10 out, 2023 - 09:00 • Redação
Joana Sá entrou em Psicologia na Universidade da Maia (antigo ISMAI) com 18 anos e “muitos sonhos”. Desde cedo, e porque era de uma família com poucas possibilidades económicas, a faculdade teve um peso muito grande na dinâmica familiar.
A meio do curso, Joana começou a trabalhar na área da restauração para ajudar a suportar as despesas mensais, apesar de beneficiar de uma bolsa, uma vez que os avós, com quem vivia na altura, não conseguiam arcar com as despesas.
“A realidade dos meus colegas de curso não era essa e a maioria teve oportunidade de esperar pela sua oportunidade na área sem a carga de um segundo emprego”, diz.
Quando chegou a altura de estagiar, tudo piorou. “Foram dois estágios, um na licenciatura e outro no mestrado, pagos por mim, desde o seguro ao transporte e à alimentação. Trabalhava das 8h30 às 17h30 em escolas de vários agrupamentos no Porto como psicóloga escolar e, depois, trabalhava na restauração”, conta.
Joana conseguiu aguentar um ano com dias de 16 horas de trabalho. Mas a que custo? “O trabalho como psicóloga exigia muito a nível do meu emocional e também muito a nível físico. Perdi muito peso e tinha pouco tempo para mim e para os outros.”
Na mesma altura, os avós adoeceram com cancro, obrigando Joana a avaliar prioridades. “Após algumas entrevistas na minha área, que poucas garantias me ofereciam e em que me pediam experiência que ainda não tinha, a decisão de prosseguir por uma área que não queria (a restauração) mas que me oferecia uma estabilidade que o meu sonho não me permitia, tornou-se mais forte”, desabafa.
“É triste sentir que a minha profissão não valoriza o esforço que fiz. Como é que posso trabalhar e ganhar experiência de graça? Como me sustento enquanto ganho essa experiência?”, questiona.
A Joana parece “surreal” ter feito cinco anos de curso com média final de 17, dois estágios curriculares com “excelente nota”, um estágio para a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), ser membro efetivo da OPP e, com 35 anos, nunca ter tido a oportunidade de seguir a sua paixão pela psicologia.
De acordo com estimativas da OPP, cerca de 1200 pessoas terminam o segundo ciclo (mestrado) em psicologia nas universidades por ano (o necessário para se poderem inscrever na Ordem). Houve, em 2022, 1185 anos profissionais júnior (estágios à Ordem). Em 2021 tinham sido 1111.
Para Joana, há muitos entraves: as propostas são poucas, a concorrência é muita e a exigência na experiência é demasiado relevante. “O que mais me preocupa é a necessidade cada vez maior e urgente de psicólogos no mundo atual. Será que são poucos ou será que estão mal aproveitados?”, deixa a dúvida.
Joana ainda não quer deitar tudo a perder. “É sempre um sonho, não deixo de o ter. Continuo a ser membro efetivo da Ordem e a pagar as minhas quotas. Acho que vou ter sempre essa esperança, até porque, se desistir, acaba por ser um retrocesso”, diz.
“Em vez de trabalhar para pagar as contas, estás a pagar para trabalhar”, desabafa.
Joana fez o ano júnior, mas a empresa não lhe pagou. “Estava a pagar para o seguro, transporte, alimentação, material… Era um custo elevadíssimo. Quem não tivesse o apoio familiar ou não tivesse a condição financeira para aguentar, tinha que fazer o mesmo que eu: trabalhar para conseguir trabalhar.”
“Se precisamos de experiência, tinham que nos dar alguma possibilidade de poder crescer profissionalmente e deixar-nos ter um sustento durante esse tempo. A experiência só se ganha trabalhando, não é?”
Ainda que existam sempre pessoas com dificuldades em encontrar uma vaga para trabalhar, a OPP realizou um estudo socioprofissional depois da pandemia, onde participaram 1.759 pessoas. Houve um aumento no volume de trabalho dos psicólogos e o desemprego diminuiu. A percentagem de psicólogos desempregados ou à procura de atividade profissional reduziu de 4,1% antes da pandemia para 1,5% depois da pandemia.
Joana manteve contacto com uma colega de curso até aos dias de hoje que só perto da pandemia é que conseguiu começar a trabalhar. “Não desistiu, esteve sempre à procura e acabou por abrir o consultório dela. Na pandemia quase não sobreviveu, não tinha clientes, estava tudo fechado. Com muita persistência e muita ajuda familiar conseguiu”, conta.
“Mas, lá está: é uma pessoa que tinha possibilidades familiares e económicas. Porque é isso que para muita gente é: um sonho. Nós continuamos a sonhar que um dia vai ser o nosso dia”, desabafa.
A Renascença falou com a colega de Joana, Sandra Silva, para perceber como é conseguir atingir o dito “sonho” passados muitos anos.
O percurso académico de Sandra foi “atípico”. Terminou o ensino obrigatório e não foi logo para a universidade, não ia continuar a estudar. “Depois, percebi que, de facto, queria fazer algo mais. A escolha da psicologia foi um bocadinho a influência da minha professora de psicologia do 12º ano, ficou ali aquele bichinho sempre a remoer”, diz.
Terminou o mestrado em 2011, com a esperança de ir trabalhar de seguida. Não foi o que aconteceu. “Foi algum tempo sem trabalho nenhum, o que é muito desesperante para quem termina um curso e investe muito tempo, dinheiro e investe emocionalmente também.”
Depois começou à procura de estágios. “O desespero foi tanto…” Sandra enviou currículos para agrupamentos escolares do país todo. Houve um agrupamento escolar no centro do país que teve interesse.
“A administração contatou-me, que tinham necessidade de ter mais alguém a trabalhar. Porém, quando foram falar com a psicóloga, que seria a minha orientadora, ela rejeitou a ideia porque não estava à vontade para orientar e não tinha tempo. Ou seja, da pessoa que, provavelmente, me deveria dar mais apoio foi da que senti que me deu menos”, desabafa.
Como não queria perder o investimento que tinha feito nesta área, Sandra resolveu fazer uma pós-graduação em Recursos Humanos para tentar conjugar com a psicologia. Deslocou-se para Lisboa com a esperança que a capital lhe desse novas oportunidades, mas não conseguiu. Tal como Joana, acabou por arranjar trabalho na restauração.
De regresso ao Norte, em 2016, Sandra estava “completamente desligada da psicologia”. “Já estava com a ideia de ‘pronto, não é para mim, não vale a pena insistir, vamos tentar outras coisas’".
Em 2018, conseguiu o estágio que tanto almejava. “Ou seja, de 2011 até 2018, andei à procura”, reitera.
Quando terminou o estágio, não havia perspetivas de continuar a trabalhar com a associação, e foi aí que resolveu abrir o seu próprio consultório. Vai fazer quatro anos de funcionamento este mês.
Aberto a outubro de 2019, o consultório volta a fechar em março de 2020 por causa da pandemia da Covid-19. “Recordo-me que no dia em que nos foi dito que íamos ficar em confinamento, o meu pensamento foi que nunca mais na vida ia trabalhar em psicologia. Eu estava a abrir, tinha investido ali as minhas poupanças para ter um espaço acolhedor e para que as pessoas se sentissem bem, e de repente fomos todos para casa”, conta.
Sandra ainda não tinha uma carteira de clientes e descreve esses tempos como “desesperantes”. “As certezas de apoio não eram nenhumas e, para quem tinha investido tudo, ou quase tudo, foi mesmo ficar sem o tapete”, explica.
Olhando em retrospetiva, a pandemia “foi o gatilho para trabalhar”. “De facto, depois dessa fase, as pessoas começaram a procurar muito mais, começaram a sentir muito mais necessidade, e é verdade que se falou muito sobre o mental durante o confinamento. Essas questões todas foram um favor à psicologia e uma mais-valia para mim em particular”, relata.
“Acaba por ser um bocadinho uma profissão exclusiva para alguns. E até diria que esta situação está a acontecer não só na psicologia, mas também noutras áreas, nomeadamente em áreas da saúde. Por exemplo, fisioterapia é um caso onde isso é muito visível. Ou as pessoas têm um suporte financeiro e alguém que lhes dê uma ajuda para conseguirem abrir um gabinete ou então, simplesmente, não há lugar para eles trabalharem”, adverte Sandra.
“Não estamos todos a sair ao mesmo tempo da casa partida”, acrescenta.
Em setembro de 2021, um relatório da OPP indicava que um em cada cinco portugueses é afetado por problemas de saúde mental. Os dados já tinham em conta o contexto pandémico, mas ainda não refletiam o impacto da guerra na Europa e da crise económica, que se agravou.
A Ordem estima que, para dar resposta à população, seria preciso pelo menos o dobro dos profissionais que atualmente trabalham no SNS. A falta de profissionais resulta em longas listas de espera, ainda que já existam cerca 27 mil profissionais inscritos na Ordem.
O presidente da Associação Nacional dos Estudantes de Psicologia (ANEP), Sérgio Alves, diz que “os psicólogos são necessários em qualquer sítio que haja pessoas”.
“Onde houver pessoas é onde o psicólogo deveria estar. Infelizmente, não conseguimos ter psicólogos suficientes na maior parte dos casos. Não que eles não sejam necessários, mas porque não há abertura de candidaturas”, diz.
O presidente da ANEP lembra que o antigo ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, abriu um concurso há cinco anos e que só em janeiro de 2023 é que estas pessoas foram alocadas aos serviços. “Aumentaram o número de psicólogos nos cuidados de saúde primários. No entanto, demorou cinco anos para conseguir alocar 40 pessoas.”
“É um grão de areia num mar enorme. Não estão a ser recrutados os quantos são necessários”, refere Sérgio Alves.
De acordo com o relatório de 2022 da OPP do custo do stress e dos problemas de saúde psicológica no trabalho, em Portugal, em 2022, a Organização Mundial de Saúde (OMS) avançou que, a nível global, cerca de 15% das pessoas adultas em idade ativa vão ter um problema de saúde psicológica em algum momento das suas vidas. A estimativa do custo dos problemas de saúde psicológica para a economia global é de um bilião de euros (WHO, 2022).
Em Portugal, os problemas de saúde mental mais comuns - stress, depressão ou ansiedade - afetaram quase dois em cada cinco trabalhadores/as (33%) no último ano devido ao trabalho, uma prevalência acima da média da União Europeia (27%) (Eurobarómetro, 2022).
“Sabemos a necessidade, temos o recurso para combater essa necessidade, mas não o usamos, e é isso que eu não consigo perceber. Formámos-nos milhares de pessoas, das privadas, das públicas e pessoas como eu, que não exercem há muitos anos e podiam estar a exercer, e continuamos no banco à espera”, desabafa Joana.
Joana descreve esta situação como “uma venda nos olhos”. “Abrem não sei quantas vagas, 90% delas estão preenchidas. Aqueles 10% que faltam são uma falsa esperança. Ou vais para uma clínica privada, onde é difícil entrar, ou abres o teu consultório, mas precisas de dinheiro para investir”.
“Estamos com os olhos tapados a fazer de conta que é tudo muito bonito, mas na verdade nada acontece. É uma sorte eu conseguir. Acho que ganharia mais facilmente o Euromilhões, do que entrava num dos concursos públicos”, conta Joana. “Mas eles precisam. Não estão a ser abertas vagas para o número de pessoas que se candidatam”.
Sandra reitera as ideias de Joana. “Ou não há concursos públicos ou os concursos que há são muito poucos. Vai-se a um hospital: quantos profissionais de saúde mental estão lá a trabalhar? Há um agrupamento de escolas, há um psicólogo para o agrupamento todo”, diz.
“Não é viável, não é funcional sequer. Nesse aspeto, a Ordem tem batalhado muito para que haja mais concursos”, acrescenta.
“Era ótimo, maravilhoso, se cada centro de saúde tivesse um psicólogo. Então se tivesse dois seria fantástico”, refere Joana. Quando Joana estagiou na zona do Porto, havia um psicólogo para um agrupamento inteiro. “Claro que, depois, recorrem aos estagiários, porque é mão de obra gratuita. Eu sei o quão importante é ganhar experiência, só que o estagiário devia ser um complemento e não um substituto.”
No SNS, existem cerca de mil psicólogos de um total de 26.000 inscritos na Ordem. 700 trabalham em centros hospitalares e outros serviços, como os de combate às dependências. Os restantes (300), nos centros de saúde fazem um acompanhamento mais próximo da comunidade. Para um utente chegar a este profissional, tem de ser referenciado pelo médico de família.
Sérgio Alves fala de “necessidade”. “Ainda temos uma visão muito remediativa daquilo que é a saúde. Neste momento, estamos perante um grave problema de saúde pública e somos dos países onde isto mais afeta, onde as questões de saúde mental mais pessoas afeta. Temos números absurdos de prevalência de perturbações mentais, como por exemplo da depressão”, assegura.
De acordo com a lista de cursos da Direção Geral do Ensino Superior (DGES), existem 31 cursos de psicologia em Portugal, tanto em instituições públicas como privadas. “Nós estamos a formar mesmo muita, muita gente. Em medicina, eles fazem uma força enorme para não aumentar os números, para não criarem stress no SNS. Na psicologia ninguém fala nisto. Estamos a formar muitas pessoas para a procura do mercado”, descreve o presidente do ANEP. Sérgio Alves fala em regulamentar a necessidade com a procura.
Sobre a escolha de que curso superior seguir, Sérgio diz que, “de facto, uma pessoa vendo para o que vai, se calhar fica reticente e escolhe outro caminho”. No entanto, assegura haver um outro fator: “As pessoas cada vez mais se apercebem das questões de saúde mental e, aquilo que antes era um mundo que desconheciam, agora permitam-se pensar ‘espera, se calhar isto é um caminho, se calhar é uma coisa que eu gosto’".
Sandra fala ainda sobre o psicólogo não ter carreira profissional a nível público. “Nós somos técnicos superiores e ponto. Os professores têm carreira, vão subindo de escalão, os enfermeiros têm carreira, os médicos têm carreira... Nós somos técnicos superiores e não passamos daí. Também não é propriamente apelativo”, confessa a profissional de saúde. “Vemos que os outros conforme vão subindo vão tendo regalias diferentes e nós não temos isso. Desmotiva”.