O AVC deu-lhes outra oportunidade. Joana abrandou, Fernando deixou os vícios

Ela tem 43, ele tem 63. Sofreram ambos um acidente vascular cerebral (AVC) há quatro meses e reconhecem que tiveram sorte. A paragem forçada obrigou Joana e Fernando a viver de uma maneira diferente. O problema atinge cada vez mais pessoas em idade ativa e continua a ser a principal causa de morte e de incapacidade em Portugal. Estima-se que haja 25 mil novos casos de AVC todos os anos. Um em cada três doentes não sobrevive. Quem fica para contar a história nem sempre encontra respostas de reabilitação à medida das necessidades. O Dia Mundial do AVC assinala-se na quarta-feira.

28 out, 2025 - 06:30 • André Rodrigues , Rodrigo Machado (ilustração)



Ouça a reportagem Renascença
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Aquela manhã de 11 de junho tinha tudo para ser o começo de um dia absolutamente normal. Joana tem 43 anos. Naquele dia, saiu de casa e levou a filha à escola. A seguir, ia trabalhar. Mas já não foi. Seguiu-se uma sucessão muito confusa de acontecimentos. Alguns deles, de difícil reconstituição.

“De repente, comecei a sentir uma forte dor de cabeça… Como se a cabeça estivesse a ser apertada. Estava a conduzir, encostei e desmaiei. E depois de desmaiar, é que ficou tudo muito confuso”, recorda.

Tanto quanto consegue lembrar-se, depois do apagão momentâneo, “estava à porta de casa”, mas achava que tinha iniciado o trajeto entre a Póvoa de Varzim e o Porto para entrar ao serviço na redação da agência Lusa.

“Dei por mim a tentar ligar para o meu pai, o que é um bocado estranho, tendo em conta que ele morreu há cinco anos… Liguei para uma amiga minha, que era funcionária dos bombeiros onde o meu pai costumava estar, e pedi-lhe para, quando o meu pai lá chegasse, para me ligar."

A estupefação do outro lado da linha fê-la perceber que algo não estava bem: “Então, essa minha amiga começou a perguntar onde é que eu estava e foi quando me apercebi que estava à porta de casa. E que não era suposto estar."

A confusão aumentava. Joana foi aconselhada a ligar para o 112 mas, em vez disso, telefonou para a Linha SNS 24 que, de imediato, a encaminhou para o Hospital da Póvoa de Varzim.

Quando lá chegou, começou a perder o controlo dos movimentos do lado direito. Ainda soube dizer o nome. E pouco mais.

“E se eu ficar assim?..."

Comecei a sentir a cara petrificada, como aquela sensação de anestesia no dentista”, rememora.

Desorientada, ainda tentou levantar-se, mas a enfermeira da triagem foi perentória: “Não se mexa que está a ter um AVC.” O pensamento imediato foi “ela está maluca, eu não tenho idade para isso”.

Mas estava mesmo a acontecer. Joana foi levada de emergência para a Via Verde AVC do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos.

Vem aí a miúda do AVC." É das poucas coisas que Joana se lembra de ouvir no momento da admissão.

A pessoa mais nova a seguir a mim que tinha tido um AVC tinha perto de 70 anos”, relata esta jovem sobrevivente de AVC, jornalista de profissão.

O problema continua a ser mais frequente em idades acima dos 65 anos, mas, nos últimos anos, a incidência em faixas etárias mais baixas tem estado a aumentar.

Ainda assim, é estranho ver alguém tão jovem dar entrada num hospital por causa de um problema destes.

Joana ficou internada durante uma semana numa enfermaria mista da unidade de AVC. Quando entrou, perguntaram-lhe se estava ali porque não havia lugar noutro serviço.

“Não, tive um AVC”, respondeu. O olhar que lhe devolveram foi de previsível incredulidade. “Acontece.”


Joana Carneiro, 43 anos, jornalista da agência Lusa, sobrevivente de AVC. "Na enfermaria, a pessoa mais nova a seguir a mim tinha perto de 70 anos". Foto: André Rodrigues/RR
Joana Carneiro, 43 anos, jornalista da agência Lusa, sobrevivente de AVC. "Na enfermaria, a pessoa mais nova a seguir a mim tinha perto de 70 anos". Foto: André Rodrigues/RR

O corpo não respondia, a cabeça não parava. As dúvidas adensavam-se: porque é que estava ali? Porque é que estava sozinha? E o que seria da filha, na altura com nove anos?

“Eu sei que ela tem pai, tem tios, mas eu sou a mãe. Mas tinha sempre aquela preocupação… e se eu ficar assim? Tenho de deixar de trabalhar? E se eu deixar de trabalhar, como é que eu vou sustentá-la? E se a recuperação for longa?

Por ser menor, a filha não podia visitá-la no hospital. E para que a preocupação não fosse maior, Joana preferiu que a família lhe dissesse que a mãe se tinha ausentado em serviço, “coisa que a que ela até está habituada”.

Uma semana depois, Joana regressou do hospital, suportada por um andarilho.

“Ela só me disse assim: ‘o avô também andou de andarilho’. Ela era pequenina quando o meu pai morreu”.

De imediato, Joana desatou o nó que se formou na cabeça dela e da filha. Disse-lhe que aquilo nada tinha a ver com o cancro no pâncreas que o avô teve.

A mamã teve um AVC, mas está bem, só não consegue andar agora, está um bocado cansada, mas está bem”.

A explicação não foi suficiente para tranquilizar as preocupações da filha. “Hora e meia depois de ter chegado a casa, eu estava no quarto e ela veio ter comigo… sentou-se à minha beira e disse-me: ‘tu tiveste muita sorte. Mas eu também tive, podia ter ficado sem ti’.

A resposta para todas as dúvidas sobre o AVC estavam no Google. “Foi isso que ela fez”.

“Sinto-me a Dory do Nemo”

Quatro meses depois do AVC, Joana voltou à redação “e foi difícil sentar ao computador, abrir o programa onde escrevemos e ficar a olhar para aquilo ‘como um boi a olhar para um palácio”.

O AVC apagou-lhe a memória de como funcionava a aplicação com que trabalha todos os dias… deixou de saber como se editavam os áudios.

“Sinto-me a Dory do Nemo, porque tenho de apontar tudo”, lamenta.

Mas, “indo devagarinho, vai-me dando confiança”. O próximo objetivo é poder levantar-se da secretária e regressar às reportagens no terreno.

Uma meta que Joana gere com moderada expetativa: “tenho de me controlar, e nisso o meu chefe impecável, porque ele controla-me, mas tenho muitas saudades de estar no terreno”.

Entre 2019 e 2024, Portugal registou uma tendência crescente nos casos de AVC. Só em 2023, o INEM socorreu 8.796 pessoas em 2023, mais do dobro dos casos registados em 2019.

Em 2024, a Sociedade Portuguesa do AVC já apontava para 30 mil novos casos anuais.


“Sabemos que cerca de 20 a 40% desse aumento está nessa faixa abaixo dos 40, 45 anos, nos últimos anos”, assinala Denis Gabriel, neurologista no Hospital de Santo António que também integra a direção da Sociedade Portuguesa do AVC (SPAVC).

Em muitos casos, são doentes que, à partida, não apresentam os fatores de risco clássicos como hipertensão, colesterol ou obesidade.

“Muitos destes doentes vão tendo fatores de risco, mas de forma despercebida, ou seja, atendendo à mudança de ritmo de vida, acabam por descurar os seus estilos de vida, vão sendo um bocadinho mais sedentários, podem desenvolver um aumento do mau colesterol no sangue, ou uma hipertensão episódica”, diz o especialista.

São, no fundo, doentes que “podem achar que não têm fatores de risco, mas, na verdade, podem tê-los”.

Por outro lado, os sintomas são silenciosos e, a menos que sejam detetados por mero acaso num rastreio de rotina, só se manifestam na pior das situações. O mesmo é dizer: quando o acidente vascular cerebral acontece.

A partir daí, a primeira vez pode não ser a última. Razão pela qual Denis Gabriel refere ser fundamental compreender as causas. Que nem sempre são as mais óbvias.

"Podemos estar muito preocupados em tratar uma hipertensão, uma diabetes, uma dislipidemia e isso vai ser muito bom, porque estamos a reduzir o risco de doença cerebrovascular e cardiovascular em termos globais".


Denis Gabriel, neurologista no Hospital de Santo António, membro da Sociedade Portuguesa do AVC. Foto: André Rodrigues/RR
Denis Gabriel, neurologista no Hospital de Santo António, membro da Sociedade Portuguesa do AVC. Foto: André Rodrigues/RR

Mas há outros fatores de risco que podem estar a passar ao lado do diagnóstico.

“Se nós percebermos que aquilo que motivou o evento foi a fibrilhação auricular, e introduzirmos uma hipocoagulação na dose certa, vamos reduzir o risco de recorrência deste evento”, acrescenta.

Perante as evidências, o neurologista defende que é necessário apostar mais em internamentos em unidades de AVC, “para promover esta investigação, que deve ser célebre, para nós não perdermos esta oportunidade de mudar o risco de recorrência. Isso é absolutamente determinante”.

Anualmente, estima-se que, em Portugal, haja 25 mil novos casos de AVC. Um em cada três doentes não sobrevive, o que faz com que esta continue a ser a principal causa de morte e de incapacidade.

"Não é para voltar aos maus vícios"

Fernando Sobral podia ser um desses casos. Aos 63 anos sofreu um AVC que lhe provocou danos físicos profundos. Há quatro meses, este doente apresentava um quadro clínico de extrema complexidade.

A sobrevivência aconteceu, contra tudo o que poderia ser inicialmente provável.

Hoje, ainda está internado, no Hospital da Prelada, no Porto, e é utente diário do ginásio de reabilitação, da terapia da fala e das consultas de neuropsicologia.

Deixei de trabalhar para vir para a reforma para passear um bocado e aconteceu isto”, conta à Renascença, enquanto vai pedalando na bicicleta estática onde se exercita.

Fernando reconhece que o problema foi provocado por alguns excessos ao longo da vida. À cabeça, o tabaco. Depois, o álcool.

O susto fá-lo prometer a si mesmo que “não é para voltar aos maus vícios”.

Hoje já é praticamente autónomo. Toma banho, come, veste-se e calça-se. Tudo sozinho. Mérito dos profissionais de saúde e do próprio doente -a força de vontade é um fator determinante.


Fernando Sobral, 63 anos, sobrevivente de AVC. Quatro meses depois, ainda está internado no Hospital da Prelada. Foto: André Rodrigues/RR
Fernando Sobral, 63 anos, sobrevivente de AVC. Quatro meses depois, ainda está internado no Hospital da Prelada. Foto: André Rodrigues/RR

“O AVC obrigou-me a parar”. Mas há vida depois do AVC

“Cada caso é único. A primeira coisa que fazemos é compreender o desempenho e o funcionamento cognitivo do utente quando é internado”, refere Inês Guimarães, neuropsicóloga no Hospital da Prelada.

Esta especialista defende que a intervenção em saúde mental no pós-AVC é decisiva para uma reabilitação eficaz.

Entre 30% e 40% dos casos desenvolvem sintomas de depressão e de ansiedade, porque “há uma perda funcional significativa na maior parte dos casos”.

Inês Guimarães lembra que “há vida após o AVC”, só que é uma vida diferente.

A adaptação “pode acarretar um prejuízo emocional significativo: eu sou eu, mas agora poderei ter de ser um eu diferente”.

Se para um doente idoso é difícil assimilar essa ideia, mais ainda para uma pessoa entre os 30 e os 50 anos.

Quando falamos em faixas etárias distintas, falamos também em exigências completamente distintas. E, em termos emocionais, é muito mais complexo e mais desafiante para um jovem poder alcançar esses objetivos”, reconhece a neuropsicóloga.

É aqui que entra a necessidade de compreender tudo o que aconteceu. Invariavelmente, todas as perguntas começam por ser dirigidas pelo doente a si mesmo, como se estivesse à frente de um espelho, questionando-se. Por vezes, culpando-se: porquê a mim?... porquê eu?... porquê agora?... e depois?...

“É uma perspetiva partilhada por muitos utentes que entram neste gabinete e que viviam no limiar de uma agitação constante de querer dar resposta imediata a todas as problemáticas que vão surgindo”, constata Inês Guimarães.

“Mas é curioso como muitas vezes fazem esta inferência: o AVC obrigou-me a parar”.

"Resposta escassa". Reabilitação não chega a todos os sobreviventes

Todos os anos, estima-se que haja 20 mil sobreviventes de AVC em Portugal. Boa parte deles necessita de cuidados especializados de reabilitação que não é apenas física.

A resposta é escassa”, reconhece o presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação.

Renato Nunes, que é também médico fisiatra no Hospital da Prelada, existe um universo de “7.500 a 8.000 doentes com AVC por ano, a precisar de cuidados especializados em centros de reabilitação. Para esses, seriam necessárias cerca de 700 camas só para tratar AVC”.

Problema: os centros de reabilitação não tratam só os AVC.


Renato Nunes, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação, fisiatra no Hospital da Prelada. Foto: André Rodrigues/RR
Renato Nunes, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação, fisiatra no Hospital da Prelada. Foto: André Rodrigues/RR

“Globalmente, Portugal tem pouco mais de 300 camas. Só por aqui ficamos com a ideia de que tem de haver um grande investimento por parte do Estado em centros especializados de reabilitação”, refere.

Por outro lado, o diretor do Serviço de Medicina Física e de Reabilitação do Hospital da Prelada identifica outro problema: “aquando da alta dos centros especializados e dos hospitais para o domicílio deparamo-nos com uma dificuldade que tem a ver com o tempo até que a pessoa seja integrada num programa de ambulatório”.

Só que o tempo não para. E quanto mais demorar a intervenção reabilitativa num doente com AVC, mais prolongados serão os efeitos das sequelas. Se não mesmo definitivos.

Renato Nunes avisa que “qualquer interrupção pode trazer uma não recuperação, ou uma recuperação que fica aquém daquilo que era expectável com a continuidade dos tratamentos e, no limite, o desenvolvimento de complicações associadas à não reabilitação”.

Por isso, o presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação sublinha que “os centros de reabilitação têm de ser capazes de receber doentes complexos, que exijam programas abrangentes e multimodais, mas articulados e especializados nesta patologia”.

“O AVC fez-me bem"

Regressamos a Joana. Aos 43 anos, esta jornalista fintou a adversidade com um invulgar sentido de humor.

“Eu dei o nome ao andarilho. Já que ele ia carregar-me, achei que ele tinha direito a ter o nome. Era o Chico. E quando eu dizia que ia com o Chico para aqui e para ali, as pessoas estavam à espera que aparecesse uma pessoa”, confessa entre risos.

Mas não foi tudo. Depois do andarilho, Joana suportou-se numa bengala.

Um dia, numa das consultas de acompanhamento pós-AVC em psiquiatria, disse ao médico que estava acompanhada por uma Lucinda.

“De repente, o homem olha para mim muito admirado e diz-me: ‘a Joana sabe que entrou neste gabinete sozinha’. E eu disse que a Lucinda é a bengala… Olhou para mim e deve ter pensado, pronto, pifou de vez”, recorda.

Joana admite que há momentos em que não seria nenhum exagero acreditar nisso.


Como naquela vez em que a sopa não tinha sabor e decidiu juntar açúcar em vez de sal; ou como no dia em que foi com a mãe às compras e esqueceu-se dela no supermercado.

“Lá está, eu era capaz de fazer isto antes. Agora faço-o com mais frequência”, diz.

Em vez de incompreensão, Joana vê mais paciência na forma como lidam com os seus esquecimentos, ou com a sua irritabilidade.

Cheguei àquela altura que disse: ok, isto aconteceu, mas não é isto que me vai definir”.

Aos 43 anos, esta mulher e mãe de uma criança de nove anos reconhece que o AVC “mudou a forma de estar e de ver algumas coisas… Ou, como diz o meu irmão: o AVC fez-me bem”.

Parece estranho pensar assim. Ou, então nem tanto. A doença deu-lhe uma segunda oportunidade: “já não fazia desporto há quatro ou cinco anos. Voltei a fazer. Porque precisei de fazer fisioterapia… e agora é uma coisa que eu faço outra vez com gosto e de forma muito regular”.

Joana sente que teve a sorte do seu lado, mas recusa passar a vida a pensar no que lhe vai acontecer.

A regra é (aparentemente) simples: viver hoje, planear o dia da manhã... "E vamos indo..."


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