09 nov, 2016 - 18:12
O historiador Tiago Moreira de Sá considera que a vitória eleitoral de Donald Trump se enquadra numa vaga populista que se verifica um pouco por todo o mundo.
O autor de "História das Relações Portugal-EUA" acredita que o mandato do novo inquilino da Casa Branca terá consequências internas e externas, nomeadamente efeitos negativos para a Europa, tanto no plano comercial como no da NATO.
Como se explica este resultado? É uma insurgência populista ou o mundo é diferente do de 2008 ou 2012?
Há várias razões. Por honestidade intelectual, a primeira coisa que se deve dizer é que este resultado é uma surpresa para toda a gente. Mesmo para quem acompanha a política norte-americana há muitos e muitos anos, mesmo há décadas.
Falei com muita gente e ninguém previa uma vitória de Donald Trump e ninguém previa sequer que ele ganhasse as primárias no Partido Republicano. O primeiro ponto a sublinhar é que é uma surpresa para toda a gente.
Em segundo lugar, estes fenómenos podem ser explicados por várias razões. A primeira é a crise. É uma vitória do populismo e não apenas do populismo nos Estados Unidos.
Um pouco por toda a Europa, há uma vaga populista e extremista, que vai da Espanha à Grécia, da Holanda à Áustria, à Finlândia, a vários países, até quase à fronteira com a Rússia. Esta vaga extremista, nuns casos, e populista, noutros - em outros confunde-se uma coisa com a outra - agora chegou aos Estados Unidos. Esperava-se que das eleições presidenciais dos Estados Unidos pudesse sair uma contravaga moderada que contagiasse a Europa, mas não. A vaga populista também chegou aos Estados Unidos e abrindo um precedente gravíssimo porque para o ano há eleições em França.
Não é por acaso que Marine Le Pen foi das primeiras a reagir à vitória de Trump. É um resultado de alguma forma legitima o voto na Frente Nacional. Na Alemanha, não é de esperar que o fenómeno se repita, mas, de qualquer modo, há eleições em 2017. Também há eleições no Irão e aí Trump pode ter um efeito diferente porque disse que ia rasgar o acordo nuclear com Teerão e favorecer os extremistas do regime. É um fenómeno diferente, mas não é nada irrelevante.
Assim, uma explicação é a vaga populista que se sente um pouco por todo o lado.
E causas domésticas?
Outra explicação é a revolta dos chamados trabalhadores "de colarinho azul" sobretudo nos estados da velha cintura industrial, do carvão, do aço, do ferro, casos do Michigan, da Pensilvânia, do Ohio, mas não é só isto, porque assim não se justificava as vitórias de Trump na Carolina do Norte ou da Florida onde também venceu. Também há uma revolta das outras Américas, mais além desta dos trabalhadores "de colarinho azul" contra as elites políticas em geral. Hillary Clinton representa para essas pessoas o supra-sumo da elite política de Washington, do "‘establishment". Há uma revolta muito grande contra essa elite, porque, como se vê, Donald Trump ganha em estados com composições sociológicas e demográficas completamente diferentes.
Depois, há o demérito de Hillary Clinton. Não foi, de facto, uma boa candidata. Não foi empática, não teve capacidade de gerar esperança.
A crise do "subprime" é uma causa?
Acho que em 2007/2008, com o colapso financeiro, houve uma ruptura emocional e de confiança entre as elites e o povo. Desde então, nos Estados Unidos e também na Europa, nunca mais se recuperou esse elo entre a elite e a população. Estamos a assistir a mais um fenómeno dessa ruptura. Já não é apenas uma ruptura é uma revolta das populações contra as elites políticas que as pessoas acham terem falhado.
Depois o fenómeno da globalização e do comércio livre. Refere-se muito que nos Estados Unidos o desemprego é baixo, mas esse é o todo nacional. Numa realidade como a norte-americana não se pode olhar apenas para o todo nacional, porque há distintas realidades estado a estado, cidade a cidade que esconde realidades diferentes. Por exemplo, o desemprego é enorme em muitas cidades. De uma reportagem recente retive que no Ohio há uma localidade com 30 mil habitantes, mais de metade dos quais trabalhava numa grande fábrica da indústria do ferro que faliu por não conseguir competir no mercado internacional com o ferro da China. Outras fábricas deslocaram-se para a China. Decisões a levar à perda de empregos de pessoas com 50 anos que agora ficam sem perspectivas.
É nesse descontentamento que Trump alavancou parte da sua candidatura?
Trump não traz a solução para estes problemas, mas fez promessas às pessoas dizendo o que elas queriam ouvir e estas, provavelmente, pensaram que nada tinham a perder. Aliás, não é por acaso que Trump usou a expressão "não ter nada a perder" na campanha. Ainda é cedo para uma análise "mais fina" dos resultados.
Quanto às minorias, sejam afro-americanas, sejam hispânicas, o que se pode presumir é que não se mobilizaram em massa para votar em Hillary ao contrário do que fizeram com Obama que, por exemplo, teve mais de 70% em 2012 no eleitorado de origem latina. A abstenção entre as minorias foi maior do que se esperava e Hillary foi prejudicada.
A vitória de Trump corresponde a um certo fim de um mundo político como o conhecemos?
De certa maneira acho que sim. Não se deve subestimar o alcance da vitória de Donald Trump. É verdade que a democracia na América é muito robusta, muito sólida e não está em causa. É verdade que, do ponto de vista institucional, há muitos freios e contrapesos. Há separação de poderes. Dentro de cada poder, há variadíssimos poderes dentro de cada poder que se fiscalizam mutuamente e que se equilibram. Tudo isso é verdade e não é de esperar que venha aí o caos. Se tomado à letra muito do que Trump diz - e provavelmente terá de fazer muito do que diz, porque o seu mandato é claro - a América vai envolver-se muito menos no mundo, voltar ao isolacionismo. A América a envolver-se muito menos no mundo do que até aqui coloca em causa a própria ordem internacional. Do ponto de vista da política externa toda a ordem internacional americana fica em questão.
É agora antecipável um período de turbulência na ordem mundial?
A ordem internacional é uma ordem multilateral, plural, aberta feita de alianças institucionais em alianças como a NATO ou em organizações como a ONU num quadro que Donald Trump colocou tudo em causa durante a campanha.
A proposta Trump é proteccionista, contra o livre comércio, é isolacionista contra o internacionalismo e unilateral contra o multilateralismo. É uma proposta de grande desconfiança para com as Nações Unidas e de alianças permanentes ou institucionais do tipo NATO. Logo aí, poderemos ter uma erosão muito grande da ordem internacional. Depois, Trump fez afirmações de que poderia não ir em auxílio de aliados militares - como a NATO, o Japão e a Coreia do Sul - em caso de necessidade. O risco é de que esses aliados ao mais pequeno sinal de que Trump irá manter essa linha é ponderar alternativas à aliança.
É verdade que no poder as coisas são diferentes da campanha eleitoral e haverá grandes diferenças em relação às promessas que fez, mas, volto a dizer, não devemos subestimar os efeitos da vitória de Trump no plano internacional.
Mas também agitação no plano doméstico...
Sim. Embora Trump não tenha vencido apenas com base em eleitorado radical, até pelo contrário ou não teria ganho a quantidade de estados que venceu, nesta campanha libertou demónios como a intolerância, o racismo, a xenofobia, o sexismo, a intolerância face a muçulmanos, hispânicos, até a portadores de deficiência, tudo demónios que são depois muito difíceis de colocar de novo na caixa. Se o líder puxa pelo pior das pessoas, estas tornam-se piores.
Insisto: não devemos subestimar o alcance desta vitória de Donald Trump. Não é o fim do mundo. Não é o fim da democracia na América. Não faz sentido dizer isso, mas é uma vitória com um grande alcance nos Estados Unidos e no resto do mundo.
E como será a relação da Administração Trump com a Europa?
A Europa pode ter um problema a partir do momento em que Trump possa colocar em causa o cumprimento do artigo 5.º da NATO que significa que um ataque contra um dos seus membros é um ataque contra todos. Sem artigo 5.º, não há NATO. Este pode ser um sério problema. Presumo que Trump irá agora tentar mitigar a questão. Mas a desconfiança já está lá instalada. A Europa tem de começar a levar o problema a sério e começar a investir mais na sua defesa.
Não são boas notícias para a Europa para já não falar das questões comerciais.
Levando à letra o que disse Trump, é o fim da parceria transatlântica de comércio e investimento, o TTIP, bastante importante quer para os Estados Unidos quer para a Europa.
E com a Rússia de Putin?
Há duas leituras possíveis. Uma é um entendimento por parte de Putin de que tem carta branca para começar a rever a ordem internacional europeia na sua fronteira leste. De resto, Putin já o estava a fazer com a Geórgia, Abecásia, Ossétia do Sul, a Crimeia e a região de Donbass. Mas pode acontecer que a realidade acabe por se impor com Putin a testar esta suposta "carta branca" e isso obrigar Trump a uma resposta musculada contra a Rússia acabando com esta espécie de lua-de-mel entre os dois.
Estes dois cenários podem acontecer, mas o mais lógico é o segundo, porque os Estados Unidos são os primeiros interessados na ordem europeia tal como existe.
Já quando aos terroristas do Estado Islâmico?
É difícil de antecipar porque não se entende o que Trump propõe. Por um lado, diz que a América se deve retirar do Médio Oriente e tratar dos seus problemas e, por outro, diz que vai derrotar o Estado Islâmico. Mas não diz como. Diz que não quer concretizar para não se perder o efeito surpresa. Mas não basta falar para derrotar o Estado Islâmico. Não é fácil e o que Trump tem dito só piora. Não se derrota com uma guerra contra o islão que é o que Trump sugere nas entrelinhas. Para derrotar o Estado Islâmico é preciso derrotar os radicais dentro do islão e isso faz-se com diálogo e tolerância com o islão moderado e não o contrário.
O discurso de Trump não ajuda a derrotar o islão radical, chame-se "Estado Islâmico" ou outra coisa. Pelo contrário: agrava o problema e torna mais possível um choque de civilizações.