21 set, 2025 - 22:00 • Daniela Espírito Santo
Donald Trump vaticinou em julho e, em setembro, acabou mesmo por acontecer: depois de anunciado o fim do programa "The Late Show with Stephen Colbert", eis que a estação de televisão ABC, detida pela Walt Disney, anunciou que vai suspender indefinidamente a emissão do programa “Jimmy Kimmel Live”.
“Adoro que o Colbert tenha sido despedido. O seu talento é ainda menor do que as suas audiências”, escreveu em julho Donald Trump, em reação à decisão da CBS de acabar com o programa noturno de Colbert por "razões financeiras".
Agora chegou a vez de Kimmel, que viu o seu "talk show" suspenso após declarações do apresentador sobre o aproveitamento político do assassinato de Charlie Kirk, influencer conservador e aliado de Trump, que suscitaram duras críticas por parte de Brendan Carr, presidente da Comissão Federal de Comunicações (FCC) - a entidade reguladora que fiscaliza os emissores televisivos.
“Podemos fazer isto da maneira fácil ou da maneira difícil" - Brendan Carr
“Podemos fazer isto da maneira fácil ou da maneira difícil. Estas empresas podem encontrar maneira de mudar a conduta e tomar medidas contra Kimmel, ou haverá trabalho adicional para a FCC no futuro", disse Carr, num podcast.
Antes que fosse instaurado algum hipotético processo - e horas depois da emissão que foi criticada por Carr - a ABC anunciou o afastamento de Kimmel, estrela do canal há duas décadas.



Para Manuel Poêjo Torres, a reação a este episódio reflete a crescente polarização política "entrincheirada na sociedade" norte-americana e do Ocidente "democrático e livre". À Renascença, o especialista em política internacional diz que este acontecimento "não choca, mas surpreende", especialmente porque os talk shows são "programas que estão no ar há muitos anos", que "fizeram escola de televisão no mundo inteiro" e acabam por ser "uma imagem de marca da televisão norte-americana".
"Não é uma situação que choque pessoas que estão habituadas a lidar com ambientes públicos e que conheçam bem as dinâmicas entre o poder político e o quarto pilar do poder, a comunicação social", começa por dizer o comentador, que salienta que, neste segundo mandato, "Trump tem sido muito vocal e muito crítico dos seus próprios críticos".
"É um mandato onde o seu poder está consolidado e não precisa de provar nada a ninguém", explica Poêjo Torres, que relembra que, na sua primeira passagem pela Casa Branca, Trump era "considerado um novato, um político amador", com muitos a pensarem que seria "um flop".
Agora, e de regresso à liderança dos destinos dos EUA, a sua "postura é bastante mais vincada" e a sua presidência passa a estar "veiculada num alicerce de força", espelhado na comissão responsável por fiscalizar as comunicações, a FCC (e no presidente apontado por Trump), que passa a fazer marcação cerrada aos canais a quem dá licenças para operar e, sobretudo, às cadeias de televisão que Trump considera "tendenciosas". Isso, aliado ao facto de Trump ser um Presidente "que mexe com as emoções", com medidas "altamente populistas", faz com que o caso também seja visto com outros olhos.
"Este caso a acontecer numa administração Bush, Obama ou Nixon provavelmente não teria o mesmo impacto que tem hoje", equaciona.


Manuel Poêjo Torres explica como funciona a FCC e o que aconteceu a Jimmy Kimmel
Como explica Poêjo Torres (no áudio acima), as presidências de Obama e Biden não procuraram "policiar se os canais de sinal aberto estariam ou não a cumprir com aquilo que estava articulado nas suas licenças de emissão" (e que implica deveres de isenção para "servir o interesse nacional").
O mesmo não acontece com um Presidente que já processou vários meios e assumiu querer "endireitar" a comunicação social. Nesse sentido, Kimmel acabou por cair numa "armadilha" que "já estaria montada à espera deste tipo de comunicações", ao expressar "comentários deselegantes" sobre Charlie Kirk e Trump "várias vezes ao longo do último ano", diz o comentador.
EUA
Programa do apresentador norte-americano foi suspe(...)
"Se há uma licença para um sinal emitir em antena aberta e o pressuposto primário dessa autorização é servir o interesse nacional, então servir o interesse nacional não é necessariamente apontar críticas a apenas metade do eleitorado americano", diz Poêjo Torres.
"Esta tentativa de colagem política a um talk show humorístico acabou por levantar suspeitas de inclinações políticas dentro de um programa de um canal de sinal aberto, que está vinculado a uma licença de emissão", defende o especialista, que acredita que isso - aliado ao facto da Disney já estar "pressionada politicamente" - obrigou a empresa a encarar este cenário como "mais um problema a resolver".
No passado, o mesmo aconteceu na ala conservadora, com outros comentadores a deixarem a televisão em episódios envoltos em polémica ou "por motivos paralelos". O analista político recorda os casos de Tucker Carlson, Alex Jones ou, mais recentemente (e também por comentários sobre Kirk), Matthew Dowd para defender que o fenómeno não é um exclusivo à "esquerda".



Já para Fernando Alvim, que também apresentou em tempos um "talk show", o "5 para a Meia Noite", na RTP, o afastamento de Jimmy Kimmel é "um péssimo sinal". O humorista não tem dúvidas: o que aconteceu foi "claramente um sinal de coação perante a liberdade de expressão", que "está a acontecer nos Estados Unidos", mas também "pode vir a acontecer noutros países".
"Começam a parecer-me demasiadas coincidências. Parece-me que o mundo está a caminhar para um lugar estranho", lamenta, assumindo, no entanto, que "não estava à espera" deste desfecho, a que chama "uma manobra de silenciamento". "Parece-me claro que é uma forma de condicionamento", assegura.



No entanto, Fernando Alvim acredita que o incidente poderá ter até "o efeito oposto", numa altura em que a televisão continua a ser "um meio importante", mas a Internet oferece novas possibilidades e públicos. "Não é o facto de retirarem o programa ao Jimmy Kimmel que o vai silenciar. Pelo contrário", assevera, deixando uma espécie de apelo de "união" a Colbert e Kimmel que, acredita, poderão ser "muito mais incontroláveis" online - onde poderiam gozar "de muito mais liberdade" e aproveitar a "atenção redobrada".
"Com os meios que há disponíveis, até pode haver uma junção de humoristas que foram silenciados num programa online tão ou mais visível do que os anteriores que passavam na televisão", vaticina.
"Era o que eu faria no lugar deles", admite.
Por cá, Fernando Alvim não acredita que um cenário similar pudesse acontecer. "Acho que, neste momento, isso ainda não está em cima da mesa mas, cada vez mais, esta cultura poderá dar origem a fenómenos de imitação", entende.
Não está preocupado com a liberdade de expressão por cá, mas deixa o aviso. "Acho que uma sociedade que tenta silenciar a liberdade de expressão - seja ela, neste caso, com humor ou não -, é uma sociedade que caminha para o abismo", remata.



Voltando aos EUA - e ao analista político Manuel Poêjo Torres - a dúvida persiste: estaremos perante um problema de limitação à liberdade de expressão ou tudo não passa de uma cedência das empresas às leis do mercado e a um novo zeitgeist? No final de contas, e com os republicanos e os democratas a lerem o episódio com lentes próprias, o certo é que, apesar do episódio poder chocar "por ter contornos de censura", Poêjo Torres assegura que tal não acontece "do ponto de vista jurídico".
Não houve qualquer tipo de mudança legislativa na regulação à comunicação social, diz o professor, que acredita mais na ideia de que terá sido o "próprio mercado" a conduzir a este desfecho: uma das "desculpas" dadas pelo canal foi a "contenção de custos" e há rumores de que as "marcas de share" estariam a níveis menos desejáveis. "Ora, share é tempo, tempo é dinheiro e nestas coisas o dinheiro manda".
eua
Presidente norte-americano escreveu que o cancelam(...)
Na dúvida, aguarda com expectativa as cenas dos próximos episódios para verificar se o presidente da FCC "vai continuar a policiar as estações em canal aberto". "Para já, não me parece que haja indícios de censura, mas talvez seja cedo demais para conseguirmos fechar esse capítulo", vaticina, especialmente porque quem governa os EUA neste momento "não é um Presidente qualquer", nem quer ser um Presidente qualquer".
"O problema não foi Jimmy Kimmel. O problema foi a ABC e o grupo-mãe", assegura o professor, que relembra que a empresa de media a que pertencia o humorista está "quase em guerra ideológica com os republicanos e o grupo MAGA", guerra essa que "não quer continuar". "Uma guerra com o programa de Kimmel à frente desse batalhão", diz, é uma guerra que "nem a ABC, nem a Disney, nem nenhum dos acionistas quer continuar a patrocinar".
Porquê? "Não podemos ignorar os sinais: neste momento, Donald Trump é uma pessoa com muito poder", remata.