


Casario em Fontão, no concelho de Seia. Foto: Liliana Carona/RR
Casario em Fontão, no concelho de Seia. Foto: Liliana Carona/RR
Fontão, no concelho de Seia, é uma aldeia escondida em plena Serra da Estrela. Foto: Liliana Carona/RR


“Eu às vezes ainda queria mais, mas não consigo, também tenho a minha vida. Ainda faço aí muito serviço de borla para que isto ande”, revela, enquanto sobe as escadas que percorrem o casario e nos levam ao cume da aldeia. “Eu gostava que isto estivesse habitado. Mas infelizmente não é possível. Era quase tudo família. Hoje temos aqui uma praia fluvial, que no verão está cheia”, aponta para o rio que corre pelo meio de um moinho.

Mas onde estão essas pessoas? “Hoje não há cá ninguém. As pessoas não utilizam as casas e não as vendem, porque se as vendessem até podia haver pessoas que quisessem cá investir. As pessoas pagam o IMI e deixam estar as coisas caídas. Não há ninguém que consiga mudar a mentalidade da pessoa para poder vender”, lamenta Alberto Marques, destacando que “a intenção era que alguém viesse, só que houvesse uma pessoa no Fontão, já era bom”.

“Falta a distribuição da água e o saneamento, mas em primeiro lugar as pessoas virem para cá”

Recordar o passado, olhando para as casas de xisto desabitadas, torna-se tarefa difícil, mas o antigo morador Alberto Marques insiste em registar a vida que um dia Fontão teve. “Era tudo cultivado, tudo mesmo. Milho, batatas, centeio. A minha casa é aquela que tem uma videira à porta. Também está um bocado abandonada, porque também não é só minha. No inverno tínhamos uns carros que até fazíamos com rodas de madeira, e entretínhamos a garotada ali, onde está aquela telha ao pé da fonte”, aponta, ao mesmo tempo que uma das moradias deixa antever à janela uma dorna para fazer o vinho.

Para Alberto Marques, Fontão acabou assim, sem gente, porque o alcatrão demorou muito para chegar e o saneamento…uma miragem. “Estamos quase em morte cerebral. Não temos esgotos e quando a gente pede alguma coisa, quantos lá vivem? Perguntam. Não vive ninguém, infelizmente. O alcatrão só veio em 2005, se tem vindo…dez anos antes, talvez cá ainda houvesse gente, porque a maioria das pessoas de Loriga é daqui”, assume, explicando que o Presidente da Câmara de Seia, já lhe respondeu duas vezes que: primeiro venham as pessoas e depois o saneamento, mas não devia ser ao contrário?”, indaga Alberto que pertenceu à Junta de Loriga durante 30 anos e também não conseguiu o saneamento. “Não consegui, infelizmente, que viesse o saneamento. A água, à partida, temos lá em cima o depósito, alguns têm água, mas é provisório, é um tubo aí por fora da terra, falta o resto da distribuição da água e o saneamento, mas o que cá fazia falta era pessoal, em primeiro lugar, as pessoas virem para cá”.

"Hoje não há cá ninguém. As pessoas não utilizam as casas e não as vendem, porque se as vendessem até podia haver pessoas que quisessem cá investir. As pessoas pagam o IMI e deixam estar as coisas caídas"

Ouvem-se os mugidos ao longe e ao aproximar-nos, detetamos por entre a aldeia, a passear entre as vinhas, meia dúzia de vacas. Alberto Marques sorri: “são as habitantes agora, as vacas, são de um senhor de Loriga, vão comendo a erva”.

Com dois fornos comunitários e algumas casinhas com vidros partidos que deixam ver maceiras, onde se amassava o pão, adegas e outras relíquias do passado, Fontão tem um moinho, várias fontes e uma capela e escola feitas pelo povo. Muita história traduzida por Alberto Marques. “Andei aqui quatro anos na escola, éramos 20 alunos. Fechou no final da década de 90. Está igual como era. Agora é o salão das festas, antes era a sala e o quarto da professora, onde ela dormia e cozinhava. Era uma professora ali do Rochoso”, descreve sobre a escola construída em 1931 e restaurada em 2022.

Emprego é a palavra-chave no despovoamento

O regresso de habitantes de forma permanente ao Fontão só seria possível se houvesse emprego, a palavra-chave para Álvaro Domingues, geógrafo, investigador da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. “O que interessa é o investimento criador de emprego, capaz de fixar as pessoas, porque essa é a questão, é o emprego, porque o asfalto, a água e a internet, isso depressa se resolve. O Estado, se nos reportarmos ao período após a adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia, fez o que nunca tinha feito. Foram feitos investimentos na eletrificação, nas telecomunicações, nos transportes e nas comunicações, nas estradas, na água, no saneamento. Antes do 25 de abril não havia um metro de saneamento em Portugal, o Porto não tinha saneamento. E a rede de água era uma coisa muito precária, porque normalmente eram furos, eram captações ao nível de uma freguesia, e às vezes nem isso”, salienta o investigador que tem conhecimento de outras aldeias como o Fontão.


A capela do Fontão foi restaurada há dois anos com dinheiro do povo. Foto: Lliliana Carona/RR
 

“Tenho conhecimento de muitas, serão centenas, isso é um fenómeno que começa praticamente nos anos 60, com o surto de imigração", afirma Álvaro Domingues, que explica o fenómeno com a economia dominantemente rural e com uma agricultura muito de autoprodução, em que cada família produzia para o seu próprio consumo.

"Não havia horizontes, havia muita dificuldade em arranjar emprego, em ter um percurso escolar, ter um diploma, e aquilo que aconteceu foi a imigração massiva para a Europa, sobretudo para a França. Estima-se que mais de um milhão de portugueses tenham emigrado só na década de 60. Então, esse fenómeno fecha o ciclo do Portugal tradicional, rural, pobre e, a partir daí, dá-se o fenómeno que, nas ciências sociais, se chama ‘desruralização’. Ou seja, há um abandono das práticas agrícolas tradicionais e da economia agrícola tradicional e o processo de esvaziamento, de envelhecimento, começa exatamente aí e vem prolongando-se até aos nossos tempos e percebe-se facilmente que com o envelhecimento da população, esse fenómeno acelera”, explica o geógrafo.

Aldeias cheias de gente no passado? Mas que condições tinham?

“Sem romantismos nem dramatismos”, refere o geógrafo Álvaro Domingues, apelando a que se reflita sobre as condições de vida das aldeias cheias de gente do passado. “A escola é que é o grande elevador social, entre outros fatores. E depois, quem frequenta a escola, claro que procura um emprego compatível e tem uma expectativa de rendimento e de nível de salário diferente. E vai procurá-lo onde houver. Como aconteceu no período da Troika, não é? Lá foram os nossos licenciados todos. Portanto, este ciclo de dificuldade em fixar a população em vastíssimas áreas do país não é uma coisa de hoje. É uma coisa que se tem vindo a aprofundar cada vez mais. E não é drama nenhum. Quando me dizem assim: 'Porque neste município já houve 30 mil pessoas e agora só há 3 mil?' E eu digo assim: 'e eu quero lá saber'. Como é que viviam essas 30 mil? Em que condições de conforto é que se vivia? Porque dizer que antigamente era muito povoado, como quem diz, era muito próspero, parece-me que essa relação não está bem entendida”, alerta o investigador.

“Não é o alcatrão que fixa as pessoas, mas ter filhos na escola e pensar: o que é que os meus filhos vão fazer? Que futuro que eu lhes posso dar?”

“Não partilho qualquer tipo de romantismo ou de nostalgia. Eu não o tenho. Há muita gente que tem. Não sei porquê. Provavelmente porque nunca conheceram as condições de vida que existiam nesses locais. As pessoas têm de ter de que viver. As pessoas têm de ter os seus sonhos. E mesmo que tivesse chegado o alcatrão, os que lá estavam saíam na mesma”, acrescenta ainda.

Nos lugares, e são muitos, onde não apareceu uma economia alternativa capaz de produzir um nível de salário, de rendimento que corresponda às expectativas, “as pessoas saem, porque “os filhos quando vão estudar e quando pensam no seu futuro profissional não encontram nesses contextos, possibilidades de emprego e, portanto, aquilo a que se está a assistir é esse esvaziamento”, releva Álvaro Domingues, acreditando ser um “quadro mais comum do que se possa pensar” e insiste: “não é o alcatrão que fixa as pessoas, mas ter filhos na escola e pensar: o que é que os meus filhos vão fazer? Que futuro que eu lhes posso dar?”.

Para o geógrafo Álvaro Domingues “as pessoas têm aquela ideia, romântica que a aldeia era o mundo feliz e é completamente errado”. Dizia um sociólogo francês, que o verdadeiro urbano é aquele que não conhece o vizinho. E, portanto, as solidões, porque são muitas, acontecem de muitas maneiras. Não necessariamente nesses territórios esvaziados”, diz ainda sobre o impacto do despovoamento.


A escola primária no Fontão, construída em 1931 e restaurada em 2022, serve agora de salão das festas. Foto: Liliana Carona/RR
O fecho das fábricas texteis levaram à fuga de populações para os grandes centros. Foto: Liliana Carona/RR


Sem estatísticas, serão centenas de aldeias que “existem e não existem ao mesmo tempo”

“Serão centenas de aldeias, lugares, como o Fontão, onde já não vive ninguém”, começa por assumir Álvaro Domingues. Realidades que dificilmente entram nas estatísticas e o geógrafo explica o porquê. “Não há dados sobre quantas aldeias estarão assim como o Fontão, até porque é muito difícil saber, estatisticamente, o que é que corresponde à situação de esvaziamento, porque na maior parte dos casos há ainda pessoas que mantêm um vínculo, porque possuem terra, porque possuem uma casa e, portanto, podem estar a viver na Alemanha, na Suíça, nos Estados Unidos, em França, no Canadá, em Lisboa, onde for, mas, ocasionalmente, deslocam-se e, portanto, estatisticamente, pode existir aí ainda uma população, embora na prática ela não esteja. Eu diria que as festas e os mortos são os últimos a acabar, porque é o vínculo mais persistente. Nós voltamos aos nossos locais de origem, porque temos lá os familiares enterrados, ou porque existe uma festa”, esclarece o investigador, admitindo conhecer muitas festas cujos custos são completamente assegurados por pessoas que não estão lá. É o pensamento simbólico que é a importância do ritual, que são determinadas ligações, apenas afetivas, com esses lugares e daí nós sentirmos uma espécie de fantasmagoria. Eles existem e não existem ao mesmo tempo, o cordão umbilical ainda não quebrou”, elucida.

Em muitas aldeias de xisto, praticamente não há sequer um residente. “São uma espécie de ‘Disneylândias’ que foram intervencionadas para ter as comodidades que habitualmente um turista exige”, observa Álvaro Domingues, que integra o projeto ‘Quem somos os que aqui estamos’ para tentar perceber quem é que vive de facto, quem é que visita, com que frequência? “Apesar de não haver dados estatísticos, são largas centenas…não é uma coisa a preto e branco, como eu digo. Há um processo de esvaziamento, ponto final. E depois, em que estado é que está esse processo de esvaziamento? Lugares onde só vive uma família, lugares onde só estão pessoas no verão? Com a estatística não aprendemos muito sobre isto”, considera o geógrafo.

"As festas e os mortos são os últimos a acabar, porque é o vínculo mais persistente. Nós voltamos aos nossos locais de origem, porque temos lá os familiares enterrados, ou porque existe uma festa."

Apesar de desmistificar algumas ideias em torno do despovoamento, o investigador Álvaro Domingues não nega que existem consequências. “Esses problemas de isolamento são muito complicados do ponto de vista humano e, em muitos dos casos, o que se pode fazer é inovar na prestação de serviços. Em vez de termos na sede do concelho um serviço de saúde porta-aberta, é o serviço de saúde que circula. Ou então, em vez de haver na aldeia uma mercearia, é um carro que passa lá todas as manhãs, como se fosse um minimercado ambulante”, sugere, apressando-se a referir outra consequência do despovoamento. “O abandono dos cultivos ou do pastoreio, por exemplo, dificulta o problema dos incêndios”, assume, clarificando que “é o fim da ruralidade tradicional”. Ou seja, Alberto Domingues recorda a expressão metafórica Voo do Arado para explicar “essa espécie de descolamento desse Portugal rural”.


O presidente da Câmara de Seia, António Ribeiro, acusa o Estado central de falta de investimento em vias na região. Foto: Liliana Carona/RR
 

Autarca de Seia reivindica “mesmas armas dos grandes centros”

A Câmara Municipal de Seia aposta em diversos serviços de proximidade na área da saúde, por exemplo, mas para o autarca Luciano Ribeiro, a luta contra o despovoamento é uma competição sem as mesmas armas dos grandes centros.

“O despovoamento é o maior problema de Portugal do interior. É um círculo vicioso: havendo menos pessoas, há menos eleitores, e menos votos e isso vê-se na representação no parlamento, em que o distrito da Guarda tem 3 representantes. Esta situação leva a mais polarização, a maior centralidade em Lisboa, quando nós temos algumas dificuldades, principalmente este território, no que diz respeito às acessibilidades rodoviárias, quando a gente fala em TGVs, aeroportos em centenas de milhões de euros, há territórios, como o caso de Seia, que precisavam de uma variante para chegar mais depressa ao comboio. Demoramos 25 minutos a chegar ao comboio em Nelas, quando podíamos chegar em 10. E mais grave do que isso, os acidentes são constantes, os atropelamentos são constantes, a dificuldade de viver nessas aldeias que são atravessadas pela N231 é maior, e, portanto, quando ouvimos falar sempre de milhões para aeroportos, no Porto, que antes era uma ponte, agora já são mais duas, em Lisboa, que era uma ponte, agora são mais duas pontes e mais um túnel, há sempre centenas de milhões para dar resposta ao problema da concentração populacional, que vai levar a mais concentração populacional, ainda que dispersa naquele território e na margem sul. Para territórios do interior, como Seia, Gouveia e Oliveira do Hospital, não há uns míseros 50 milhões de euros para prolongar um pouco o IC6, não é? Nem é para o terminar, é para o prolongar. E, portanto, nós não competimos com as mesmas armas”, desabafa.

um círculo vicioso: havendo menos pessoas, há menos eleitores, e menos votos e isso vê-se na representação no parlamento. Esta situação leva a mais polarização"

Sem as mesmas condições dos grandes centros, nomeadamente a nível de acessos rodoviários, Luciano Ribeiro assume que “é difícil convencer um visitante, alguém que queira investir em Seia”, porque “uma pessoa demora menos para vir do aeroporto do Porto até Viseu (cento e muitos quilómetros), do que para fazer os últimos 45 quilómetros entre Viseu e Seia”. Assim, o autarca conclui que “o despovoamento consegue-se combater criando oportunidades, primeiro qualidade de vida” e adianta: “precisamos de competitividade económica, boas empresas, bons empregos e com bons salários, para que este círculo se possa inverter e aí tem de haver uma ajuda sem dúvida do Estado Central”.

“Não quero ser catastrófico, mas a verdade é que estamos a desonrar o trabalho que foi feito dos reis que fundaram Portugal quando conquistavam território e a primeira coisa que faziam era estabelecer população para marcar o território”, diz ainda Luciano Ribeiro, justificando o crescimento dos movimentos populistas, com o abandono do interior. “Há um certo sentimento, e por isso se vê que junto à raia, seja do lado de Espanha, seja do lado de Portugal, os partidos radicais têm mais votos, porque há um sentimento de esquecimento, de desprezo”, observa.

Sobre estratégias contra o despovoamento, o autarca de Seia revela que o objetivo de “estancar esta hemorragia demográfica, só vai ser possível ‘importando’ bebés de 18 anos, de 20 anos, seja para estudar, seja para trabalhar”. Mas para isso, sublinha: “precisamos ter as mesmas armas dos outros, precisamos ter as mesmas condições de acesso a transportes públicos, ter as mesmas condições de acesso aos centros de decisão e, com isso, ter condições de competitividade para atrair empresas”.

“O que faz perder população são os óbitos”

Em 2021, o concelho de Seia tinha 21.125 habitantes e em 2011 o número era de 24.102 moradores permanentes, uma perda de 12% da população residente. Seia tem 21 freguesias e 120 lugares que têm sofrido com a perda de população. Fontão já não tem habitantes permanentes e há pelo menos outras duas aldeias que não chegam a meia dúzia de habitantes.

Ainda segundo dados do INE, além do Fontão, que em 2011 tinha dois habitantes e atualmente não tem residentes, há mais dois lugares com menos de seis habitantes, ambos na União de Freguesias de Vide e Cabeça. Trata-se de Abotoreira (tinha três habitantes em 2021, mais um que em 2011) e de Casas Figueiras (tinha cinco habitantes em 2021 e em 2011 registava sete).

“Basta olhar para os dados, infelizmente a maior parte da perda da população que temos é pela mortalidade, portanto, ao contrário do que a gente pensa, que as pessoas vão-se todas embora, o que nos faz, de facto, perder a população são mesmo os óbitos, porque a população foi envelhecendo ao longo das últimas décadas, e não tendo havido reposição ou tendo havido uma maior debandada em décadas anteriores, em particular fruto da crise das monoindústrias, dos lanifícios e dos têxteis, hoje torna-nos o problema um pouco mais difícil”, considera o presidente da Câmara Municipal de Seia.


Casario em Fontão, no concelho de Seia. Foto: Liliana Carona/RR
 

O Fontão é um lugar que está desabitado, “com zero população, há sensivelmente 12 anos”, afirma Luciano Ribeiro, explicando que os últimos habitantes foram para o lar. O Fontão é um lugar que, apesar de não ter clientes de água e da água não ser canalizada (não ter contadores) está incluído no Programa de Controlo e Qualidade da Água (PCQA) que segundo o autarca, “o município foi desenvolvendo ao longo dos anos, com a captação e o depósito que abastece depois as casas”, esclarece.

Antigos moradores denunciam abandono das autoridades

O concelho de Seia tem vindo a perder população e há o risco de outras aldeias se tornarem inabitadas como o Fontão, que é a única anexa da vila de Loriga, onde encontrámos António Pereira, 68 anos, nasceu no Fontão, onde viveu até aos 27 anos e não poupa críticas às autoridades locais. “Quando vamos pedir alguma coisa a alguém das autoridades, o que é que nos respondem? Ah, não mora lá ninguém. Mas nós pagamos todos os impostos que o Governo nos exige. E não somos correspondidos para as autoridades, seja ela qual autoridade for, a Junta de Freguesia, a Câmara de Seia. Fontão não está abandonada pela população, mas pelas autoridades”, denuncia o antigo morador do Fontão, exemplificando. “Até lhe posso mencionar um caso de uma capela que está lá bem feita, mas foi tudo feito com o dinheiro do povo. As autoridades não tiveram a amabilidade de oferecer alguma coisa para as obras. Foi tudo dinheiro do povo. O povo une-se e faz. E não somos correspondidos. Mas, como eu já disse há pouco, os impostos pagamos sempre”, afirma.

António Pereira comenta o estado de abandono do Fontão, defendendo que “é apenas o amor à terra que o leva a ir lá, frequentemente”. “Não temos água, há lá um remedeio, não há esgotos, os caminhos são uma desgraça. A via principal para Loriga daqui a pouco está tapada. A vegetação vai-se acumulando. Não há uma hora que se perca por mês para lá ir cortar, está tudo abandonado”, observa.

Também Loriga tem perdido população: já teve 1400 eleitores, hoje tem 800. Autarca no 8º mandato, tendo exercido várias funções na Junta de Freguesia, José Pinto vê fugir as pessoas para outros lados, “à procura de melhor vida, à procura de trabalho, à procura de saúde, à procura de outros sentimentos” e entende que o investimento no Fontão seja cada vez menor. “Naturalmente que uma terra que está deserta não há grande incentivo à Câmara Municipal e à Junta de Freguesia de fazerem grandes investimentos. Fazemos investimentos para quem também, não é?”, questiona, destacando que “a junta vai fazendo pequenos arranjos no Fontão”. “No ano passado fizemos lá umas casas de banho decentes, aproveitando as da antiga escola primária, que já teriam se calhar alguns 100 anos”, nota.


O presidente da Junta de Freguesia de Loriga, José Pinto, recorda que os moradores não querem vender as casas no Fontão. Foto: Liliana Carona/RR
 

Proprietários das casas não querem nem vender nem arrendar

Face às críticas relativas ao estado de abandono, José Pinto, presidente da Junta de Freguesia de Loriga recorda o que tentou fazer há quatro anos no Fontão.

“Levei lá uma empresa de uma imobiliária, marcámos uma reunião para setembro, que é quando está lá mais gente, para quê? A minha ideia era as pessoas começarem a vender, por exemplo, uma casa, uma família que tivesse, por exemplo, duas casas, vendia uma para compor a outra. O que aconteceu? Fizemos a reunião e as pessoas disseram, todas elas, que não vendiam nada. Portanto, eu tive de sair de lá triste porque dava a impressão que eu estava ali a defender a imobiliária. Mas quando eu queria é que eles começassem a vender para chamarmos para lá gente, mas o que é que eu encontrei? Encontrei resistência nas pessoas que não queriam vender nada, nem alugar, nem vender e nem recuperam as casas, quer dizer, não se faz nada”, contesta, relativamente às críticas do estado de abandono da aldeia anexa da vila de Loriga, o Fontão.

Os moradores não estão interessados em vender, o emprego escasseia e os óbitos são mais frequentes do que os nascimentos. Argumentos que não apagam os afetos e a memória de quem continua a organizar o bailarico todos os anos no segundo domingo de agosto. Pelo menos nesse dia, Fontão volta a ter pessoas. O antigo morador Alberto Marques mantém a casa onde um dia viveu, plantou cerejeiras pelo caminho, e é uma espécie de guia turístico, sempre que é preciso. Abre as portas, mostra e explica, sempre com um sonho em mente: voltar a ver gente no Fontão.

“Espero que isto ainda seja habitável. Tenho dois filhos, um está na Inglaterra, o outro trabalha em Viseu, ainda vai ajudando quando é na festa, ele é que é o barman, nós fazemos a festa aqui, dá para as despesas e ainda rende quase 10 mil euros”, recorda sobre o segundo domingo de agosto, altura em que decorrem as festas em honra da Nossa Senhora da Ajuda. “Vou abrindo a porta, pago a contribuição. Temos um Fontão abandonado. Morreu o último velhote. Isto já não tem conserto, cada vez somos menos”, conclui, receando os efeitos do despovoamento. “O isolamento convoca os incêndios, isto está tudo cheio de mato. Temos aqui em baixo uma sobreira que é centenária. É o que eu digo às entidades, as casas não valem nada, mas se ardem então é que não valem nada”, lamenta.


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