Siga-nos no Whatsapp
A+ / A-

Entrevista Renascença/Ecclesia

Padre Kwiriwi Fonseca: “Estamos a viver uma crise humanitária em Cabo Delgado”

02 fev, 2025 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)


As feridas abertas com o processo eleitoral em Moçambique continuam por cicatrizar e a instabilidade mantêm-se. As manifestações dos últimos meses, com barricadas, pilhagens e confrontos com a polícia já terão provocado mais de 300 mortos e 600 feridos, segundo várias organizações. A oposição fala em mais de quatro mil detidos. Enquanto isso, em Cabo Delgado, alegados terroristas islâmicos continuam a criar pânico numa região que, ciclicamente, sofre também com fenómenos climáticos extremos. Para falar sobre a preocupante realidade moçambicana, o entrevistado da Renascença e da Agência Ecclesia neste domingo é o missionário passionista Kwiriwi Fonseca.

Ouça aqui a entrevista ao Padre Fonseca, missionário passionista moçambicano e investigador sóciopolitico
Ouça aqui a entrevista ao Padre Fonseca, missionário passionista moçambicano e investigador sociopolítico

O padre Kwiriwi Fonseca diz que na região de Cabo Delgado se vê “muita fome” e se vive mesmo "uma crise humanitária”.

"Eu vivi de perto muita fome e sinto vergonha de passar lá", diz em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia o sacerdote missionário passionista, que é também investigador nas áreas das Cências Sociais e da Política.

A situação agudizou-se com a passagem de um ciclone em meados de dezembro. "A muitos lugares, não tem chegado a ajuda”, lamenta.

“Não conseguimos resolver todos os problemas”, desabafa o padre Fonseca, acrescentando que a Cáritas “tem feito o seu trabalho, mas não tem muitos fundos”.

Vítima de uma espécie de tempestade perfeita, a população do norte de Moçambique vive sob a ameaça do terrorismo, que já provocou mais de um milhão de deslocados e, nos tempos mais recentes, sente também os efeitos dos fenómenos climáticos extremos que destruíram “culturas, bens e habitações”.

“As palhotas foram destruídas pelo ciclone, muita gente ainda não se conseguiu erguer. Para além disso, a chuva demorou a cair e, então, temos isso: muita fome, a que se junta a questão da guerra, o desespero do povo e a incerteza de como vai ser o país”, descreve o sacerdote.

Noutro plano, o missionário manifesta o seu receio pela forma como o país está a viver a ressaca dos resultados das eleições de 9 de outubro de 2024 e defende que “não há que ter medo do diálogo".

"Não há que ter medo do diálogo"

Kwiriwi Fonseca considera que Moçambique precisa de gestos de coragem que promovam o diálogo entre o Governo e o principal rosto da oposição, Venâncio Mondlane, pois é necessário corresponder às expectativas da população. “O povo em todo canto, nas aldeias fala de Venâncio, é fundamental que seja convidado pelo Presidente da República para os dois se sentarem e conversarem”, apela.

O sacerdote entende que em nenhum momento Venâncio Mondlane vai reconhecer os resultados eleitorais, mas sublinha que o candidato independente tem suavizado o seu discurso.

Em último recurso, o sacerdote moçambicano defende a criação de uma comissão conjunta que envolva a Conferência Episcopal Moçambicana e o Vaticano para se retomar o diálogo no país. "Poderia ser um bom caminho", diz.

O padre Fonseca apela à Igreja moçambicana para "continuar a promover o diálogo” porque “esse é o papel da Igreja”.

"Temos um problema que ainda não foi resolvido, problemas antigos, problemas colocados debaixo do tapete"

Começava por lhe pedir um ponto de situação sobre a realidade social e política do país. A crise que se gerou nas eleições agudizou a situação precária e de pobreza da população?

Eu fui a Maputo. A situação em Moçambique pode-se dizer que é relativamente boa, mas ainda está má. Eu classifico a situação como de estranheza, é uma situação depressiva. Estranheza porque os manifestantes tinham a expectativa de que as coisas poderiam melhorar com as manifestações e as reivindicações. Verificava-se... não sei se seria um teatro, porque havia um clima de diálogos... Pensava-se que poderia resultar em alguma coisa. E aí, em pouco tempo, o Conselho Constitucional declara oficiais os resultados e é feita a tomada de posse.

Nós vimos também outro elemento, que foi o da expectativa do povo. O povo tinha a expetativa de que se poderia montar um governo da unidade nacional mesmo que o candidato deles, como dizem "o candidato do povo" [Venâncio Mondlane], não fosse declarado vencedor. Tinham essa expectativa e isso não se verificou.

Por isso, deteto duas situações: estranheza e uma situação depressiva. Há muitas manifestações, quer de funcionários que não têm acesso ao décimo terceiro mês quer das pessoas que protestam contra o custo de vida. Há pouco tempo, recebi notícia de ataques em Palma, de ataques em Meluco, dos ataques aqui e acolá, aqui na região do Cabo Delgado. Temos um problema que ainda não foi resolvido, problemas antigos, problemas colocados debaixo do tapete, problemas que me levam a dizer que estamos a iniciar o ano de 2025 com problemas graves.

"A Igreja, enquanto continuar ativa em Moçambique, deve continuar fazendo apelo pela paz, pela justiça, pelo diálogo"

Aumentou a fome, aumentou a pobreza em Moçambique, com os incidentes desde as eleições?

Eu vivi de perto, eu vivi de perto muita fome nas aldeias. Sinto vergonha de passar lá. Deveríamos visitar, mas nós não conseguimos resolver todos esses problemas. Na região assolada pelo ciclone, não vimos nenhuma ajuda. A muitos lugares não tem chegado a ajuda.

A Cáritas, que tem feito o seu trabalho, não tem cobertura. Talvez não tenha muitos fundos. Está fazendo um trabalho muito bonito, está tentando fazer o melhor, mas estamos a viver uma crise humanitária. As palhotas foram destruídas pelo ciclone, muita gente ainda não conseguiu erguer-se. Para além disso, a chuva demorou a cair e, então, temos isso: muita fome, a questão da guerra, o desespero do povo, a incerteza de como vai ser o país. Temos isso...

A esse cenário soma-se a instabilidade política. Quando gravámos esta entrevista, o candidato presidencial Venâncio Mondlane manifestou-se aberto ao diálogo com o chefe de Estado, com Daniel Chapo, para pôr fim a crise, mas disse que ainda não tinha sido contactado. Falta vontade política para partir para a negociação? Ainda há pouco se referia à negociação como uma espécie de teatro... Há hipocrisia? Nenhuma das partes tem intenção de dialogar?

Mesmo antes da sua chegada a Moçambique, Venâncio mostrou-se aberto. Quando chegou no aeroporto - eu na altura estava em Maputo - ele disse "eu estou aqui". Mas não houve vontade de o chamar para dialogar. O povo em todo canto, nas aldeias, fala de Venâncio. Então, hoje, têm que ter a coragem de chamar Venâncio para dialogar com ele. Se ele já se mostrou disponível, então não há que ter medo nem vergonha. Pelo que percebi, ele tem essa abertura. Então, não deve haver vergonha e nem ninguém tem de se esconder.

Parece-me que há falta de coragem, há falta de vontade, há falta de compreensão. O povo acreditou na força política de Venâncio, então tem que se o chamar. Acredito ser esse o caminho, porque o que se verifica hoje nas várias cidades são problemas sociais. As pessoas exigem o seu décimo terceiro mês, horas extras... Há problemas que, acredito, podem ser minimizados conversando com Venâncio Mondlane. O país precisa de paz.

"O problema em Moçambique é sério e precisa de uma estratégia muito boa para não se tocar a ferida e deixá-la ainda a sangrar"

Mondlane também não terá que reconhecer a proclamação dos resultados eleitorais de 9 de outubro para que se possa encetar a tal aproximação? Porque enquanto esta ferida não sarar, provavelmente, não será possível avançar na procura de soluções duradouras...

Na linguagem política, ele não pode dizer "eu aceito" porque seria recuar e dizer que o que estava a defender era tudo uma mentira. Dizer "não ganhei nada". Como líder da oposição, ele não se pode pronunciar no sentido do reconhecimento dos resultados. Até terminar o mandato destes cinco anos, ele vai continuar a afirmar o mesmo. O que é fundamental, neste momento, é que seja convidado pelo Presidente da República e os dois sentarem-se e conversarem. Dizer "nós já estamos no poder, você é da oposição, seu papel é este, este, você faz isto, isto e isto" e ele também propõe. Depois da tomada de posse, ele não falou mais em golpe, eu tenho acompanhado. E tenho acompanhado também um trabalho bonito de conversa com os partidos políticos. Mas também tem que se falar com Venâncio, de forma aberta, e tudo que se falar deve ser comunicado para que o povo acompanhe. Esse é o caminho para, de facto, curar as feridas.

Nós que estamos a acompanhar deste lado, notamos que em Moçambique a Igreja Católica tem manifestado um enorme empenho na procura destas soluções. A Conferência Episcopal, por exemplo, tem multiplicado os apelos à paz, tem sensibilizado para o respeito pela tolerância, pela dignidade humana, pela vida. Que mais é que se pode exigir à Igreja em Moçambique?

Continuar, continuar a fazer manifestações por meio de conferência de imprensa, continuar a dialogar com o novo governo, continuar a dialogar com o Venâncio Mondlane e com os partidos políticos. Este é o papel da Igreja, não deve ficar sossegada, não se deve calar, não deve pensar que já fez tudo, não. A Igreja, enquanto continuar ativa em Moçambique, deve continuar fazendo apelo pela paz, pela justiça, pelo diálogo. Este é o papel em todas as igrejas locais, em todos os lugares. Não se deve pensar que já fizemos o suficiente, não há como calar a boca, não.

"É visível, aqui, a presença da equipe missionária de Braga, isso tem sido muito bom"

O Papa Francisco tem manifestado a sua preocupação com a situação em Moçambique e a capacidade da Igreja Católica para o diálogo é reconhecida em diversos quadrantes. Numa recente deslocação ao Vaticano, o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, assinalou precisamente essa capacidade. Poderá ter mais sucesso uma intervenção externa, como aconteceu em 1992, quando, em Roma, foi possível assinar-se um acordo geral de paz em Moçambique?

Eu acho que poderia ser um caminho. Somar forças junto com a Igreja, aqui em Moçambique, num olhar imparcial, num olhar, digamos, distante, um olhar de fora. Acredito que seria um bom caminho. O Papa Francisco, que sabe da situação de Moçambique desde o momento em que esteve aqui, que era um momento de guerra, ainda com o problema do terrorismo, tem recebido diariamente notícias de Moçambique. Se se organizasse uma comissão que pudesse juntar a Conferência Episcopal de Moçambique, para se dar esses passos de diálogo, de conversas com todos os envolvidos, todos os atores políticos, sociais, acredito que se poderia encontrar esse processo de cura, porque o povo está muito ferido, o povo ainda não presenciou nada, não presenciou nada dos passos que gostaria de vivenciar. Então, toda mão externa que vise ajudar a resolução dos problemas sem um olhar muito político só para favorecer um lado pode ajudar.

A comunidade de Santo Egídio, sendo uma comunidade católica, não é propriamente da Santa Sé, é uma instituição autónoma, que teve um papel importantíssimo nos acordos de paz de 1992 e que sempre acompanhou a atualidade em Moçambique. O facto de poder haver interlocutores com um percurso de seriedade, de isenção e de acompanhamento da realidade moçambicana como a comunidade de Santo Egídio pode ser um fator importante neste momento?

Não sei como é tem sido, nos últimos três anos, a relação entre a Conferência Episcopal e a comunidade de Santo Egídio. A primeira coisa a fazer é compreendermos como seria a aceitação da Conferência Episcopal a uma missão como essa. Acredito que a comunidade de Santo Egídio tinha, na altura, legitimidade para essa tarefa. Hoje, não tenho exatamente a noção de qual é a compreensão da Igreja de Moçambique em relação à comunidade de Santo Egídio. O problema em Moçambique é sério e precisa de uma estratégia muito boa para não se tocar a ferida e deixá-la ainda a sangrar.

"Tem de se intensificar o diálogo inter-religioso, a aproximação das pessoas"

O padre Fonseca encontra-se em Ocua, em Cabo Delgado, região fortemente marcada pela insegurança resultante da ação de milícias terroristas e que, recentemente, no dia 15 de dezembro, voltou a ser fustigada por um ciclone. Como é que classifica o atual momento aí na região?

A região é bastante pobre e o ciclone veio aumentar um problema antigo. Aqui na missão, houve uma passagem dos terroristas e povo fugiu. O povo depende da agricultura e não conseguiu cultivar nada. Com o ciclone, o pouco que havia foi destruído e, então, há um forte problema, uma crise humanitária. Falta de tudo, falta de tudo. O povo, hoje, não tem o que comer e muitas palhotas ainda estão destruídas, muitos ainda não se conseguiram erguer. A situação, aqui, ainda não é boa.

A paróquia de Santa Cecília de Ocua é a paróquia 552 da arquidiocese de Braga, em resultado de um projeto de cooperação entre a arquidiocese portuguesa e a diocese de Pemba. A sociedade portuguesa, também através deste sinal, está mais sensibilizada para as dificuldades na região de Cabo Delgado? Sente-se por aí a solidariedade dos portugueses?

Aqui, sentimos bastante porque a equipa missionária tem feito trabalhos, não só da evangelização, mas de atuação na área social. Tem ajudado bastante na formação de meninas e estão a sensibilizar os cristãos da arquidiocese de Braga para ajudarem com alguma coisa. É visível, aqui, a presença da equipe missionária de Braga, isso tem sido muito bom.

"Toda mão externa que vise ajudar a resolução dos problemas sem um olhar muito político só para favorecer um lado pode ajudar"

Quer a situação política no país quer a instabilidade em Cabo Delgado não deixam de ter uma componente religiosa. O conflito em Moçambique corre o risco de se transformar também numa guerra religiosa com projetos de poder justificados em nome da fé, como acontece noutros países?

Em alguns momentos, avaliávamos que poderia chegar a esse nível. Há alguns meses, parecia que as coisas estavam para melhorar, mas não verificámos isso. Usa-se, digamos, a religião para se esconder aquilo que os terroristas querem. Eles, nos lugares onde atacam, falam bastante de Alá, falam bastante de estender a religião, mas, no fundo, não vivem a religião. Então, é possível que haja ódio, mas eles não declaram exatamente o que se pretende com essa guerra. Eu percebo que esta é mesmo uma situação político-militar.

A religião é um instrumento?

A religião é um instrumento ou disfarce para que as pessoas pensem que se trata de uma guerra religiosa. Então, nós e muitos outros pesquisadores acabamos também um pouco perdidos, porque há sinais contraditórios. Há sinais de que, de facto, são da religião islâmica, mas é um pequeno grupo, radical, bastante fanático. Vão lá, fazem o trabalho de doutrinação e também apostam no treinamento militar. E vão atacando. Houve um momento que parecia que estavam enfraquecidos, mas, agora, já retomaram. Então, é difícil definir-se que, de facto, têm um aspeto religioso. o.

A utilização de símbolos religiosos, também cristãos, no discurso político não pode criar um fator de tensão suplementar na sociedade moçambicana?

Eu acho que pode, sim. Por isso, é necessário em cada área, em cada paróquia, em cada encontro falar-se muito desse diálogo inter-religioso. É um elemento de que se tem falado, mas tem que se intensificar e em nenhuma ocasião deve subestimar-se uma e elevar outra religião. Ninguém deve levantar a voz tentando criticar uma religião, porque o que se vive nesse período de mais de sete anos é exatamente isso. É possível que tenha havido um pouco de descuido ali, que as pessoas não entendam que não era importante a religião, mas é a questão da vida humana que está no centro, é a pessoa que professa alguma religião.

O que eu digo é que tem de se intensificar o diálogo inter-religioso, a aproximação das pessoas porque nós vimos, nessa mesma região de Ocua, famílias divididas. Umas pessoas são muçulmanas, outras são cristãs, outras professam religiões tradicionais africanas e as pessoas conviviam tranquilamente. Mas, de um dia para outro, as coisas mudam e parece que ninguém quer saber do outro. É um fenômeno a ser ainda estudado.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.