"Aqui temos carinho, amor e dão-nos qualidade de vida": um dia nos Cuidados Paliativos do Santa Maria

Equipa Intra-hospitalar de Cuidados Paliativos de Santa Maria foi das primeiras a ser criada, em 2007. Dezoito anos depois, mantém alguns dos elementos fundadores, mas o aumento da procura exige mais profissionais e mais equipas. A Renascença ouviu médicos, enfermeiros, auxiliares, doentes e famílias, sem esquecer o assistente religioso que integra a equipa: são testemunhos na primeira pessoa sobre a importância de um serviço diferenciado sobre o qual ainda há tabus e que carece de investimento.

08 out, 2025 - 06:00 • Ângela Roque , Beatriz Pereira (fotografia)



"Aqui temos carinho, amor e dão-nos qualidade de vida": um dia nos Cuidados Paliativos do Santa Maria
"Aqui temos carinho, amor e dão-nos qualidade de vida": um dia nos Cuidados Paliativos do Santa Maria

Gratidão e segurança são sentimentos partilhados pelos utentes da Unidade de Medicina Paliativa de Santa Maria, em Lisboa, onde há já 18 anos foi criada a equipa intra-hospitalar que acompanha doentes com patologias graves, não só cancro. Margarida Carrolo é uma das duas médicas da equipa, à qual se juntou recentemente.

“Sou oncologista médica, estou a trabalhar com a doutora Filipa Tavares, que é a coordenadora da equipa. Vim dia 26 de maio para o Hospital Santa Maria, para fazer 20 horas no Serviço de Oncologia Médica e 20 horas na Unidade de Medicina Paliativa. Mas como a doutora Filipa está de férias, [na altura da reportagem], estou a fazer 30 horas em oncologia e 10 em paliativos. Somos só nós para o hospital inteiro”, sublinha.

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Margarida Carrolo desdobra-se entre a Unidade de Oncologia e a de Medicina Paliativa, que fica no piso inferior. Sabe que a entrega com que a equipa trabalha é a reconhecida pelos doentes, mas faltam meios para tantas necessidades.

Cada vez temos mais pedidos. A maioria são doentes oncológicos da nossa área, que inclui aqui o Hospital de Santa Maria até Mafra, mas temos também doentes de outras especialidades, por exemplo da Neurologia - temos doentes com esclerose lateral amiotrófica. Mas são principalmente de Oncologia”, aponta.

A procura tem vindo a aumentar. Segundo os dados oficiais da ULS de Santa Maria, em 2024, a Equipa Intra-Hospitalar realizou 8.429 consultas presenciais e não presenciais, das quais 2.937 foram primeiras consultas, e 5.492 foram consultas subsequentes. Margarida Carrolo não tem dúvidas de que é urgente apostar mais nesta área. “Ainda há pouco tempo um dos elementos da equipa saiu, reformou-se, estava a 40 horas e não houve reposição. Somos muito poucas para o trabalho que temos”, lamenta.

A medicina tem evoluído muito no tratamento dos doentes, mas é preciso garantir-lhes qualidade de vida. “À medida que temos tratamentos mais inovadores, os doentes vivem mais tempo, mas o facto de viverem mais tempo não significa que vivam esse tempo extra com qualidade. É preciso haver um maior controle de sintomas, assegurar a qualidade da vida, para que faça sentido prolongar a vida, mas com qualidade."

A falta de investimento nesta área revela um alheamento do que realmente significa garantir cuidados paliativos. “A medicina paliativa é muitas vezes vista como o ‘patinho feio’ da medicina. Porque nós não curamos doentes nem temos sequer esse objetivo. Aqui, estamos a lidar com doenças graves, muitas vezes incuráveis, ameaçadoras de vida, e o nosso objetivo é que o doente tenha a melhor qualidade de vida, os melhores cuidados, tenha de volta a sua dignidade."


Médica Margarida Carrolo (à direita) e Luísa, familiar e cuidadora de um doente da Unidade de Medicina Paliativa do Hospital de Santa Maria. Foto: Ângela Roque/RR
Médica Margarida Carrolo (à direita) e Luísa, familiar e cuidadora de um doente da Unidade de Medicina Paliativa do Hospital de Santa Maria. Foto: Ângela Roque/RR

Entre a agitação habitual no maior hospital do país, descemos ao piso inferior, onde fica a Unidade de Medicina Paliativa. Na mesa redonda, onde habitualmente reúnem e nos recebem, está um folheto da altura em que a Equipa Intra-hospitalar de Cuidados Paliativos foi criada. Amélia Matos é uma das fundadoras. É a enfermeira-gestora deste grupo que inclui, para além das duas médicas, sete enfermeiras, uma assistente social, um assistente religioso e uma assistente técnica. Mas, há lugares em falta.

“Temos uma lacuna brutal atualmente, não temos nenhuma psicóloga atribuída à equipa”, começa por dizer. Admite que seriam precisos muitos mais profissionais. “Para aquilo que queremos fazer, sim. Foi criada, legalmente, a intenção de abrir um serviço integrado de cuidados paliativos, mas nós também deixámos de ser um hospital, passámos a ser um centro hospitalar, e neste momento uma Unidade Local de Saúde (ULS). O serviço integrado de cuidados paliativos implicará uma estrutura mais organizada, com apoio domiciliário, e não há uma equipa comunitária de suporte em cuidados paliativos para ser parte da nossa equipa”.

Um dos problemas é a vasta área que abrangem. “Como ULS alcançamos um número de população imensa, abrangemos o hospital de Santa Maria, o Pulido Valente, os centros de saúde de Lisboa Norte e da área de Mafra”.

As consultas de psicologia na unidade de paliativos, e noutros serviços, estão a ser asseguradas pelos profissionais da Equipa de Apoio Psicossocial, criada em 2019 graças ao financiamento privado anual da Fundação La Caixa, e que tem um protocolo com a administração do hospital.

“Aqui sinto-me mais enfermeira”

Dora Santos é enfermeira. Trabalhou 10 anos em pneumologia antes de fazer parte da Equipa Intra-hospitalar de Cuidados Paliativos, onde está há oito anos e onde sente que cresceu como profissional.

Esta experiência, para mim, foi a desocultação de uma equipa que desconhecia, que vê a pessoa como um todo: a família, perceber onde mora, com quem mora, quem o ajuda nas compras ou a adquirir medicação, quem o acompanha ao hospital, às consultas e tratamentos. Porque temos aqui pessoas com uma trajetória de doença muito longa, com muito sofrimento, muitos tratamentos, muitas horas passadas no hospital, e perceber a trajetória da pessoa, não só de vida, mas de doença, quais são as necessidades e em que é que nós, profissionais de saúde e membros desta equipa multidisciplinar, a podemos ajudar a melhorar o seu dia-a-dia é muito importante. Podem ser as últimas semanas, os últimos meses, mas podem ser os últimos anos. Por tudo isto, aqui sinto-me mais enfermeira. Sinto-me mais enfermeira”, partilha.

A necessidade de reforço de meios é evidente, mas Dora é muito pragmática na avaliação que faz. “Sim, o ideal era ter mais equipas, mas nunca conseguiremos chegar ao ideal. Apesar de não termos todos os recursos, fazemos a diferença na vida daquela pessoa. Não fazemos a diferença em 200 pessoas, mas fazemos em 50."

O mais importante, e que tentam fazer sempre, é conseguir dar o melhor em equipa, e atender às necessidades dos doentes. “Conseguimos ter uma equipa que cresce, que dá resposta a um simples telefonema de alguém que do outro lado está a cuidar do seu familiar. E conseguimos, naquele momento, atender o telefone e dizer que pode dar este medicamento, fazer assim, pode posicionar, pode fazer uma determinada intervenção que vai fazer a diferença. Ou encaminhamos para atendimento, aqui ou a urgência. Por isso, não temos o ideal, mas temos o melhor de uma equipa verdadeiramente responsável para com os doentes, e as suas famílias."


Enfermeira Dora Santos, da Equipa de Unidade de Medicina Paliativa do Hospital de Santa Maria. Foto: Beatriz Pereira/RR
Enfermeira Dora Santos, da Equipa de Unidade de Medicina Paliativa do Hospital de Santa Maria. Foto: Beatriz Pereira/RR

A enfermeira Clara Geraldes também já não se imagina a trabalhar noutra área. Entrou há 10 anos para a equipa. Foi em Oncologia que percebeu que não basta controlar a dor. Os doentes merecem ser olhados e ajudados de forma mais abrangente.

“Senti sempre a necessidade de ver o doente na sua complexidade total, com todas as suas necessidades. Apesar da Oncologia também ver o doente assim, acaba por se focar mais nos tratamentos oncodirigidos, e o doente ia sofrendo, por vezes, algumas degradações, descontrole sintomático, mas também problemas sociais, psicológicos. Senti a necessidade de uma equipa que abordasse o doente nesse todo, não esquecendo a família e o luto, que é importante e muitas vezes é esquecido.”

“Aqui funcionamos sempre a equipa, não é nada individual”, afirma, sublinhando o trabalho em rede que asseguram. “É importante a articulação que se faz com os cuidados de saúde primários. Sempre que um doente precisa, articulamos com os nossos colegas, por email ou telefone, sinalizamos a situação. E é assim que a saúde deve funcionar, para que os doentes estando em casa tenham cuidados de proximidade. As equipas comunitárias são os nossos olhos também. E mesmo com os doentes que temos de fora na nossa ULS também articulamos com outras equipas, para que o doente seja acompanhado onde estiver.”

Impacto nos profissionais. “Mesmo quem tem fé, às vezes, coloca em causa algumas coisas”

Alexandra Ramos Cortês é assistente social da Unidade Medicina Paliativa, e foi por sua iniciativa que se candidataram ao apoio privado para criar a equipa de apoio psicossocial. Há 18 anos foi uma das fundadoras da equipa intra-hospitalar. Garante que faz toda a diferença serem uma equipa multidisciplinar, que olha para o doente no seu todo desde a primeira consulta.

“Fazemos sempre uma avaliação conjunta, por parte do médico e do enfermeiro. Automaticamente passa para um segundo momento, que é uma consulta de serviço social, para se fazer o diagnóstico social ao doente e à família, perceber todo o contexto social, familiar, laboral, relacional. Perceber até que ponto é que aquela pessoa está com capacidade de cuidar, quer cuidar deste seu familiar, e quer cuidar em casa, por exemplo. Vemos o que podemos fazer para que a família consiga efetivamente cuidar?”.

A coesão da equipa vê-se nos momentos mais difíceis, em que todos se apoiam mutuamente, sendo que um dos elementos é o assistente espiritual.

Há situações que são muito impactantes para cada um de nós, porque temos a mesma idade do doente, ou porque temos filhos da mesma idade, ou um pai ou uma mãe na mesma situação. A possibilidade de, em equipa, falarmos abertamente sobre o que estamos a sentir, porque é que nos impactou, é extraordinário! E depois, este recurso - neste caso em particular, o padre Fernando – parece-me a mim extremamente importante. Porque, mesmo quem tem fé, às vezes colocamos em causa algumas coisas, o sentido da vida e da morte, se é justo, ou não é justo. Faz parte. Às vezes a fé está mais lá no alto, outras vezes está aqui mais em baixo. Faz sentido partilhar, e é o que temos feito”.


Alexandra Ramos Cortês, assistente social da Equipa de Unidade de Medicina Paliativa do Hospital de Santa Maria. Foto: Beatriz Pereira/RR
Alexandra Ramos Cortês, assistente social da Equipa de Unidade de Medicina Paliativa do Hospital de Santa Maria. Foto: Beatriz Pereira/RR

O padre Fernando Soares confirma: “Até já brincámos, os que temos o contexto mais católico, dizemos ‘agora é o momento da catequese’”.

Desde o seu início que a Equipa Intra-Hospitalar de Medicina Paliativa inclui um assistente religioso ou espiritual. O padre Fernando, atual capelão do hospital, participa nas reuniões semanais e acompanha os doentes neste serviço e no resto do hospital. “Todos os dias. Temos de assegurar este apoio 365 dias por ano, 24 horas por dia”, sublinha.

“Com a equipa, temos o hábito de reunir à quarta-feira. Mas, sempre que há uma sinalização, seja de alguém que está cá internado, seja algum doente que vem à consulta, ou, como já tem acontecido, está no domicílio, se tiver necessidades espirituais ou religiosas faz-se o contacto com o padre da paróquia (de residência) para haver esse acompanhamento.”

Os pedidos são vários. Para receber a comunhão, confessar-se ou simplesmente conversar. Mas, o padre Fernando garante que é mais uma dimensão que faz a diferença na vida dos doentes e das suas famílias. “Sinto claramente que sim. Na verdade, não há dimensão nenhuma que aqui seja descuidada. Por exemplo o luto. Familiares que foram cuidadores continuam a ser aqui acompanhados, mesmo depois da morte do seu familiar doente. O cuidador não foi abandonado”, sublinha.

É o caso de Maria Helena que, na sala de espera, aguarda para entrar. Vai ter consulta de apoio ao Luto. A filha única, Orquídea, de 45 anos, morreu com cancro há apenas três meses. É uma perda muito difícil de ultrapassar.

“Perdi a minha filha há pouco tempo. É uma dor muito grande. Era uma doente difícil, não fazia todos os tratamentos, porque também gostava das medicinas alternativas e achava que podia fazer as duas coisas. Um médico particular disse-lhe que podia”. Mas, não resultou.


Enfermeira Amélia Matos é uma das fundadoras da Equipa Intra-hospitalar de Cuidados Paliativos. Foto: Beatriz Pereira/RR
Enfermeira Amélia Matos é uma das fundadoras da Equipa Intra-hospitalar de Cuidados Paliativos. Foto: Beatriz Pereira/RR
"Não há dimensão nenhuma que aqui seja descuidada", incluindo o luto das famílias, diz o padre Fernando Soares. Foto: Beatriz Pereira/RR
"Não há dimensão nenhuma que aqui seja descuidada", incluindo o luto das famílias, diz o padre Fernando Soares. Foto: Beatriz Pereira/RR


Em 2020, deram-lhe dois anos de vida. Mas foi já este ano que as coisas pioraram. “Quando veio para as urgências foi quando a encaminharam para os cuidados paliativos”. Diz que aqui encontraram todo o apoio possível. “Desde a médica às enfermeiras. Foram todas cinco estrelas”, conta.

O marido não fala sequer da morte da filha. Mas Maria Helena percebeu que para ajudar os netos, tinha, também ela, de ser ajudada a saber lidar com a dor. “Estou a ter apoio no luto. Eu sou uma pessoa forte, mas acabei por aceitar. Pelo menos obriga-me a sair de casa”.

“Aqui preparam-nos para tudo, mas dão-nos qualidade de vida”

A proximidade e a atenção fazem toda a diferença na vida dos doentes. Adriana Rodrigues partilhou connosco a sua experiência. “Tenho 65 anos. Estou a lutar contra um cancro de pâncreas, grau 4, super invasivo. Assim que se descobriu fui encaminhada para cá, para haver um ajuste de medicação que me desse qualidade de vida e conforto”.

Está a ser acompanhada em paliativos há um ano e meio. No início não foi fácil, pelo que ouvia e não corresponde à realidade. “Há muitos mitos. Há quem batize esta consulta de ‘mortos vivos’. Toda a gente acha que quando se vem para os paliativos, é porque se está em fase terminal e é para acabar, quando no fundo o que nós temos aqui é carinho, apoio, amor”. Diz que aqui recuperou, de facto, qualidade de vida e ganhou confiança, que lhe permite sonhar e manter o gosto por se arranjar bem. Fala num “trabalho de excelência” da equipa, que “olha o doente no seu todo. Costumo dizer que isto é como um bolo inglês. No bolo vamos pondo frutas, aqui também põem tudo, para nos ajudar”.

Uma ajuda preciosa para a maioria dos doentes, ainda mais para os que não têm retaguarda familiar. E são muitos. “Eles aqui preparam-nos para tudo, mas dão-nos qualidade de vida. Dão-nos atenção, que muitas vezes não temos em casa, porque os filhos trabalham. Até nisso não está fácil, os trabalhos estão péssimos, porque hoje não há família para a entidade patronal. A nossa sociedade transformou-se em monstro. Parece que ninguém tem pai, ninguém tem mãe, ninguém tem irmãos. E ainda querem que as pessoas tenham filhos… Só se for para os avós cuidarem, os que podem”.

Na Unidade de Medicina Paliativa sente-se acompanhada. Na manhã em que conversámos teve consulta de psicologia. “É muito importante, dá muita segurança. Eu às vezes questiono-me, mas eu estou mesmo a passar por isto? Porque aqui o cuidado é tanto! É fantástico!”.


"Aqui temos carinho, apoio, amor”, conta Adriana Rodrigues, que luta contra um cancro no pâncreas. Foto: Ângela Roque/RR
"Aqui temos carinho, apoio, amor”, conta Adriana Rodrigues, que luta contra um cancro no pâncreas. Foto: Ângela Roque/RR

“Perdi o medo. Não sei explicar o alívio que a gente sente!”

Pedro Aleixo, de 54 anos, sofre de cancro colorretal. Foi internado em Oncologia em agosto de 2023. Ser acompanhado, desde fevereiro de 2025, por esta equipa de paliativos, mudou a sua vida. Aqui há menos burocracia, mais proximidade e mais atenção às necessidades particulares de cada doente.

“São super atenciosos, estão sempre super preocupados connosco. Há uma capacidade muito maior de integração aqui. Eu não sei explicar o alívio que a gente sente! Eu telefono para cá e eles estão disponíveis, tenho as receitas logo nessa mesma tarde no telemóvel. Eu tenho uma cama articulada, e aqui a assistente social acionou estes serviços todos, com a Segurança Social, com a Santa Casa Misericórdia, com a Liga Portuguesa contra o Cancro, que me encaminhou bem para as finanças. Esta equipa tirou-me um peso de cima!”.

O controle da dôr é muito importante, mas a atenção que se recebe também. Andar com um kit de emergência e ter os contactos da equipa no telemóvel mudou tudo. Pedro conta que ganhou confiança e recuperou a autonomia. Conseguir ir ao café todos os dias é já uma grande vitória.

“Já não ia ao café há muito tempo, porque tinha medo. Se me dá alguma coisa? Sou sozinho”, conta. Não quer ser fotografado, mas mostra a mochila que agora traz sempre consigo. “Aqui consegui apoio… tenho a minha mochila pesada, mas já tenho tudo que eu preciso”, incluindo uma máquina de oxigénio. E sente-se seguro, por ter a quem ligar. “Numa urgência, o facto de eu ter aqui no telemóvel ‘doutora Margarida’, ‘enfermeira Clara’, ‘enfermeira Dora’, que são os telemóveis de serviço, só isso já me dá força! Hoje não vou ao café aqui, vou ao outro mais à frente. Já estou tranquilo. Mas, foi preciso uma aprendizagem, voltar a saber o que é viver”. E saber viver é não se proibir de pequenos prazeres, que valem tanto.

“Neste momento, a minha decisão é que estou farto de fazer dietas. Quero comer o normal. Quero, por exemplo, comer um pastel de mata de manhã. Se as pessoas soubessem come é bom poder comer um pastel de manhã de vez em quando, davam mais valor àquilo que têm e fazem. Tenho aprendido a descobrir novamente o valor da vida”.


Enfermeira Clara Geraldes também já não se imagina a trabalhar noutra área. Foto: Beatriz Pereira/RR
Enfermeira Clara Geraldes também já não se imagina a trabalhar noutra área. Foto: Beatriz Pereira/RR
Enfermeira Clara conversa com a mãe de uma doente. Foto: Ângela Roque/RR
Enfermeira Clara conversa com a mãe de uma doente. Foto: Ângela Roque/RR


“Aqui ele até se esquece da doença”

A garantia de ter sempre a resposta também tranquiliza Luísa, de 75 anos. É a cuidadora do marido, Basílio, de 74. Um agravamento de sintomas, na véspera, obrigou-os a vir nesta manhã pedir ajuda. Sabem que aqui são sempre atendidos. Fala com a Renascença enquanto o marido já subiu para fazer um tratamento em oncologia.

“Ele adora vir para aqui e vem todo contente, até se esquece da doença”, diz. Para além do controlo da dor, e da vigilância de vários parâmetros físicos, aqui têm um acompanhamento próximo que não descura a parte psicológica do doente e das famílias. “É muito importante a parte humana, tanto das enfermeiras como das médicas. Telefonam para casa, ou eu mando uma mensagem a perguntar qualquer coisa e respondem, ou dizem-me para ouvir”.

Redobra a alegria quando conta um episódio recente. “A doutora realmente é fantástica. Esteve de férias, acabou as férias a uma sexta-feira, e nesse dia chegou a casa, ainda não estava a trabalhar, e mandou-me uma mensagem: ‘então, como é que está o nosso rapaz? Eu fiquei... sem palavras”.

A doutora é Margarida Carrolo. A médica confessa, com emição, que é difícil na equipa não levarem para casa - no coração e no pensamento - muitos dos doentes que acompanham. “Sim, levamos muitas vezes os doentes connosco. Esta é uma área da medicina difícil de fazer. Estamos constantemente a lidar com a dor, com o sofrimento e a morte. Sentirmos esse reconhecimento dos doentes contribui muito para o nosso bem-estar emocional, para nos conseguirmos manter a fazer o nosso trabalho com alento e com vontade”.

Num trabalho tão duro e exigente, não se pode descurar o apoio aos próprios profissionais de saúde. A enfermeira Amélia Matos diz que isso está garantido na equipa e é um alerta que fazem nas formações que dão aos profissionais de outros serviços. “Compete-nos a nós também, como equipa intra-hospitalar, porque temos a noção que profissionalmente lidar com o sofrimento é algo muito exigente. E quando fazemos formação na instituição, uma das áreas que tentamos sempre abordar é o apoio ao profissional”.

“Dentro da equipa há uma dinâmica bem estabelecida, de proteção, para percebermos quando algum dos colegas está numa fase em que um doente o impactou mais. A equipa tem estratégias para lidar com isso. Dou-lhe só um exemplo: nós temos muitos doentes jovens, infelizmente cada vez mais, muitas das vezes são da idade dos profissionais desta casa, e o processo de identificação é uma coisa natural, mas tem de se lidar com isso. As pessoas estão à vontade para dizer ‘hoje vou precisar de ser substituída’, ou ‘vou precisar de tomar um café para falar sobre isto’, ou ‘hoje vou trazer um caso à reunião da equipa que está a mexer comigo e eu preciso que vejam este caso comigo’. Conseguimos isto na equipa, muitos anos a trabalhar juntos, mas tentamos levar isto também às equipas com quem trabalhamos”, conta.


Equipa de Unidade de Medicina Paliativa do Hospital de Santa Maria. Foto: Beatriz Pereira/RR
Equipa de Unidade de Medicina Paliativa do Hospital de Santa Maria. Foto: Beatriz Pereira/RR

“Cuidados paliativos não são só para o fim de vida”

Com a formação que estão a dar esperam sensibilizar colegas de outras unidades para a importância dos paliativos, para melhorar a resposta precoce aos doentes. Margarida Carrolo sublinha a importância de se agir mais cedo. “Os oncologistas referenciam doentes para a medicina paliativa que, ao olhar deles, não têm capacidade para realizar tratamento naquela altura, seja de quimioterapia ou de imunoterapia, e nós conseguimos controlar os sintomas e devolver um status ao doente que permite começar o tratamento”. Ou seja, melhoram a condição física dos doentes, ao ponto de voltarem a começar a fazer tratamento.

“Uma das mais valias da medicina paliativa é esta, porque nem sempre são doentes que estão muito próximos da morte, às vezes não é disso que se trata. Mas continua, de facto, a haver muito a ideia na comunidade médica de que os cuidados paliativos são apenas para o fim de vida. Existe esse estigma, e temos doentes a quem os colegas propõem cuidados paliativos que acabam por recusar ou ficar muito ansiosos porque associam isso ao fim de tudo, ‘já não vão fazer mais tratamentos, o doutor vai desistir de mim e estou quase a morrer’. E isso não é, de facto, verdade”.

Na equipa encontrou respeito mútuo. E apesar de não ser crente, valoriza a assistência espiritual que aqui é dada. “Sou ateia, mas fico francamente feliz quando os doentes partilham comigo as questões de religião. Acho que as pessoas que têm fé e uma religião têm um final de vida mais fácil, porque conseguem usar a sua fé como uma ferramenta de auxílio”.

E deixa uma mensagem final. “Passamos a vida a desejar às pessoas que tenham uma boa vida, feliz e completa, com muitas experiências, mas acho que é fundamental pensarmos que também é importante ter uma boa morte. A verdade é que ter uma morte tranquila, calma, digna, em paz, faz a diferença, quer para quem parte, quer para quem assiste a essa morte. Nós somos muitas vezes chamados nessa fase final da vida do doente, e é algo que os familiares reconhecem e claramente ajuda-os no início do processo de luto”.


Maria Conceição Marques, auxiliar da Equipa de Unidade de Medicina Paliativa do Hospital de Santa Maria. Foto: Beatriz Pereira/RR
Maria Conceição Marques, auxiliar da Equipa de Unidade de Medicina Paliativa do Hospital de Santa Maria. Foto: Beatriz Pereira/RR
Marisa Carmo, auxiliar da Equipa de Unidade de Medicina Paliativa do Hospital de Santa Maria. Foto: Beatriz Pereira/RR
Marisa Carmo, auxiliar da Equipa de Unidade de Medicina Paliativa do Hospital de Santa Maria. Foto: Beatriz Pereira/RR


“Sinto-me especial em trabalhar aqui”

Na receção da Unidade de Medicina Paliativa estão neste dia Maria Conceição Marques e Marisa Carmo. São quem habitualmente dá as boas-vindas a quem chega, e sentem-se, também, elas parte desta equipa que faz a diferença na vida de tantos doentes e das suas famílias. “Fazemos aqui o acolhimento, vemos com quem o doente vem acompanhado, como chega, se é preciso deitar, sentar num cadeirão, para ficar o mais confortável possível enquanto aguarda a consulta”.

Mas, a provar que ainda há muito desconhecimento sobre o que esta equipa faz, está o próprio testemunho de Conceição. “Trabalho no hospital há mais de 30 anos, e não tinha sequer conhecimento que os cuidados paliativos existiam! Vim aqui encontrar um espaço que faz tanta diferença na vida do doente”.

E diz com orgulho: “os nossos cuidados paliativos aqui de Santa Maria são realmente excecionais”. Marisa está há menos tempo na unidade, mas subscreve. “Partilho completamente esta opinião. Sinto-me especial em trabalhar aqui”.


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