11 out, 2025 - 13:15 • José Pedro Frazão
Se o mundo inteiro do espectáculo passou pelo Carnegie Hall em Nova Iorque, Amália não faltou à chamada. A América tinha chegado à sua carreira nos anos 50, no já desaparecido "La Vie en Rose", em Nova Iorque, cidade que Amália conquistaria em definitivo nos anos 60. A Europa consolidava a paz com ajuda americana, a grande voz do fado aproveitava a "ponte" para atuar nas grandes salas da América como o Carnegie Hall.
Esta noite, 26 anos após a sua morte, Amália volta ao escaparate do Carnegie Hall. A sua silhueta a azul sob fundo encarnado domina o cartaz de "Amália in América", brindando aos 40 anos de vida da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, criada também para fazer pontes entre vizinhos atlânticos, Portugal e os Estados Unidos.
O espetáculo junta os cantores Ricardo Ribeiro, Raquel Tavares e Cristina Branco num palco dominado pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, estreante em terras americanas. Organizado pela ÉGIDE, Associação Portuguesa das Artes, o espetáculo assume-se "Beyond Fado", para além do fado, como sugere o subtítulo do concerto, prometendo ir além da canção imortalizada por Amália.
O que está no programa não é fado tradicional, mas canções populares portuguesas com vozes e orquestra, que Amália cantou pelo mundo, como em Nova Iorque, na parceria com a Filarmonia conduzida pelo maestro Kostelanetz nos anos 60.
"Não há nada que se vá comparar. Podemos fazer muitas coisas, já todos fizemos, mas este é um momento singular na vida e na carreira de todos que aqui estão", diz Raquel Tavares que confessa estar perante uma empreitada "desafiante". Foi a primeira artista do cartaz a escolher repertório, dando voz a clássicos como "Senhora do Livramento", " Rosa Branca ao peito" ou "Ai Mouraria".
Raquel Tavares assume que está ainda a descobrir Amália. "Foi uma fadista que me demorou a chegar. O fado de onde venho e que cantei a vida toda era um pouco distante da Amália. Talvez por ausência de compreensão ou de maturidade para entender a Amália que é um universo de facto muito complexo."
O desafio do concerto é reinterpretar Amália e estas canções, com vozes novas e diversas. "Ninguém aqui pode ter a capacidade, nem quereria assemelhar-se a uma interpretação amaliana", explica.
Na conferência de imprensa que antecedeu o espetáculo, marcada por inusitados e persistentes alarmes sonoros na sala, Ricardo Ribeiro encheu a mesa de alegorias. "O fado é como uma árvore. Tem o seu sistema radicular, o seu tronco e vários galhos. Nenhum galho é igual ao outro. O fado é como uma árvore que tem uma raiz e um tronco, que é preciso respeitar e estimar. E depois os galhos, uns que sobrevivem floridos, belíssimos, outros que caem, porque não têm base para sustentar, a seiva não chega lá."
A "folhagem" desta "árvore" hoje em concerto em Nova Iorque é fornecida pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida por Jan Wierzba. "Ele é um harmonioso, porque a harmonia é a capacidade de juntar os opostos, de os harmonizar no justo caminho do meio. É o que ele faz exatamente", explica Ricardo Ribeiro, que vai interpretar canções como "Quando eu era pequenina", "Erva Cidreira ao Monte" ou o único fado que assim se declara, "Amália"
"Há duas coisas na música que são extraordinárias. É a arte de acompanhar e a humildade de ser acompanhado. Quando o cantor tem noção de que está a ser acompanhado, e que tem que ser um corpo só e tem que atingir a unidade para que tudo soe uma coisa só, é quando a música acontece. Acompanhar é caminhar ao lado. Nem é perseguir, nem andar à frente, nem atrás", explica o fadista quando a Renascença o questiona sobre a diferença que cantar ao lado de uma orquestra sinfónica.
"Tem que haver um compromisso", complementa Raquel Tavares. "Não estou sozinha, estou acompanhada por uma orquestra sinfónica, há um arranjo para respeitar, o maestro está lá para nos acompanhar e é o fio condutor entre todos", explica a artista.
É também tempo para a orquestra sair da "zona de conforto" da música clássica e contemporânea. Mas há precedentes no alinhamento que ajudam. Na segunda parte do concerto, serão interpretados "standards", ou seja, canções do cancioneiro americano que fez história nesta mesma Broadway. Canções como "Summertime", "Blue Moon" ou "The Nearness of You" já nasceram em panos de orquestra e terão vida nova pela voz de Cristina Branco.
"Provavelmente o repertório que estou a cantar é o mais próximo e o que será mais natural de cantar com a orquestra. No fundo, é só reinterpretar aquilo que Amália fez e dar-lhe o meu cunho pessoal. Aliás, é isso que nos distingue, não imitamos ninguém. Na verdade, o princípio deste espetáculo, quando nos foi proposto, foi precisamente isto", confessa Cristina Branco.
Depois do espetáculo, haverá desejos tímidos de repetição. Raquel Tavares confessa aos jornalistas que gostava que este concerto fizesse carreira. "Que fosse um espetáculo que pudéssemos estar a falar dele em mais salas do mundo e naturalmente em Portugal. Tem todas as capacidades para isso, com toda a modéstia".
Para já, ainda há que o tocar e cantar na Nova Iorque de outubro de 2025. "Amália ajuda-nos imenso a cantar nesta sala", atira Ricardo Ribeiro.
"Os portugueses têm um problema de memória, que vem do início do Atlântico e do fim do Mediterrâneo. Perdemos facilmente a memória, mas de quando em vez, Amália vive. E de repente, parece que já não se fala da Amália e vem qualquer coisa que põe outra vez a Amália onde ela merece estar."
A Renascença viajou a convite da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento.