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Entrevista Renascença/Ecclesia

Presidente da APROPESCA: "Não andamos legais no mar"

29 jun, 2025 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)

"Se não fosse a mão-de-obra indonésia, as nossas embarcações estavam paradas." No dia em que a Igreja celebra a solenidade de São Pedro e São Paulo, o presidente da Organização de Produtores de Pesca Artesanal, Carlos Cruz, é o convidado da entrevista Renascença/Ecclesia.

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O presidente da APROPESCA - Organização de Produtores de Pesca Artesanal, Carlos Cruz, diz que o sector da pesca diz vive uma situação de ilegalidade, uma vez que a legislação que obriga a que metade da tripulação de uma embarcação seja portuguesa não é cumprida.

“Nós não andamos legais no mar”, assegura Carlos Cruz, em entrevista à Renascença e Agência Ecclesia.

O dirigente diz que uma fiscalização rigorosa teria o efeito de parar o sector. “Se houver uma inspeção rigorosa que queira mexer com o setor, que queira confrontar o setor e que queira que a gente cumpra a lei, amanhã o sector está todo parado, não há volta a dar."

Carlos Cruz mostra-se muito preocupado com as alterações que têm sido propostas à lei da imigração e pede ao Governo que reconheça as habilitações para pescar dos imigrantes indonésios que procuram Portugal para trabalhar.

"Temos um problema e temos de o resolver”, argumenta Cruz, defendendo que “para o resolver, o Governo tem de reconhecer a cédula dos pescadores indonésios”.

O responsável garante que existe o risco de a pesca em Portugal acabar por falta de mão-de-obra e que "se não fosse a mão-de-obra indonésia, as nossas embarcações estavam paradas”.

No dia em que a Igreja celebra a solenidade de São Pedro e São Paulo, Carlos Cruz destaca a grande devoção dos pescadores e a forma intensa como “vivem os Santos Populares”.

“É para nós muito importante”, reforça.

"O peixe nunca vai acabar. Peixe temos nós no mar, o que temos é problemas com as cotas (…) O maior problema na pesca são as cotas"

De que modo é que a comunidade piscatória vive esta data em que a Igreja assinala o Martírio dos Dois Apóstolos, Pedro e Paulo, e se celebra em muitos lugares do país a festa de São Pedro, o padroeiro dos pescadores?

Antes de mais, queria agradecer o convite pela primeira vez estar aqui nas vossas instalações, é uma honra e só tenho de agradecer por isso.

Nós vivemos muito os Santos Populares, nós vivemos, a pesca vive muito bem os Santos Populares. O Santo António não tanto, mas o São João e o São Pedro são festas marcantes para o pescador. Em Vila do Conde, Caxinas, Póvoa de Varzim, vivemos intensamente as festas destes dois santos. Isso é para nós é muito importante.

É conhecida a forma especial como os pescadores e as suas famílias vivem a fé. É algo que está sempre presente ou vem só nos momentos de aflição?

Não, todo pescador que vai para o mar vai sempre com fé, mesmo sabendo que não vai pescar ou que pesca muito ou que pesca pouco. Vai sempre com fé. Não há nenhum pescador que vá para o mar e diga "vou para o mar e vou sem fé". Não, vão sempre com fé.

E há pescadores que manifestam a sua fé, na forma como se comportam no barco. Toda a embarcação que largue a primeira arte ao mar, as palavras que saem sempre da boca de um pescador são sempre "vai na hora de Deus". E, quando é para recolher a rede, usa sempre essa palavra na primeira entrada do peixe. Mas mas se não vê a peixe, não usa esta palavra, entrando primeiro o peixe, diz "louvado seja nosso Senhor, Jesus Cristo. Obrigado, meu Deus". Sempre estas palavras.

"Se houver uma inspeção rigorosa que queira mexer com o setor, que queira confrontar o setor e que queira que a gente cumpra a lei, amanhã o sector está todo parado, não há volta a dar"

Há um envelhecimento da frota e das tripulações e sabemos que há uma dramática falta de mão-de-obra. Agora, indonésios e guineenses têm evitado que os barcos fiquem em terra, ainda que as condições não sejam as melhores e coloca-se a questão: a pesca sustentável, em particular a pesca artesanal, está em risco?

Não considero que esteja em risco. O peixe nunca vai acabar. Peixe temos nós no mar, o que temos é problemas com as cotas. Posso dar aqui exemplos de barcos do espadarte, que são barcos que requerem uma certa despesa e algum cuidado nesta questão de irem para o mar. Começam o ano e, depois da primeira viagem de um ou dois meses, o máximo três meses, não têm mais cota para trabalhar durante o ano todo.

O maior problema na pesca são as cotas. Não considero que a pesca artesanal esteja em risco. Só estará em risco de falta de mão-de-obra, não por causa do peixe. Tivemos de recorrer aos estrangeiros, indonésios, e ainda bem que eles vieram. São pessoas que sabem trabalhar, são pessoas que chegaram e não nos deixaram mal. Ainda bem, porque se eles não tivessem chegado, se não fosse esta mão-de-obra indonésia, as nossas embarcações, na maioria, estavam paradas. E isso não era bom para a pesca.

Então, não é exagerado afirmar-se que a pesca em Portugal depende da chegada de mão-de-obra estrangeira. Um dia que isto falhe, que haja alguém que trave isto, estamos mesmo condenados. Falta de peixe não há, nunca vai existir a falta de peixe. Temos a falta da mão-de-obra e a falta de cotas.

"[imigrantes indonésios] Ainda bem que eles vieram. São pessoas que sabem trabalhar, são pessoas que chegaram e não nos deixaram mal"

Numa embarcação, qual é a percentagem de mão-de-obra nacional e de mão-de-obra estrangeira?

No anterior governo, tínhamos uma legislação que nos obrigava a ter 60% de trabalhadores portugueses e 40% de trabalhadores estrangeiros. Os 60% de trabalhadores portugueses era para que se salvaguardasse que tivéssemos sempre trabalho para os portugueses. A verdade é que os portugueses que existiam, aqueles que ainda andavam no mar desistiram da pesca e foram à procura de outras oportunidades, nos transportes, em particular, como motoristas, e a verdade é que poucos restam. Muitos já foram para a reforma e não se vê, como antigamente, aqueles jovens pescadores virem à procura da arte.

Há uma desmotivação para a pesca em Portugal?

Antigamente, um jovem pescador, quando se formasse, gostava logo de ir para o mar. Atualmente, não temos, não vemos essa procura. Há pessoas, mesmo pais com embarcações, que não gostam que os filhos sigam a profissão porque não encontram um futuro risonho. É a falta de cotas, são restrições, mais restrições, mais restrições... Isto desmotiva muito e não se vê um pai a incentivar um filho para ir para a pesca.

Numa embarcação pode haver 50% de pescadores nacionais e 50% de trabalhadores estrangeiros, por exemplo?

Sim, este governo agora alterou a lei, mas não chega. Não chega porque, neste momento, em 110-115 embarcações, 80% a 90% têm mais indonésios do que os portugueses.

Está numa situação ilegal…

Estamos, estamos, mas eles sabem, eles sabem. Por isso mesmo é que não há motivo para estarmos contentes e satisfeitos. Estamos mesmo saturados. Se houver uma inspeção rigorosa que queira mexer com o setor, que queira confrontar o setor e que queira que a gente cumpra a lei, amanhã está o setor todo parado, não há volta a dar. Não há forma de a cumprirmos.

"Não podemos esquecer que temos embarcações obsoletas, muito obsoletas"

Há um discurso muito crítico e de resistência à chegada dos imigrantes. Ainda há pouco dizia que se alguém travar isto, relativamente à chegada de trabalhadores estrangeiros, a situação torna-se muito complicada. Imagino que esteja preocupado com as mudanças da legislação na área da imigração...

Sem dúvida alguma. Se isso acontecer, o setor está mesmo condenado. Não há outra volta a dar. Queremos mesmo que o nosso Governo nos ajude, reconhecendo as cédulas dos trabalhadores estrangeiros indonésios. Porque eles trazem as cédulas deles. Nós fazemos aqui o registo na Segurança Social e eles têm todas as condições, nós damos as melhores condições ao trabalhador da Indonésia que chega.

Damos a estadia e damos a alimentação. É verdade que, no início, eles acabavam por dormir nos barcos, mas atenção: neste momento, isso não acontece. Eu tenho 110 a 115 armadores e não tem um a dormir em barco. Dormem no barco como dormem os portugueses, quando vão para o mar, mas, quando regressam, têm uma casa, têm um apartamento, têm as melhores condições.

Neste momento, a ajuda que queremos do Governo é, precisamente, certificar, dar o reconhecimento da cédula deles, a cédula da origem deles. São pessoas que se adaptam muito bem à pesca. Eles chegam e não ficam parados para aprender, eles sabem trabalhar. Eles vêm de pesca, eles têm pesca como nós e sabem trabalhar. Se a cédula deles for reconhecida, teremos o nosso problema resolvido, já os podemos matricular como marinheiros-pescadores. Neste momento, nós matriculamo-los, fazemos tudo o que temos de fazer e a verdade é que eles só podem estar a ver os outros a trabalhar. As autoridades dizem que eles não podem estar a trabalhar, só podem estar a ver. Mas isto cabe na cabeça de alguém?

Não podemos andar aqui a atirar areia para os olhos de ninguém. Isto é a verdade. Temos um problema e temos de o resolver. Ponto final. Isto não é esconder ninguém. Eu sempre disse isso em várias reuniões com o anterior governo e com este governo. Temos debatido isto. A situação é esta: nós não andamos legais no mar. E não andamos legais no mar porque uma embarcação, para poder ir para o mar, tem de ter o mínimo de segurança. E nós não temos.

"Não considero que a pesca artesanal esteja em risco"

A alteração de regras, o apertar de regras, vai ainda dificultar mais a integração dessa mão-de-obra que é fundamental para que o setor?

Quando me faz a pergunta sobre qual era a percentagem dos portugueses e dos estrangeiros nas embarcações, eu disse que era 40% de estrangeiros e 60% de portugueses. Agora é metade de cada um. Mas isso não chega. Não chega. Não chega. Nós não temos pescadores. Não temos pescadores portugueses para andar no mar.

Para quem não esteja familiarizado com o trabalho dos pescadores, a ideia que se tem das comunidades piscatórias é muito associada à pobreza. Esse quadro mantém-se ou a pesca é um trabalho que pode, efetivamente, porporcionar a qualidade de vida?

Não, eu não considero que, neste momento que estamos a viver, a nossa comunidade passe por pobreza. Não, nós estamos bem, estamos estáveis. Vamos para o mar, ganhamos dinheiro. Não vamos dizer que estamos a passar a fome. Deixem-nos trabalhar, deem-nos cota para trabalhar porque peixe há no mar, o peixe nunca vai faltar. Não vai faltar peixe. É só isso que tenho a dizer.

"Estamos bem, estamos estáveis. Vamos para o mar, ganhamos dinheiro. Não vamos dizer que estamos a passar a fome"

Estamos a celebrar os 40 anos da integração de Portugal na União Europeia. Faz uma avaliação positiva da forma como a pesca teve acesso e utilizou os fundos comunitários no setor?

Há fundos comunitários que podem ser mais bem aproveitados e, às vezes, deixamos fugir essas oportunidades. Temos assoreamentos nas barras, na Póvoa de Varzim e Vila do Conde, que são as que eu conheço diretamente, e já vai a caminho de dois anos que não temos uma intervenção. Esses portos precisam de manutenção, para as entradas e saídas. No Norte, temos um mar mais agitado, que não se compara com o do Algarve. Mas a verdade é que nós temos de aproveitar estes fundos e estamos a deixar passar aquilo que podíamos aproveitar.

Essa manutenção devia ser anual?

Sim, deveria acontecer todos os anos.

E há fundos comunitários para o efeito?

Há fundos comunitários, mas a verdade é que não são aproveitados. Na minha maneira de ver, não são bem aproveitados.

"O Santo António não tanto, mas o São João e o São Pedro são festas marcantes para o pescador"

Na mensagem para o último Dia Mundial da Pesca, o Vaticano apelava à proteção dos pequenos negócios. É um desafio a proteção do pequeno negócio e desta pesca artesanal num mundo que é cada vez mais global?

Tudo isto depende de poder de compra, de fazer uma boa gestão na pesca. Não podemos esquecer que temos embarcações obsoletas, muito obsoletas. Temos algumas embarcações boas, mas a maioria é obsoleta. São embarcações já com bastantes anos que os pais querem deixar para os filhos. E os pais pensam "é com isto que eu vou para o mar? É com isto que tenho a segurança?" Aquilo serviu enquanto foi nova na mão dele. Para passar aquela embarcação a um filho, é preciso medir bem o perigo. Uma embarcação com 30 anos não é a mesma coisa que uma embarcação nova

A pesca será um bom negócio para todos se houver uma boa gestão e haver um poder de compra, porque toda a gente ganha nisto, mas para isso temos de ter as melhores condições. Penso que temos um futuro aqui. Se o nosso Governo quiser ajudar, temos um futuro que pode ser risonho para toda a gente.

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