11 abr, 2025 - 05:30 • Marisa Gonçalves
Está a verificar-se um aumento do número de crianças e jovens em fuga das suas famílias ou de instituições sociais, em Portugal.
Em 2024, o Instituto de Apoio à Criança (IAC) sinalizou 1.995 crianças e jovens em contexto de rua, através do Projeto Rua. O número é o mais elevado desde 2019 quando foram sinalizadas 2287 crianças.
O fenómeno está associado a situações de pobreza. Matilde Sirgado, vice-presidente do IAC e coordenadora do Projeto Rua, fala à Renascença numa evolução com diferentes características, essencialmente na Área Metropolitana de Lisboa.
“Neste momento, não temos crianças a dormir efetivamente na rua, no sentido clássico, como víamos na primeira década do projeto criado em 1989. Temos memória disso nas grelhas do metro ou em carros abandonados. Neste momento, as crianças mais adolescentes estão na rua porque fazem efetivamente fugas, mas estão expostas a todos os riscos e perigos ligados a uma exploração das suas vulnerabilidades por adultos sem escrúpulos que podem utilizá-los para o tráfico de droga, para pequenos furtos, pequena criminalidade ou também podem ser vítimas de violência sexual”, refere.
Os dados do Relatório de Atividades do Instituto de Apoio à Criança relativo a 2024 especificam também que nesse ano foi assegurado o acompanhamento psicossocial individualizado a 45 adolescentes e jovens identificados em contexto de rua, bem como às suas famílias. O número é inferior aos 68 casos registados em 2023, mas aumentou o número de novas fugas e há também casos de mendicidade.
“As novas fugas aumentaram, foram 34 e acresce a este número de jovens e adolescentes em fuga quer da instituição quer da família ainda encontramos 11 casos de menores que não fizeram fuga, mas que estão em situação de rua. São crianças que estão a praticar a mendicidade, algumas delas de forma forçada”, aponta.
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No ano passado, 59,5% das crianças em contexto de rua tinham entre 6 e 10 anos. É uma percentagem mais alta do que aquela verificada na faixa etária dos 16 aos 21 que registou 27,5% de jovens e adolescentes nessa situação no mesmo ano.
Matilde Sirgado diz que as principais causas estão na incapacidade das famílias em conseguir um equilíbrio financeiro, muitas vivendo de subsídios, associando-se a essa circunstância a incapacidade em investir na educação dos seus filhos. Matilde Sirgado fala ainda no que diz ser "uma pobreza de valores".
“Os seus pais estão mais centrados em estratégias de sobrevivência para salvaguardar as necessidades básicas. Têm trabalhos precários, com horários muito pouco apropriados e estas crianças ficam nos bairros entregues a si próprias e mais expostas ao mundo do crime”, sustenta.
As raparigas surgem numa situação de maior vulnerabilidade representando 54 % dos casos reportados quando os rapazes nesta situação representam 46%.
A coordenadora do Projeto Rua do Instituto de Apoio à Criança explica que as novas tecnologias acabam por acentuar as fragilidades para o género feminino.
“Vemos que as raparigas são muito aliciadas pelas tecnologias, por falsos namoros, por aliciamento para profissões ligadas à arte e à beleza, acabando por ser apanhadas neste processo como presas mais fáceis. Esta realidade também diz respeito a um maior acesso aos transportes e às telecomunicações”, declara.
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Matilde Sirgado diz que também surgem casos de crianças imigrantes, mas adianta que esses números são residuais. “Em 2023 foram-nos reportados pelo MAI [Ministério da Administração Interna] cerca de 33 jovens adolescentes. A grande questão é que é uma problemática que não engrossa propriamente este número que encontramos nas nossas estatísticas porque a maior parte destes jovens vão à rua, mas fazem fugas para fora das fronteiras. Portugal não é propriamente um país de destino para estes menores não acompanhados”, avança.
Matilde Sirgado diz que as crianças em contexto de rua constituem um fenómeno invisível, mas que existe e refere-se a um “grande falhanço da sociedade de uma forma geral”.
O Instituto de Apoio à Criança desenvolve vários projetos com a finalidade de agir perante esta problemática. As Escolas de Segunda Oportunidade são disso um exemplo.
A coordenadora do Projeto Rua aponta outras medidas essenciais. “Falta uma maior flexibilidade e adequação de algumas medidas de política social. Precisamos também de mais centros de acolhimento especializados e temos de ser céleres na área da saúde mental onde temos uma lacuna enorme. Não damos conta da lista de espera no nosso consultório que também presta apoio jurídico”, lamenta.
Em 2024, o IAC conseguiu identificar o paradeiro de 19 dos jovens que estavam sinalizados. Vai assinalar-se, neste sábado, o Dia Internacional da Criança de Rua.