Os portugueses toleraram a proibição de circulação na Páscoa, resmungaram contra as exceções no fim de semana de Fiéis Defuntos, mas condicionar a circulação e ajuntamentos familiares no Natal, o Governo sabe, é uma ideia potencialmente explosiva. António Costa não está disposto a sofrer o golpe, mas também sabe que não pode deixar passar as festividades em falso.
“Ficaria muito surpreendido se não houvesse estado de emergência no Natal, porque isso significa que a evolução do combate à epidemia teria sido extraordinária”, admitiu António Costa, a 21 de novembro, quando, no dia anterior, Marcelo Rebelo de Sousa já havia reiterado que ia não hesitar “um segundo” em propor a renovação do estado de emergência “a 23 de dezembro”.
Nem o primeiro-ministro nem o Presidente da República parecem acreditar que a evolução da pandemia durante o mês de dezembro será muitíssimo melhor do que em novembro. Há três meses que os dois políticos vêm a alertar os portugueses para se prepararem para um Natal “diferente”, com menos familiares à mesa.
Alguns países europeus já anunciaram medidas para limitar as reuniões familiares e sociais durante o Natal. Por exemplo: Espanha estabeleceu um máximo de seis pessoas, tendo também proposto o recolhimento obrigatório nocturno entre as 1h e 6h nos dias 24 e 31 de dezembro.
Milhares de emigrantes portugueses cancelaram as suas habituais férias de verão em Portugal. Tudo indica, o cenário será o mesmo no período do Natal e Ano Novo.
“Está a ser feito um esforço para o Natal. Agora, a grande questão é se este esforço vai dar em algo mais positivo ou vamos estar na situação em que estamos agora. Portugal - lá fora - está na lista de países para não visitar ou para não regressar”, diz João Sardinha, doutorado em Estudos Migratórios pela Universidade de Sussex, no Reino Unido, em declarações à Renascença.
Devido a Portugal constar, neste momento, das listas de países para os quais é preciso fazer quarentena no regresso, os emigrantes portugueses estarão inclinados a não visitar a terra natal durante o mês de dezembro. “Se vierem e tiverem que passar duas semanas em casa, essa é uma situação que não dá para muitos. Os patrões não vão compreender”, explica João Sardinha.
A Renascença questionou o Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre que medidas e restrições estão a ser pensadas para acolhimento dos emigrantes, durante o período das festividades. Berta Nunes, Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas, remeteu explicações para mais tarde.
Ir às compras em período natalício é um pequeno apocalipse apenas tolerável devido ao espírito da época. Por norma, há encontrões nos corredores apinhados, filas para embrulhar presentes.
Este ano, às crianças, poder-se-á sempre dizer que o Pai Natal ficou encalhado na Lapónia. Mas alguém terá de pôr uma máscara ao menino Jesus no presépio e arriscar ir mesmo às compras. Quanto antes, melhor.
António Sampaio de Mattos, presidente da Associação Portuguesa de Centros Comerciais, não antecipa um período mais congestionado dentro das portas dos centros - nem dá azo ao receio de que esses espaços possam ser um possível foco de contágio.
“É evidente que quanto mais pessoas houver num local, maior é a possibilidade de transmissão do vírus. Acontece que os centros comerciais estão preparados desde há muito tempo e, entre as várias medidas que tem de tomar por iniciativa e por obrigação legal, uma delas tem a ver com a capacidade máxima que está definida para cada centro comercial em função da sua área”, diz, em declarações à Renascença.
Por causa do limite de cinco pessoas por 100 metros quadrados, “o problema de excesso de pessoas de concentração não se coloca. A única coisa que pode haver é mais filas de espera para entrar nas lojas”, explica.
Para reduzir as filas à porta, a APCC tem vindo a pedir ao Governo que altere o limite, mas sem sorte. O rácio de 5 pessoas por 100 m2 é o “mais baixo da Europa”, enquanto há países em que este número chega às 25. “Basta olhar para ver que as lojas estão vazias. Há muito espaço para as pessoas estarem separadas e serem atendidas”, justifica.
Muitos centros comerciais lançaram também, nas últimas semanas, campanhas de compras antecipadas. Mas é difícil ver o impacto. “Nota-se que está a haver adesão. Mas isso só vamos poder ter noção quando chegarmos ao fim do prazo e perceber se houve muita gente a fazer compras ou não. Como nós estamos num período de menor afluência, por via da pandemia, os tráfegos baixaram imenso. Têm vindo a recuperar, mas estão ainda um bocado longe dos tráfegos que existiam em 2019”, diz.
Os comerciantes de rua estão “prontos” para o período mais intenso do Natal e não antecipam problemas de maior, mesmo tendo em conta todas as “limitações”, garante Lurdes Fonseca, presidente da União de Associações de Comércio e Serviços (Zona de Lisboa), em declarações à Renascença. “Nas lojas de rua, as pessoas não ficam muito tempo à espera. Se estiverem cheias, não entram”, explica.
Para o setor, o último mês do ano de 2020 será particularmente importante. Aproxima-se um período essencial para fazer face às quebras de vendas. “Penso que neste último trimestre todos os comerciantes estão preparados para corresponder à procura, sobretudo com as limitações que existem: o número de pessoas por loja, etc”; diz.
Portugal não é um destino de passagem de ano por excelência ao nível europeu, mas, para o Algarve, a data é sempre um momento forte para a indústria hoteleira e restaurantes. São principalmente os cidadãos nacionais e espanhóis que procuram a região nesses dias.
“Se o estado de emergência for revertido, a realidade é uma. Se existir a realização de eventos, há outra possibilidade de procura. Se a deslocação entre concelhos não for impedida, há natural procura mesmo sem os eventos. Se a atividade dos hotéis, restaurantes, animação turística não for condicionada, se todos estes ingredientes estiverem disponíveis, há uma realidade, se não estiverem a realidade é outra”, diz João Fernandes, presidente da Região do Turismo do Algarve, em declarações à Renascença.
Elidérico Viegas, presidente da Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve (AHETA), traça um possível cenário otimista. “Os turistas nacionais este ano têm viajado muito menos ou quase nada para o exterior. E isso tem feito com que o aumento da procura dos portugueses pelo Algarve tenha aumentado comparativamente ao ano anterior. E aumentou de forma exponencial.”
“Os portugueses têm vindo a aumentar progressivamente na região, mesmo nas circunstâncias atuais, num ano verdadeiramente atípico. Portanto, o que se espera, é que isso também possa ocorrer na passagem de ano”, sublinha.
O dirigente da AHETA garante que os hotéis, caso lhes seja permitido organizar eventos de passagem de ano, não terão dificuldades em lidar com a situação, “atendendo que, por experiência própria, desde que reabriram em junho/julho adotaram planos de contingência, manuais de boas práticas e não se conhecem situações de infeções em empreendimentos turísticos”.
O réveillon será condicionado pela pandemia. Em entrevista ao "Observador" na terça-feira, o primeiro-ministro já garantiu que não irão haver as habituais festas de Passagem de Ano.
"Vamos todos fazer um esforço para que possamos ter um Natal nas melhores condições. Mas há outra coisa que posso antecipar desde já: a Passagem de Ano vai ter todas as restrições porque aí não pode haver qualquer tipo de tolerância. A limitação de circulação pode não ser às 23h e ser à 1h, mas daqui não passaremos e não haverá seguramente festas de Passagem de Ano. Isso seguramente não", disse.
Quando bater a meia-noite, talvez todos os portugueses possam guardar uma das doze passas para pedir um 2021 livre de pandemia.
Os tradicionais concertos de ano novo no Terreiro do Paço, em Lisboa, ou na Avenida dos Aliados, no Porto, são, por regra, contratualizados com meses de antecedência. Este ano, não vão ocorrer.
Segundo Ricardo Valente, vereador da Cultura da Câmara Municipal do Porto, qualquer decisão sobre este tema “terá de vir do Governo”. O município, contudo, já anunciou que não irá instalar a habitual árvore de Natal nos Aliados, para evitar “aglomeração de pessoas”. Também não existirá fogo de artifício ou concertos na noite de réveillon.
A Renascença contactou a Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC) sobre os planos da autarquia de Lisboa para as celebrações de ano novo, mas não obteve resposta em tempo útil.