17 fev, 2025 • Francisco Guimarães*
O problema não é filosófico, embora pareça. No dia 16 de Fevereiro de 2025 saíram da toca os mais dignos e inimitáveis seres humanos. Banhados com talha de integridade dourada, os detentores da mais pura e casta justiça, bafejados de retidão, vestiram-se de lisura, e alegremente cantaram, como anjos brancos brilhantes e imaculados: “Finalmente morreu aquele corrupto!”.
Experimentem dizer isto com a candura dos inocentes. Conforme se previa, não conseguem. É uma façanha que só os mais iluminados podem almejar. E vocês e eu não estamos ao alcance de tamanho coração, como o de Frederico Varandas. O corrupto é, claro está (alegadamente), Jorge Nuno Pinto da Costa. No mesmo dia 16 de Fevereiro de 2025, provavelmente à mesma hora, abriam-se as portas do panteão e da maior parte das igrejas da Península Ibérica para honrar o santo portuense.
Futebol
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Enquanto uns clamavam por “justiça!”, um grupo de crentes – estes, ao contrário dos anteriores, miseráveis e pobres pecadores – prostrava-se diante do senhor, executando as mais belas vénias, humilhados, diante do notável novo membro omnipotente do oratório nacional. O mais recente canonizado é, claro está (alegadamente), Jorge Nuno Pinto da Costa.
Eu não nutria grande admiração por ele. Aliás, minto; nutria imensa admiração, com a desconfiança e tristeza de que qualquer pessoa deve pôr os seus talentos a render por um bem maior. E, neste caso, dava-me a sensação de que tal coisa não acontecia.
A ambição, a inteligência, a perspicácia, o extraordinário sentido de humor, a língua rápida e afiada, a noção de liderança eram factos na personalidade de Pinto da Costa. Factos esses que, por vezes, caminharam por caminhos, no mínimo, duvidosos. No mínimo. Ainda que a figura sempre me fascinasse – uma vez até trocámos correspondência (quando era um imberbe adolescente acnoso) –, sempre estive nos antípodas de Pinto da Costa, e nunca me ouvirão dizer que foi um bem para o futebol português. Quando muito, direi o contrário, como quem me conhece pode comprovar em muitas das minhas intervenções públicas.
FC Porto
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Todavia, e a questão principal é esta, Pinto da Costa foi um acontecimento relevantíssimo do último século português. Marcou a cidade, o desporto, o país e não só. Foi presidente do Porto durante 40 anos. O Porto, na pessoa do seu mais marcante presidente, é uma instituição que merece respeito.
Como tal, é possível fazer uma distinção, a meu ver, muito simples: tal como qualquer homo sapiens sapiens é capaz de criticar e elogiar ao mesmo tempo uma circunstância ou uma pessoa sem estar a incorrer num paradoxo, é possível uma instituição liderada por um homo sapiens sapiens fazer o mesmo. Essa distinção não serve para camuflar as imperfeições da pessoa, nem para prestar culto ou homenagem. Essa distinção, à qual todos os clubes portugueses, inclusive o Sporting e o Benfica, se deviam dedicar, é a seguinte: Pinto da Costa foi um ser humano que presidiu ao conselho de administração do Porto durante 40 anos; Pinto da Costa não foi um presidente exemplar.
Isto é, detidos pelo mínimo sentido institucional, os clubes portugueses (sem exceção) deveriam fazer qualquer coisa, qualquer coisa que não significasse homenagear, condecorar, estar ao lado de, honrar ou admirar: uma nota de pesar, um comunicado ou um elogio fúnebre não elogioso. Não é preciso mais. Trata-se apenas de cumprir com um dever moral de uma instituição diante de outra instituição. Fazer isto não transmite doenças infecciosas, nem faz pairar uma nuvem negra em Alvalade ou na Luz.
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Era, pura e simplesmente, cumprir preceitos, jogar as regras do jogo, tirar a fotografia da praxe. Tudo o que não seja isto assemelha-se a um comportamento à la Chega (e cito: “um bandido será sempre um bandido!”) ou um comportamento à la Bloco (que não gostam de ir a tomadas de posse do inimigo). Aproveito a deixa para elogiar Luís Montenegro, um adulto na sala, que escreveu uma nota de pesar simples e eficaz, sem elogiar, sem se comprometer, dirigindo-se ao clube, à família e aos amigos de um homem que marcou o país em quase meio século de história.
Resta-me, então, separar novamente o trigo do joio. O Portimonense (clube, penso eu, que não tem qualquer relação com o F.C. Porto a não ser institucional), pelos vistos decidiu abandonar o bom senso no mercado de inverno, e escreveu (sem ironia, creio) o nome de Pinto da Costa nas camisolas dos jogadores. Havia necessidade? Claro que não. É apenas descaramento ou qualquer outra coisa de um foro que não é a minha especialidade: o foro psiquiátrico. Porque aos mais expansivos elogios fúnebres o tempo geralmente encarrega-se de os ridicularizar.
O que não acontece a quem age com decência institucional. Mesmo que do outro lado tenha estado (alegadamente) a indecência.
*Francisco Guimarães é comentador de futebol na Renascença