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Encíclica Fratelli Tutti

Francisco pede uma “nova economia” e regresso à “política nobre” no mundo

04 out, 2020 - 11:18 • Filipe d'Avillez

Na sua nova encíclica o Papa diz que a fraternidade é essencial para que haja verdadeira liberdade.

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Papa sobre encíclica. "Retirei inspiração de São Francisco de Assis, tal como na 'Lautato Si'"
Papa sobre encíclica. "Retirei inspiração de São Francisco de Assis, tal como na 'Lautato Si'"

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O Papa Francisco defende, na nova encíclica “Fratelli Tutti”, que foi publicada este domingo, uma nova economia e a redescoberta da nobreza da política para construir um mundo mais fraterno.

A encíclica é dedicada precisamente ao tema da fraternidade e da amizade social e reúne num só documento muito do pensamento e das afirmações e escritos do Papa sobre estes temas, ao longo do seu pontificado.

Como que para justificar a necessidade deste seu apelo, o Papa começa por elencar, num longo primeiro capítulo, muitos dos problemas que afligem o mundo atual, incluindo os problemas causados por uma globalização que “unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações”, impondo “novas formas de colonização cultural e pela radicalização da política, que “deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem comum, limitando-se a receitas efémeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro”, tornando impossível a solidariedade. “Nesta luta de interesses que nos coloca a todos contra todos, onde vencer se torna sinónimo de destruir, como se pode levantar a cabeça para reconhecer o vizinho ou ficar ao lado de quem está caído na estrada?”, pergunta Francisco.

Merecem ainda apontamentos do Papa a quebra da natalidade, que exprime “que tudo acaba connosco, que só contam os nossos interesses individuais”, a opressão das mulheres, o racismo e o capitalismo desregrado, bem como a crise dos migrantes, cuja dignidade não é reconhecida pelas autoridades de vários países e que devem ser vistos como um dom.

“Nunca se dirá que não sejam humanos, mas na prática, com as decisões e a maneira de os tratar, manifesta-se que são considerados menos valiosos, menos importantes, menos humanos”, lamenta Francisco, deixando um recado: “É inaceitável que os cristãos partilhem esta mentalidade e estas atitudes, fazendo às vezes prevalecer determinadas preferências políticas em vez das profundas convicções da sua própria fé: a dignidade inalienável de toda a pessoa humana, independentemente da sua origem, cor ou religião, e a lei suprema do amor fraterno.”

Francisco deixa ainda uma palavra sobre as ameaças que resultam da era digital que faz desaparecer “o direito à intimidade” e que, por mais vantagens possa ter, é insuficiente para unir os homens. “Fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana. As relações digitais, que dispensam da fadiga de cultivar uma amizade, uma reciprocidade estável e até um consenso que amadurece com o tempo, têm aparência de sociabilidade, mas não constroem verdadeiramente um nós”, lê-se.

Apesar de elencar todos estes problemas, Francisco termina o primeiro capítulo com um sinal de esperança muito atual. “A recente pandemia permitiu-nos recuperar e valorizar tantos companheiros e companheiras de viagem que, no medo, reagiram dando a própria vida. Fomos capazes de reconhecer como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns que, sem dúvida, escreveram os acontecimentos decisivos da nossa história compartilhada: médicos, enfermeiros e enfermeiras, farmacêuticos, empregados dos supermercados, pessoal de limpeza, cuidadores, transportadores, homens e mulheres que trabalham para fornecer serviços essenciais e de segurança, voluntários, sacerdotes, religiosas... compreenderam que ninguém se salva sozinho”.

A parábola do Bom Samaritano

No segundo capítulo de “Fratelli Tutti” Francisco recorre à parábola do Bom Samaritano para estabelecer vários paralelos com o mundo atual, lamentando que demasiadas pessoas e sociedades hoje passem ao lado do sofrimento do mundo sem se deterem para ajudar.

“Como estamos todos muito concentrados nas nossas necessidades, ver alguém que está mal incomoda-nos, perturba-nos, porque não queremos perder tempo por culpa dos problemas alheios. São sintomas duma sociedade enferma, pois procura construir-se de costas para o sofrimento”, diz o Papa.

Pelo contrário, o contacto com o sofrimento e a humanidade do outro servem para revelar como são ténues as divisões culturais. “Digno de nota é o facto de as diferenças entre as personagens na parábola ficarem completamente transformadas ao confrontar-se com a dolorosa aparição do caído, do humilhado. Já não há distinção entre habitante da Judeia e habitante da Samaria, não há sacerdote nem comerciante; existem simplesmente dois tipos de pessoas: aquelas que cuidam do sofrimento e aquelas que passam ao largo; aquelas que se debruçam sobre o caído e o reconhecem necessitado de ajuda e aquelas que olham distraídas e aceleram o passo”.

Um mundo de próximos e não de sócios

Francisco dedica-se então a apresentar propostas para uma nova visão da sociedade, da política e das relações entre os povos, um mundo constituído por pessoas que são próximas umas das outras e que não se relacionam entre si com uma lógica comercial.

Reconhecendo que o Homem é sobretudo um ser social “feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude a não ser no sincero dom de si mesmo aos outros”, Francisco sublinha que esta abertura deve incluir todos, incluindo os marginalizados e descartados: “Só cultivando esta forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos”.

Voltando ao exemplo do Bom Samaritano, Francisco sublinha o facto de este nada ter exigido nem recebido em troca pela ajuda prestada ao judeu a quem auxiliou, e pergunta como e que essa narração pode quem rejeita os estranhos. “Neste esquema, fica excluída a possibilidade de fazer-se próximo, sendo possível apenas ser próximo de quem me permite consolidar os benefícios pessoais. Assim o termo ‘próximo’ perde todo o significado, fazendo sentido apenas a palavra ‘sócio’, aquele que é associado para determinados interesses”.

Esta é também uma atitude que liberta, conclui Francisco, pois sem fraternidade “a liberdade atenua-se, predominando assim uma condição de solidão, de pura autonomia para pertencer a alguém ou a alguma coisa, ou apenas para possuir e desfrutar. Isso não esgota de maneira alguma a riqueza da liberdade, que se orienta sobretudo para o amor.”

Uma visão renovada das relações sociais requer, ainda, um papel ativo do Estado, diz o Papa, ainda que isso não seja rentável. “Investir a favor das pessoas frágeis pode não ser rentável, pode implicar menor eficiência; requer um Estado presente e ativo e instituições da sociedade civil que ultrapassem a liberdade dos mecanismos eficientistas de certos sistemas económicos, políticos ou ideológicos, porque estão verdadeiramente orientados em primeiro lugar para as pessoas e o bem comum.”

Francisco reafirma, nesta passagem, a doutrina católica sobre a propriedade privada, sujeita ao princípio do destino universal dos bens. Não só as pessoas, mas as próprias sociedades são assim corresponsáveis pelo desenvolvimento dos mais pobres, explica. “Trata-se, sem dúvida, doutra lógica. Se não se fizer esforço para entrar nesta lógica as minhas palavras parecerão um devaneio”, diz o Papa, que convida ao cultivo da noção de gratuidade, isto é, “a capacidade de fazer algumas coisas pelo simples facto de serem boas, sem olhar a êxitos nem esperar receber imediatamente algo em troca. Isto permite acolher o estrangeiro, mesmo que não traga de imediato benefícios palpáveis”, lamentando de seguida que haja países “que pretendem receber apenas cientistas ou investidores”.

“Quem não vive a gratuidade fraterna transforma a sua existência num comércio cheio de ansiedade: está sempre a medir aquilo que dá e recebe em troca”.

Uma nova economia e uma política nobre

O Papa debruça-se então sobre o fenómeno de nação e de nacionalismo, tendo o cuidado de distinguir entre o que chama um “narcisismo bairrista” e um saudável conceito de pertença a uma comunidade e nação, sem a qual o homem não é completo. “Tal como não há diálogo com o outro sem identidade pessoal, assim também não há abertura entre povos senão a partir do amor à terra, ao povo, aos próprios traços culturais. Não me encontro com o outro, se não possuo um substrato onde estou firme e enraizado”, diz.

Para tornar este novo paradigma uma realidade é necessária a intervenção dos políticos, considera Francisco, dedicando a esta classe um capítulo com o título “A política melhor”, no qual começa por alertar para o perigo do populismo, mas também para o risco de usar de forma incorreta ou exagerada esse termo, ignorando “a legitimidade da noção de povo”.

Francisco dedica vários parágrafos da sua encíclica a criticar o modelo económico e político neoliberal que diz ter falhado nas suas previsões de acabar com a pobreza no mundo e promover a igualdade. “O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer nesse dogma de fé neoliberal”, diz o Papa, acrescentando que “a fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado”.

O Papa lamenta que não se tenha aproveitado a crise de 2008 para procurar novos modelos económicos, apostando nas antigas estratégias. Este é um tema caro a Francisco, que tinha convocado para este ano um encontro no Vaticano precisamente dedicado à procura de novas soluções económicas, mas que teve de ser adiado por causa da pandemia.

Numa passagem que promete gerar críticas de setores que tendem a desconfiar de organizações internacionais que se sobreponham à autonomia dos Estados, Francisco apela diretamente à criação de “organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da forme e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais” e apela a uma reforma da ONU, mas avisa contra a sua deslegitimação.

O capítulo termina com um apelo à revalorização da política, por ser um instrumento essencial para promover a fraternidade. “Um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada, mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entra no campo da caridade mais ampla, a caridade política. Trata-se de avançar para uma ordem social e política, cuja alma seja a caridade social. Convido uma vez mais a revalorizar a política, que é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas de caridade, porque busca o bem comum”.

Francisco conclui dizendo que “a política é mais nobre do que a aparência, o marketing, as diferentes formas de maquilhagem mediática. Tudo isto semeia apenas divisão, inimizade e um ceticismo desolador incapaz de apelar para um projeto comum.”

A encíclica do Papa prossegue, focando nos três capítulos finais os caminhos pessoais de conversão para alcançar e aprofundar a fraternidade.

“Fratelli Tutti” é a terceira encíclica publicada durante o pontificado de Francisco.

Comentários
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  • Desabafo Assim
    05 out, 2020 10:12
    Aguentarão as árvores sem. Fruto nem folhas por muito tempo sem desesperar em? Podem as palavras partir as escamas de pedra contra vontade? Não tenho a certeza do que digo, Pedro pensava estar certo quando disse não vás senhor, tudo isto para dizer que não gosto de o ver depositar esperança nos políticos, quero-o para mim, feliz pela boa nova, quero-o nosso dos que partilham a esperança de existir um Deus Vivo e extraordinariamente. Bom, talvez o mundo mude, se for essa a vontade, de baixo para cima, talvez a vergonha lhes arranque as escamas (escrito telefone).
  • Ivo Pestana
    04 out, 2020 15:09
    Basta acabar a corrupção.

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