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Um ano de guerra na Ucrânia

China não irá fornecer armas à Rússia, diz Sérgio Sousa Pinto

23 fev, 2023 - 23:01 • Susana Madureira Martins

Em entrevista à Renascença, o presidente da comissão parlamentar de Negócios Estrangeiros afirma que "o conflito não pode chegar às fronteiras da Moldávia".

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Entrevista a Sérgio Sousa Pinto

Na manhã desta sexta-feira, Sérgio Sousa Pinto fará a primeira intervenção no plenário da Assembleia da República desde há vários anos. A Renascença encontrou o presidente da comissão parlamentar de Negócios Estrangeiros a rever o discurso que irá proferir no debate marcado para assinalar o primeiro ano de invasão da Ucrânia pela Rússia.

Nos 15 minutos que durou a entrevista, realizada na sala contígua à Biblioteca Passos Manuel, onde costuma dirigir os trabalhos da comissão, assumiu que 2023 é um bom ano para realizar as prometidas visitas a Kiev do Presidente da República e do presidente do Parlamento. Seria simbólico e "tudo o que releva do simbólico é muito importante", assume.

Nesta entrevista, Sérgio Sousa Pinto diz-se convicto que a China não irá fornecer armamento à Rússia e não vê que Pequim ponha "em causa as suas relações económicas de grande interdependência e complementaridade com a Europa". Perante os receios da expansão do conflito ucraniano para dentro da fronteira da Moldávia, o deputado do PS e presidente da comissão de Negócios Estrangeiros conclui que, a acontecer, " isso significa que o Ocidente se revelou incapaz de apoiar a Ucrânia".

Ainda esta semana vamos ter um novo pacote de sanções à Rússia na sequência da invasão à Ucrânia. Vê a Europa a falar a uma só voz ou ter dificuldades em ser um motor de uma solução qualquer para este conflito?

Bom, a Europa está a falar a uma só voz e essa é uma das grandes derrotas de Putin, que imaginou que as dificuldades por que a Europa passaria, desde logo o impacto assimétrico dos preços da energia e do acesso à energia, desde logo a dependência da Alemanha em relação ao gás russo, pudessem causar fissuras na posição europeia.

A verdade é que a Europa foi capaz de reconhecer o essencial. O que está aqui em causa, que é a defesa da ordem Internacional, tal como nós a conhecemos desde 1945 e que, em nome de um bem maior que é a preservação da paz na Europa, nas condições estabelecidas e reguladas pelo Direito Internacional, era mais importante do que os custos que nós procuramos suportar de uma forma equitativa entre todos.

Em 2023 acha que há uma certa pressa por parte dos europeus para encontrar uma solução antes, por exemplo, das eleições europeias e das eleições americanas?

Há. Há uma pressa, em ter resultados, mas não tem a ver com esses eventos eleitorais. Tem a ver com o próximo Inverno, que voltará a confrontar a Europa com a necessidade de encontrar formas de abastecimento energético alternativas e a preços compatíveis com o funcionamento das economias europeias e com a capacidade também das famílias proverem às suas necessidades, o aquecimento das casas.

Tivemos um Inverno ameno, sobretudo nos países do Norte da Europa, o que de algum modo contribuiu para diminuir o impacto da carestia da energia. Também já foi possível baixar os preços de energia para níveis aceitáveis. Nada nos garante que no próximo ano o mesmo seja viável. Muito embora a construção em curso de terminais de gás liquefeito talvez possa de algum modo atenuar as carências europeias e diminuir a sua dependência em relação ao fornecimento do de origem russa.

De resto, esse tem sido um dos temas aqui em Portugal, o de ser fornecedor de energia para o resto da Europa. Isso é algo que podemos ver nos próximos meses e haver aqui algum tipo de solução?

O gás natural tem sido considerado uma fonte energética de transição. Não é tão poluente como o carvão, como os combustíveis fósseis em geral, mas é uma fonte energética de transição.

Neste momento não é possível, a indústria pesada e muitos setores económicos e o próprio consumo doméstico também não podem ser integralmente satisfeitos através de energias alternativas, mas um dia que seja tecnicamente possível realizar esse objetivo coletivo, Portugal é um dos países mais bem colocados, não é o único, mas é um dos países mais bem colocados para ser um produtor excedentário de energia e produtor/exportador.

Mas, neste momento, o que está dentro de nós não é isso, é satisfazer as necessidades da Europa e diminuir a dependência estratégica da Europa em relação à Rússia. Portanto, o que está em causa é a segurança energética da Europa.

Esta aproximação ou aparente aproximação da China à Rússia é um problema novo ou era um problema que já existia e que agora está a ser mais evidente?

A China não tomou propriamente posição. E a expectativa do Ocidente é que a China não venha a tomar posição alinhando-se com a Rússia. Aliás, a China já teve ocasião de explicar que considera que as fronteiras entre os Estados são dados da ordem internacional, elementos estáveis e sagrados, que não podem ser postos em crise e, portanto, não concorda com uma política externa expansionista. E também não tem contribuído para o fornecimento de armamento à Rússia.


Mas têm havido avisos nesse sentido por parte dos Estados Unidos, por exemplo, e Portugal também fez nos últimos dias declarações, quer o ministro dos Negócios Estrangeiros, quer o Presidente da República, no sentido de a China não se aproximar desta maneira da Rússia.

Estou convencido que a China não se aproximará da Rússia da forma que seria para nós verdadeiramente inaceitável, ou seja, fornecendo apoio militar à Rússia, não tanto por causa das posições que as figuras representativas do Estado português possam tomar no palco Internacional, mas porque a China tem uma compreensão da política Internacional muito assente na identificação do que é o seu interesse próprio.

E a China, sendo um país muito envolvido na interdependência económica inerente à globalização não tem qualquer vantagem em agravar o seu relacionamento com países parceiros e a Europa é um parceiro importantíssimo da China. Não vejo que a China pusesse em crise as suas relações económicas de grande interdependência e complementaridade com a Europa em virtude do conflito na Ucrânia.

O Presidente da República disse ainda esta semana que a vinda de uma nova embaixadora ucraniana para Portugal, substituindo a anterior, tornaria possível agilizar uma viagem a Kiev é. Este é um sinal que é preciso dar por parte de Portugal, uma ida a Kiev da mais alta figura do Estado português?

É, porque tem justamente essa importância simbólica e a importância simbólica é muita, tudo o que releva do simbólico é muito importante. Nós temos que contribuir também para o esclarecimento da opinião pública europeia e, neste particular, da portuguesa, fundamentalmente do que está em causa aqui são interesses que não têm só a ver com os interesses da Ucrânia, bater pela sua liberdade, pelo seu direito a existir na Comunidade das Nações como um Estado soberano e não como um Estado tampão, um satélite subordinado aos interesses geo-estratégicos da Rússia.

Nós estamos a bater-nos pela prevalência do Direito Internacional, que é um factor enorme de segurança coletiva e também contribui decisivamente para a nossa segurança nacional e, portanto, são os nossos interesses que estão em causa, porque os nossos interesses estão em linha com a prevalência do direito internacional e com uma ordem externa que é regulada pelo direito e não pela lei do mais forte.

Há também a previsão de o presidente da Assembleia da República fazer, pelo menos foi convidado de fazer uma visita a Kiev. Em 2023, acha que isso pode acontecer com a presença de uma delegação de deputados e de elementos da Assembleia da República?

Acho que sim. Acho que tudo isso são iniciativas positivas que contribuam para essa conscientização europeia e portuguesa. Não é só um sinal que é dado aos nossos amigos, os ucranianos, que nós apoiamos dentro daquilo que são as nossas possibilidades, mas também, para reforçar uma consciência nacional que a questão ucraniana é uma questão vital, também para nós. Porque o que está em causa é saber em que tipo de mundo é que nós queremos viver.

Nós queremos viver num mundo submetido a uma ordem jurídica acordada livremente pelas Nações, depois dos horrores do século XX e da Segunda Guerra Mundial, uma ordem jurídica Internacional que é muito imperfeita, que não tem uma força de coação que impõe ao cumprimento pelo direito, como acontece na ordem interna dos Estados, em que temos instituições que garantem que nós sejamos efetivamente um Estado de direito. A ordem Internacional não está submetida a esse primado da lei do direito Internacional, mas é contudo, com todas as suas imperfeições, um progresso histórico enorme para a humanidade, enorme para a Europa, que é um continente martirizado pela guerra, é um dos pontos mais historicamente mais instáveis e mais atreitos a conflitos militares. É isso que nós vemos de observação da história, mas nós aprendemos duramente, aprendemos uma lição horrível, uma lição altamente traumática com as experiências dos dois conflitos mundiais do século XX.

Portanto, nós estamos especialmente bem colocados para perceber as vantagens de conseguirmos submeter as relações entre os Estados, não ao princípio do abuso, da brutalização dos fracos pelos fortes, mas da ordem Internacional, onde as fronteiras são respeitadas, onde o direito à liberdade de cada Estado existir no concerto Internacional, livre e independente, com voz própria, sem ser uma espécie de Estado vassalo dum vizinho mais poderoso. Isto também é do nosso interesse vital. É essencial que nós saibamos criar as condições para que os nossos filhos herdem uma ordem externa tão decente e regulada pelo direito e pelos valores universais, como foi aquela que nos foi legada.

A guerra estará para durar e poderá ultrapassar as fronteiras para a Moldávia?

Bem, se o conflito ultrapassar a fronteira para a Moldávia, isso significa que o Ocidente se revelou incapaz de apoiar a Ucrânia. O conflito não pode chegar às fronteiras da Moldávia. O conflito tem que ser detido, travado e vencido no território da Ucrânia. Uma qualquer paz com promissória, que ainda assim traga um prémio, uma vantagem qualquer a um Estado agressor, um Estado que se coloca fora do direito Internacional, um Estado que exerce o poder de conquista sobre os seus vizinhos, que paz era essa que sairia do compromisso com um Estado com estas características?

Que paz era essa resultante de um compromisso com uma autocracia expansionista e com uma visão imperial da Europa, assente nos velhos paradigmas da geoestratégia, da profundidade estratégica dos Estados-tampão, dos Estados satelizados, do primado do interesse nacional sobre o Direito. Que tipo de paz seria essa? Seria sempre uma paz precária. Uma Ucrânia mutilada é uma Ucrânia vulnerável, a qualquer momento seria engolida pela Rússia. Não haveria paz, não haveria estabilidade, não haveria segurança coletiva e, portanto, é essencial que esta guerra seja decidida na Ucrânia e que ela não tenha consequências fora das suas fronteiras.

Ela só poderá ter repercussões fora do quadro estritamente do território ucraniano se não for possível travar a Rússia e travar a Rússia é uma prioridade essencial para aquelas Nações que se reconhecem na necessidade de uma ordem externa regulada pelo primado do direito Internacional.

A derrota da Rússia terá de ser total? Não poderá haver contemplações depois do conflito, eventualmente, terminar?

Essa é uma decisão que pela natureza das coisas só poderá ser tomada pela Ucrânia. Mas é natural que seja necessário encontrar uma solução de compromisso satisfatória para ambas as partes, mas é indispensável que o resultado desse compromisso não coloque a Ucrânia numa posição de vulnerabilidade, que a subordine e que a converta num estado vassalo da Rússia, porque se isso acontecer, voltamos ao ano de 1938, que é aquele ano fatídico, que precede a Segunda Guerra Mundial, em que as forças alemãs anexam uma parte da Checoslováquia e, seis meses depois, toda a Checoslováquia tinha sido tomada pela Alemanha e nós sabemos o que é que se seguiu.

Nós temos a obrigação de aprender qualquer coisa com a História. Não podemos aceitar que o passado desfile diante dos nossos olhos, repetindo nós os erros que outros cometeram antes de nós. Não é possível aplacar uma potência expansionista com uma concessão imperial, não é possível.

É preciso vacinar o mundo contra estes velhos instintos dos poderosos pisarem e esmagarem os direitos dos mais vulneráveis, dos mais fracos. Todos nós sabemos hoje que Putin fez uma avaliação errada sobre a Ucrânia. Achou que ela era mais fraca e mais indefesa do que efetivamente está a revelar ser.

Mas nós temos que nos bater apoiando os ucranianos, que são quem está a pagar o essencial do sacrifício, o sacrifício que nos tem cabido a nós no custo da energia, na inflação é, apesar das dificuldades que nós experimentamos, ínfimo comparado com o preço de sangue que Ucrânia está a pagar. Mas a Ucrânia está do lado certo, tem do seu lado o direito, tem do seu lado a justiça. E nós estamos aqui a tentar manter de pé uma ordem externa que herdámos e queremos que seja aquela que vai vigorar no tempo dos nossos filhos.

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