Incerteza com prazo de validade

Pandemia

​O inverno começa a 21 de dezembro e termina a 20 de março de 2021. Dizer, então, como vão evoluir os números da pandemia é um tiro no escuro. Todas as projeções parecem destinadas a falhar, tendo em conta a experiência dos últimos meses. A 2.ª vaga bateu à porta muito mais cedo do que era esperado.

1. Vacina deverá chegar em janeiro

O ato de “levar uma pica” nunca foi tão desejado por milhões de pessoas pelo mundo; talvez mesmo aqueles que têm fobia de agulhas queiram, por uma vez, ousar experimentar aquilo que os seus instintos dizem para fugir. Só assim, pensam os cientistas, a normalidade pré-pandemia poderá regressar.

Na quinta-feira, o Governo irá apresentar a estratégia nacional de vacinação para a Covid-19, revelou António Costa, em entrevista ao "Observador"; os detalhes não são conhecidos, mas não são necessárias capacidades divinatórias muito fortes para suspeitar que os idosos – segmento da população com maior risco de falecer devido ao coronavírus – e os trabalhadores com profissões de risco, como é o caso dos profissionais de saúde, terão acesso prioritário.

Marta Temido já admitiu publicamente que“o Governo está a preparar tudo para ter a primeira distribuição da vacina em janeiro”.

Os anúncios recentes relativos às vacinas da Pfizer, Moderna e AstraZeneca são motivo para otimismo, mas é preciso ter também cautela, avisa David Marçal, comunicador de ciência e coautor do livro “Apanhados pela Pandemia”, em declarações à Renascença.

“Temos que ver sempre esses anúncios com alguma cautela, não devemos ficar demasiado otimistas por causa do anúncio. Mas penso que as razões que há para ficarmos otimistas são: o grande investimento que há nas vacinas, o enorme número de candidatos a vacinas, nomeadamente na fase final dos ensaios clínicos. E a diversidade de tecnologias utilizadas”, diz.

Havendo um desconhecimento do processo científico, os anúncios isolados relativos às taxas de imunidade conferidas pelas vacinas podem criar confusão. “Muitas vezes as pessoas que acompanham este processo científico em direto podem ficar um bocadinho baralhadas quando veem ensaios clínicos como o da Oxford, que foi interrompido porque foi identificado um caso grave, mas isso é normal. Isso só mostra a robustez do processo e a ética com que ele é conduzido.”

2. Nenhum estudo sobre a evolução da pandemia irá acertar

Estudos diferentes traçam cenários diferentes para os próximos meses, mas nenhum deve ser tomado como verdade absoluta num prazo temporal superior a 15 dias. Como diz o lugar-comum, as circunstâncias estão sempre a mudar.

“Os modelos epidémicos são modelos matemáticos que, em determinadas circunstâncias, conseguem prever a progressão do contágio de uma doença de uma população”, explica David Marçal. Ora, “os modelos, sendo ferramentas úteis, são um bocadinho como a previsão meteorológica. Quando mais curto o prazo for, mais fiáveis eles são.”

As diferentes projeções para os próximos meses – da Universidade de Washington, do MIT ou de outras entidades – não são consistentes entre si. Se uma aponta para cinco mil casos por dia, outra chega aos 15 mil, no final de dezembro. Outro exemplo: a última projeção do Instituto Ricardo Jorge estima 9 mil casos diários a 4 de dezembro.

Os estudos “não são resultados certos”, mas é importante comunicá-los, para antecipar problemas – o que por si é um desafio. “O que os modelos fazem é: se isto se verificar assim e assim, então o número de contágios será este. Há resultados que assentam em pressupostos. É algo muito difícil da comunicação de ciência. Implica comunicar a incerteza”, diz.

Para Francisco George, presidente da Cruz Vermelha Portuguesa e antigo líder da Direção-Geral da Saúde, “o futuro não pode ser antecipado em termos da atividade pandémica”. “Na ausência de uma boa de cristal, não podemos estimar aquilo que vai acontecer a partir do meio de dezembro”, atira.

3. SNS não entrará em rutura

Apesar de o Serviço Nacional de Saúde estar a ser testado como nunca foi, Francisco George, presidente da Cruz Vermelha Portuguesa e antigo líder da Direção-Geral da Saúde, não antecipa um estado de rutura.

Em declarações à Renascença, o responsável fez questão de lembrar que o SNS “é robusto. Apesar de críticas frequentes, dá mostras de grande capacidade de atendimento, mesmo sob pressão”.

Além disso, se for necessário, existe um “conjunto largo, vasto, de camas hospitalares quer do setor privado, quer do setor social, que podem ser mobilizadas para estes atendimentos, se a pressão aumentar”.“Em termos de pânico, diria que não há razões para tal. É preciso pôr de lado todos esses receios que um problema novo, por vezes, origina. Por de lado, sublinho, os medos injustificados e ter confiança nas respostas que vão ser dadas, não só em Portugal, como nos restantes países europeus. É preciso confiança”, diz.

4. Comportamentos de risco tenderão a aumentar

A fadiga da pandemia é um problema que, à medida que os meses passam, tem vindo a ganhar novas dimensões. Os portugueses estão saturados dos constrangimentos em vigor e cada vez mais adotam comportamentos desafiantes da lei e de risco. Com a tolerância a decrescer, primeiro pensamento de alguns passou a ser: “Como vou contornar esta regra?”

“As pessoas, quando são pressionadas para cumprirem durante muito tempo um conjunto de regras com rigidez, podem desenvolver, de forma latente, uma necessidade até mais exagerada de fazer alguma coisa”, explica Saúl Neves de Jesus, coordenador do Fórum Nacional de Psicologia e vice-reitor da Universidade do Algarve, em declarações à Renascença.

Para algumas pessoas, a fuga às regras estará relacionada com “uma necessidade de compensação, de alívio”. “A pessoa vai enchendo, vai enchendo, e chega a um ponto e já não aguenta mais. E, pronto, tem que fazer: sobretudo, porque não está a ver que aquilo vá terminar amanhã ou depois ou para a semana.”

De acordo com um estudo recente da Organização Mundial de Saúde, a “Fadiga da Pandemia” já afeta 60% da população.

5. Saúde mental dos portugueses sairá prejudicada

Incerteza raramente é sinónimo de boa saúde mental. Ora, a pandemia veio adicionar uma dose gigantesca de incerteza na vida dos portugueses. É expectável, por isso, que a saúde mental de muitos venha a sair lesada (nos próximos meses e a longo prazo).

“É óbvio que a pandemia veio aumentar os níveis de incerteza”, explica Saúl Neves de Jesus, coordenador do Fórum Nacional de Psicologia e vice-reitor da Universidade do Algarve. Até porque “as pessoas não vivem só o presente, vivem também por antecipação”.

De acordo com especialista, nos últimos anos, nas sociedades ditas desenvolvidas, de uma forma geral, os indicadores de saúde têm revelado uma deterioração da saúde mental. “Porque as sociedades são cada vez mais competitivas, apresentam indicies de incerteza maiores, faz com isso aconteça. Não dependemos só de nós. Nós temos objetivos, queremos alcançar resultados.”

“A partir da altura em que foi decretada a pandemia, a pouco e pouco foi-se verificando uma procura superior de pessoas com doença de depressão, ansiedade, e outro tipo de patologias, aos serviços de saúde públicos, privados e sociais”, diz Delfim Oliveira, presidente da Associação de Apoio aos Doentes Depressivos e Bipolares, (ADEB), em declarações à Renascença.

De acordo com o coordenador do programa de Saúde Mental da Direção-Geral da Saúde, o número de diagnósticos de patologia depressiva aumentou quase 100% nos últimos meses.