04 nov, 2025 - 11:01 • Aura Miguel
Uma nota doutrinal intitulada "Mater Populi Fidelis” foi esta terça-feira publicada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé com o objetivo de esclarecer o papel de Maria na obra da Salvação.
O documento pretende, sobretudo, responder a certas pressões relacionadas com alguns títulos marianos ligados à cooperação de Maria na obra da Salvação, “questões que preocuparam os recentes pontífices e que foram repetidamente tratadas ao longo dos últimos 30 anos”.
O texto assinado pelo cardeal Vítor Manuel Fernandez, prefeito do referido Dicastério, esclarece em que sentido são aceitáveis alguns títulos e expressões referentes a Nossa Senhora, aprofunda os fundamentos da devoção mariana e o lugar de Maria na sua relação com os fiéis, à luz do Mistério de Cristo como único Mediador e Redentor.
Nestas 20 páginas, densas de conteúdo teológico e doutrinal, a devoção mariana, que a maternidade de Maria suscita, é apresentada como um tesouro da Igreja. “Não se trata de corrigir a piedade do Povo fiel de Deus que encontra em Maria refúgio, fortaleza, ternura e esperança, mas, sobretudo, de a valorizar, admirar e encorajar”, lê-se no texto. O que motiva esta nota é que, “ao mesmo tempo, existem alguns grupos de reflexão mariana, publicações, novas devoções e inclusive solicitações de dogmas marianos, que não apresentam as mesmas características da devoção popular, mas acabam por propor um determinado desenvolvimento dogmático que se divulgam intensamente através das redes sociais despertando, com frequência, dúvidas nos fiéis mais simples”.
Na raiz do problema surge, em determinados setores da igreja, a associação de Maria na obra redentora de Cristo, ao ponto de a invocarem como “corredentora”, conferindo-lhe uma singular cooperação no plano da salvação.
O presente documento, “sem querer esgotar a reflexão, nem ser exaustivo, busca preservar o equilíbrio necessário que, dentro dos mistérios cristãos, deve ser estabelecido entre a única mediação de Cristo e a cooperação de Maria na obra da Salvação”.
A fórmula “Corredentora” provoca mal-entendidos, trata-se de um, "vocábulo equívoco”, afirma a Nota citando documentos do Concílio Vaticano II e o magistério dos últimos Papas. “A obra da redenção foi perfeita e não necessita de acréscimo algum. Por isso, «Nossa Senhora não quis tirar nenhum título a Jesus. Ela não pediu para ser uma quase-redentora ou corredentora: não. O Redentor é um só e este título não se duplica». Cristo «é o único Redentor: não existem corredentores com Cristo»”, lê-se nas palavras do Papa Francisco.
Também o título “Medianeira” requer uma especial prudência na sua aplicação. A Nota da Doutrina da Fé remete para o ensinamento do Concílio que formula a perspetiva da intercessão materna de Maria, com expressões como «múltipla intercessão» e «proteção maternal». “Estes dois aspetos unidos configuram a especificidade da cooperação de Maria na acção de Cristo pelo Espírito. Em sentido estrito, não podemos falar de outra mediação na graça que não seja a do Filho de Deus encarnado. Por isso, é necessário recordar sempre, e não obscurecer, a convicção cristã de que «deve crer-se firmemente, como dado perene da fé da Igreja, a verdade de Jesus Cristo, Filho de Deus, Senhor e único salvador, que no seu evento de encarnação, morte e ressurreição realizou a história da salvação, a qual tem n’Ele a sua plenitude e o seu centro»”.
Ao sublinhar que “a grandeza incomparável de Maria está no que ela recebeu e na sua disponibilidade confiante a deixar-se preencher pelo Espírito”, o texto recorda, no entanto, que “a mediação de Cristo, que sob alguns aspetos pode ser ‘inclusiva’ ou participada, sob outros aspetos é exclusiva e incomunicável”.
Por fim, a invocação “Mãe da graça” também pode causar confusão, no que se refere à vida da graça dos fiéis. “Convém advertir que certas expressões, que podem ser teologicamente aceitáveis, com facilidade estão carregadas de um imaginário e simbolismo que transmitem, efetivamente, outros conteúdos menos aceitáveis. Por exemplo, apresenta-se Maria como se ela tivesse um depósito de graça separado de Deus. (…) Imaginários deste tipo enaltecem a Maria de tal modo que a centralidade do mesmo Cristo pode desaparecer ou, pelo menos, ser condicionada”. O texto cita o cardeal Ratzinger, quando era Prefeito para a Doutrina da Fé, ao expressar que o título de Maria medianeira de todas as graças “não era claramente fundado na Revelação e, em sintonia com essa convicção, podemos reconhecer as dificuldades que este título implica tanto na reflexão teológica como na espiritualidade”.
No fundo, “nenhuma pessoa humana, nem sequer os apóstolos ou a Santíssima Virgem, pode atuar como dispensadora universal da graça. Apenas Deus pode conceder a graça e fá-lo por meio da humanidade de Cristo”, recorda a Nota. “Ainda que a Santíssima Virgem Maria seja preeminentemente ‘cheia de graça’ e ‘Mãe de Deus’, ela, como nós, é filha adotiva do Pai e coopera na economia da salvação por uma participação derivada e subordinada; portanto, qualquer linguagem sobre sua ‘mediação’ na graça deve entender-se em analogia remota com Cristo e sua única mediação”, esclarece a Santa Sé.
Maria, “advogada da graça”, é para todo o cristão, “a primeira na fé, é aquela que acreditou e, precisamente com esta sua fé de esposa e de mãe, ela quer atuar em favor de todos os que a ela se entregam como filhos”, frisa o texto. “Na Cruz, Cristo entrega-nos a Maria e, deste modo, conduz-nos a Ela, porque não quer que caminhemos sem uma mãe.”
Esta Nota valoriza a imensa devoção mariana espalhada pelo mundo, ao considerar que, ”nos mais variados rostos de Maria – coreano, mexicano, congolês, italiano e tantos outros – as várias formas de inculturação do Evangelho refletem «a ternura paterna de Deus» que chega até as entranhas dos nossos povos”.