08 jul, 2016 - 08:15 • Dina Soares , Joana Bourgard (imagem)
No Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, todas as semanas chegam à urgência pelo menos dois casos de anorexia grave. São sobretudo raparigas. Até há pouco tempo tinham 13 ou 14 anos. Hoje é comum surgirem meninas de 11, 10 ou mesmo nove anos.
A anorexia nervosa está no terceiro lugar das doenças crónicas mais frequentes na adolescência. No serviço de pedopsiquiatria daquele hospital pediátrico, ocupam metade das vagas de internamento e são as doenças mentais com maior taxa de mortalidade.
A principal característica da anorexia nervosa é a restrição na ingestão de alimentos. As doentes são obcecadas pelo controle das calorias e começam a comer cada vez menos, e menos e menos, ao mesmo tempo que intensificam o exercício físico, até ao exagero. Além disso, preocupam-se excessivamente com a imagem corporal (normalmente distorcida), têm uma baixa auto-estima e vivem na busca constante da perfeição. A doença começa na adolescência e prolonga-se pela vida adulta.
Margarida Marques é pedopsiquiatra no Hospital Dona Estefânia. Na sua já longa experiência com este tipo de doentes encontra um padrão. "São excelentes alunas, muitas vezes descritas como jovens exemplares, a quem os pais pouco tiveram que apontar, pouco conflituosas, conformistas e sempre empenhadas numa busca de perfeição obsessiva, que se estende a muitos aspectos da sua vida, mas que acaba por falhar", diz.
Frequentemente, é quando alguma coisa corre mal que os problemas começam. “O controlo do corpo começa a ser patológico quando o resto da vida começa a desaparecer e isso se torna um interesse quase exclusivo. Um grupo de amigas começa a fazer dieta, as outras vão parando e há uma que continua de forma obsessiva e quase exclusiva”, relata Margarida Marques.
Anorexia nos rapazes está subavaliada
De acordo com as poucas estatísticas que existem, 90% das doentes são raparigas, mas a pediatra Maria do Carmo Pinto está convencida de que a percentagem de rapazes é subestimada.
“O que sinto é que recebemos os rapazes com mais tempo de doença porque nos rapazes é normalíssimo fazer exercício físico sem limite, ser federado, ter uma grande adição pelo desporto. Tivemos um caso, por exemplo, de um jovem praticante de judo, uma modalidade em que ficam muito limitados ao peso imposto pela sua categoria na modalidade, e que têm que fazer um esforço máximo à custa de uma alimentação e de um esforço físico totalmente desadequados”.
Augusto Carreira, chefe do Serviço de Pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, acrescenta mais um factor de agravamento do quadro psicopatológico no caso dos rapazes. “Estamos a falar de jovens que estão em período de formação da sua identidade, até da identidade de género, e existem dificuldades particulares. Este problema da anorexia inscreve-se na dificuldade de afirmar a sua identidade e por isso é mais complexo. Enquanto nas raparigas não se põe tanto, nos rapazes existe mais este factor de complexificação”.
A prática desportiva, à partida saudável e desejável, pode igualmente cair no campo patológico. A pediatra Maria do Carmo Pinto traça o quadro: “Muitos treinadores restringem os hidratos de carbono até ao limite, depois aconselham suplementos energéticos para aumentar a força muscular, o que só agrava o rim que já está sobrecarregado pelo exercício e pela falta de hidratação e é todo um contexto clínico que entra em descalabro."
Além disso, há certas modalidades que impõem peso e funcionar com o peso como critério na adolescência é muito complicado. É o caso da ginástica acrobática, da ginástica rítmica, do ballet”.
Tratamento começa nove meses depois da doença
A valorização da magreza na sociedade actual pode ser um dos factores que retarda o reconhecimento da doença. “Fizemos recentemente uma revisão dos últimos três anos e verificámos que entre o início dos sintomas e a primeira intervenção, tinham decorrido nove meses, que é muito tempo”, revela a pedopsiquiatra Margarida Marques.
O problema começa muitas vezes no pediatra ou no médico de família que tardam em fazer o diagnóstico correcto. A falta de sensibilidade para os distúrbios do comportamento alimentar é, aliás, uma das grandes queixas da Associação dos Familiares e Amigos dos Anorécticos e Bulímicos.
José Delgado é um dos fundadores desta associação, que ajuda a encaminhar os doentes para as consultas adequadas e os familiares, sobretudo os pais, a lidarem com a doença. “Normalmente, os pais não conseguem compreender que a filha ou o filho entrem num desses processos. Depois, têm muita dificuldade em lidar com os doentes que são muito resistentes ao tratamento, revoltam-se com grande facilidade e podem até tornar-se fisicamente agressivos."
A experiência de José Delgado revela que os próprios pais acordam para o problema muito tarde e demoram demasiado tempo a pedir ajuda. Um atraso que pode fazer a diferença entre a vida e a morte. “Quase 90% dos casos são estabilizados. Depois, há pessoas que mantêm a doença toda a vida, mas também há mortes por falência dos órgãos ou suicídio'', afirma.
Margarida Marques diz que em cerca de 20% dos casos os distúrbios alimentares transformam-se numa doença crónica, a que se somam mais 20% de casos em que se mantêm traços da doença. A pediatra Maria do Carmo Pinto alerta para as sequelas físicas que ficam para toda a vida. “Quem paga a grande factura é o esqueleto. A osteoporose precoce é frequente. Os problemas cardíacos também podem ser uma consequência”, descreve.
São doenças que sempre existiram, mas que a sociedade moderna tem ajudado a agravar. Nos últimos tempos, José Delgado tem sido confrontado com uma nova categoria, a que chama anorexia das avós. “Mulheres entre os 50 e os 60 anos, que estão a atravessar mudanças no seu corpo com as quais não conseguem lidar bem. Num tempo dominado pelo estereótipo da pessoa magra, temem não ser aceites pela sociedade e entram em processos de anorexia”.