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Futebol internacional

​Porque o menottismo é tão importante no futebol

07 mai, 2024 - 12:20 • Hugo Tavares da Silva

César Luis Menotti morreu num domingo, claro, um dia santo para o futebol de tempos idos. Conhecer uma parte do legado do homem nascido em Rosário é uma obrigação.

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Quando o gravador picou o ponto e terminou finalmente a sua jornada laboral, Jorge Valdano comentou que César Luis Menotti tinha estado hospitalizado e que, assim que pôde, enfiou um cigarro nos lábios e lá esfumaçou alegremente. Valdano riu-se a contar. Na entrevista à Renascença, minutos antes, já tinha falado sobre o selecionador campeão do mundo que morreu este domingo, aos 85 anos.

“Conheci Menotti na minha adolescência. Era um treinador que te autorizava a levar para o campo os sonhos de menino”, contou a certa altura, por ocasião de sermos mais felizes ou não quando estamos mais perto da criança que fomos. Menotti, campeão do mundo em 78 e depois de sub-20 em 79, perguntava aos jogadores com o que sonharam em tempos idos. “Então vai lá para dentro e faz isso, quem te impede?”, relatou Valdano. E acrescentou: “Isso reconciliava-te com o sonho de criança. Há outros treinadores que atentam contra o sonho de menino…”

O histórico treinador argentino foi um dos maiores influenciadores no futebol. Não só pelos conceitos que agregou à lengalenga deste jogo, como pela apologia da beleza, a necessidade de jogar bem, a implementação do futebol num contexto social, futebol como tecido sociocultural, afinal é das pessoas ou devia ser. Nos últimos anos, largos anos, afirmou que o futebol vai sendo roubado das pessoas.

Antes que o veneno do resultadismo entre nesta conversa, damos já conta de um dado avassalador: Menotti não venceu títulos nos últimos 25 anos da carreira. Dito isto, avancemos.

Uma das mais gloriosas histórias de César Luis Menotti, a razão pela qual Aimar se chama Pablo César, aconteceu quando jogava no Boca Juniors. E define-o totalmente. Foi Ángel Cappa, fiel companheiro e com quem escreveu o livro “Fútbol sin trampa”, é que a contou na “Jot Down”. O Boca estava a perder, numa qualquer tarde, e Rattín disse-lhe no relvado: “Flaco, corre, que nos matam”. E Menotti, perante o delírio da derrota, respondeu: “Era a única coisa que faltava era ter de correr para jogar futebol”. Cappa justificou-o: “O Menotti é de Rosário”. E riu-se.

Mas Cappa continuou, qual biógrafo na clandestinidade. Noutra tarde, Menotti levou uma porrada e, ele que nunca reagia e era calminho, desatou numa correria atrás do adversário e espetou um carrinho, recuperando a bola e ajudou o Boca a vencer esse jogo. Quando voltou a Rosário, foi ao seu quiosque de sempre comprar uma revista, quem sabe a “El Gráfico”. O homem do quiosque nem olhava para ele. “Que se passa, não joguei bem?”, questionou César Luis. “Agora também te atiras para os pés dos outros?”, respondeu o nobre funcionário. “Atirar-se para os pés dos rivais, em Rosário, era uma traição ao estilo. É uma grosseria”, contextualizou Cappa.

Bom, Menotti foi isto.

Foi talvez o maior defensor da “La Nuestra”, a forma argentina ou sul-americana de jogar, avisando sempre para os perigos da globalização, da imitação, do seguir os ideários utilitários da Europa.

Na sua história, para além das boas equipas que formou, fica marcado não ter levado um 'jovencito' Diego Armando Maradona ao Mundial de 1978, conquistado nas asas de Kempes. Esse triunfo num Campeonato do Mundo caseiro, dos ‘papelitos’, durante a vigência do sanguinário regime de Videla, associou-o à ditadura. Mas ele combateu como pôde, nomeadamente ao assinar uma publicação a exigir conhecer o paradeiro dos desaparecidos do regime. Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, por exemplo, também assinaram.

“Ao Borges ninguém conhece, tu és o Menotti”, disse-lhe Grondona, o presidente da federação na altura, tentando demover o fervor comunista do rosarino. A história saiu no “Clarín”, no domingo, num texto assinado por Daniel Lagares.

Menotti é olhado como um homem romântico, um defensor do futebol bonito e ofensivo. Claro, por outros, é olhado também como um “vendedor de fumo”, que é como quem diz charlatão. Chegou a dizer que Guardiola era o Che Guevara do futebol e que expôs muitíssimas fraudes. O catalão visitou-o no início da carreira e beberam um vinho e comeram, entre outras iguarias, muito futebol. Numa entrevista, revelou que quis ser Guardiola antes de Guardiola, mas que, nos anos 80, um passe para traz era premiado com uma gloriosa assobiadela. No campo, nunca ninguém chegou perto de Pelé, segundo Menotti, que defendeu sempre o génio brasileiro até à morte. Jogaram juntos no Santos.

Durante a carreira de futebolista, de bom futebolista segundo os relatos, jogou no Rosário Central, Racing, Boca Juniors, New York Generals, Santos e Juventus-SP. Como treinador, o currículo é igualmente rico. Newell’s, Huracán, seleção argentina, Barcelona, Peñarol, Atlético Madrid, River, seleção mexicana, Independiente, Sampdoria (fotografia em cima, com Klinsmann), Rosário Central, Puebla e Tecos UAG.

Mítico foi o duelo ideológico protagonizado com Carlos Bilardo (“o futebol é tão generoso que evitou que Bilardo se dedicasse à medicina”, disse uma vez sobre o campeão do mundo de 1986). Um mais resultadista, mais pelo ganhar como tiver de ser, e o outro que dizia que havia que cuidar bem a “pelota”. “Pelota” sempre, irritava-o quando jornalistas e jogadores diziam “balón”, como em Espanha. A “pelota” é das pessoas, explicou certa vez.

“Se pensarmos que as duas últimas revoluções no futebol foram o Milan de Arrigo Sacchi e o Barcelona de Pep Guardiola, e ambos terem dito que muitas ideias sustentaram-nas em Menotti e na sua filosofia, temos em conta de quem falamos”, revelou Rúben Rossi, um integrante da seleção sub-20 de 79, numa entrevista à “Tribuna Expresso”, em 2019.

“É muito inteligente. A sua filosofia vê-se refletida no campo de jogo. (...) Eu jogava muito bem à bola, mas aprender a jogar futebol realmente, aprendi com Menotti. Ensinou-me a manejar espaços, tempos, a servir-me do engano, a saber fazer os avançados caírem na armadilha e perceber que há ações na linha de fundo que servem para depois os jogadores brilhantes criarem à frente”, explicou Rossi. Essa é outra: a “arte do engano” era uma das suas maiores lutas.

Em tempos, este que vos escreve perguntou a Ángel Cappa porque chamam “vendedor de fumo” a pessoas como Menotti. “Porque os discursos que vão contra o sistema são resistentes”, começou por dizer. “Eles dizem que há que ganhar de qualquer maneira e não há nada com mais falta de conteúdo do que essa frase. Nada tem mais fumo do que dizer que há que ganhar a qualquer custo, porque ninguém explica o que isso quer dizer. Para eles, o mais importante é o resultado e não têm em conta o jogo, que é o que nos faz dignos. O resultado, como dizia Eduardo Galeano, não é o mais importante: não se joga para ganhar, joga-se para jogar. O triunfo é uma recompensa.” Resumindo, "Menotti ajudou-nos a entender o jogo, a meter-nos no interior do jogo e a compreendê-lo melhor".

Era impossível dissociar futebol e moralidade para Menotti. E era o maior defensor da estética e da qualidade em cima de um relvado. Exemplo disso é uma história mui conhecida de Valdano, que revelou uma reunião dos jogadores da seleção argentina com o selecionador, mas sem Diego Maradona. O treinador perguntou-lhes: “Quantas bolas acham que devem passar ao Maradona no jogo?”... “Todas!!”, atirou sem esperar muito.

Jorge Valdano escreveu no domingo sobre o seu antigo treinador, o homem que lhe deu a estreia na seleção: “Menotti definiu, defendeu e difundiu um estilo que expressava o futebol argentino a partir da estética futebolística elegante e uma cultura de rua orgulhosa”. Valdano, com justiça, recorda que a forma de defender com uma equipa curtinha é outro dos legados de Menotti. Era o famoso “achique de espacio”. E o maior elogio de todos: “Escutá-lo produzia ganas de jogar futebol”. Que belo.

Recentemente, voltou à federação argentina e é, diz-se, o maior impulsionador do regresso à “La Nuestra”, uma forma de jogar que finalmente triunfou na final do Mundial no Qatar, imitando os feitos de 1978 e 1986. Scaloni, Messi e Aimar parecem falar a sua linguagem. E a Argentina ganhou à argentina, trata-se da maior justiça poética possível para este homem que parecia eterno.

“Pode perder-se um jogo, mas o que não se pode perder é a dignidade de jogar bem futebol.”

Menottismo.

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