17 fev, 2025 • Duarte Afonso Silva
Quantas vezes o discurso de liderança ou da própria organização não se alinha com as ações do dia-a-dia? O desalinhamento é comum e impacta tanto líderes como equipas.
A Maria acorda todos os dias com vontade de ser a melhor gestora. É bastante orientada a resultados e entrega sempre, mais até do que lhe é exigido. O foco está nos processos, nos objetivos, e nas tarefas, que controla desde que entra até que sai da organização. Garante que tudo flui de acordo com a sua definição de sucesso. Os membros da sua equipa sentem que não a conhecem verdadeiramente. Não estão confortáveis com o ritmo, com a forma de fazer as coisas. Não têm espaço para dar sugestões. No entanto, recebem e-mails sobre uma organização inclusiva, um best place to work, um lugar onde todos dão o seu ponto de vista e constroem um mundo melhor. Nos corredores há cartazes sobre como a estrutura é feita de equipas de sucesso. A Maria julga ter uma. Contudo, não se interrogou sobre o que esta espera de si e como vê os processos, que pessoas dela fazem parte – quem são e o que sentem?
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O João adora ler livros de liderança. Acredita que é no papel de líder que está no seu melhor. É o primeiro a partilhar internamente as publicações sobre propósito, sobre o bem-estar na organização, sobre a felicidade no trabalho. Sente que ouve com sucesso a sua equipa e que é capaz de a influenciar todos os dias para que esteja alinhada com estas boas práticas. No entanto, liga e envia mensagens aos colaboradores fora do horário de trabalho; ouve as sugestões da equipa, mas no fim de contas, nenhuma é acolhida; e adota a postura de uma liderança servidora, até ao momento em que a equipa precisa verdadeiramente que se chegue à frente (e aí desvanece-se, quase como um ligeiro ghosting).
As histórias da Maria e do João são exemplos vivos de como a falta de alinhamento entre a visão de liderança e as práticas diárias pode gerar dissonância e desconforto. Tudo lhes parece correr bem até que um feedback formal expõe uma versão inesperada de si mesmos. Há quem se sinta perdido, se coloque genericamente em causa, ou se recuse mesmo a aceitar a realidade. É mais fácil aprender a lidar com o desconforto dos desafios (tarefas) ou com o desconforto de ser vulnerável e de reconhecer que temos trabalho (nosso) a fazer?
Com quantas Marias e Joões nos cruzamos nos corredores das organizações? De nada serve que estas apregoem um propósito e uma mensagem geral de como (tão bem) cuidam das pessoas, do quão inclusiva é a sua cultura, se depois temos equipas a viver uma realidade paralela. A dissonância torna-se transversal – não só para as equipas, mas também para estes líderes pouco conscienciosos.
Há duas questões relevantes. Em primeiro lugar, as frases feitas, as iniciativas de boa intenção, e uma estratégia bonita, não transformam a organização e a sua cultura por si só. Em segundo lugar, as estruturas e os sistemas não se sobrepõem às pessoas. São as pessoas que os fazem, que os vivem, que lhes dão forma, e que garantem o seu funcionamento.
Para os colaboradores no geral, o desafio é enorme. Não é realista esperar que deixem a humanidade à porta, operando como máquinas durante o horário de trabalho enquanto, nas pausas, circulam nos corredores cruzando-se com uma forçosa noção de felicidade partilhada e uma fantasia referente a um ambiente de trabalho extraordinário.
Para os líderes, o confronto entre a realidade externa e a visão interna pode ser doloroso, sobretudo num contexto pautado por exigências constantes. Para mudar, é preciso ganhar consciência e testar novas abordagens, mesmo que isso traga desconforto. Quando entramos em situações que desconhecemos, temos de nos adaptar. É esta a premissa defendida por Ronald Heifetz, quando nos fala em liderança adaptativa. A ideia de que os líderes devem abraçar a incerteza e o desconforto, pois a verdadeira liderança tem na sua base esta exigência de nos dispormos a navegar águas desconhecidas. O professor de Harvard diz-nos também que os líderes devem ser catalisadores, mas também cuidadores, apoiando o crescimento das equipas perante desafios difíceis.
Nesse sentido, têm uma responsabilidade acrescida: dar o exemplo e walk the talk. É estar e ser no desconforto, e a abertura do caminho face ao desconhecido não requer apenas coragem, mas sim vulnerabilidade. E, ao contrário do que se pensa, os dois conceitos não são oponentes. Ser corajoso é ser vulnerável, tal como a vulnerabilidade é caminho para o desenvolvimento da coragem.
As pessoas precisam de líderes que estejam e sejam por inteiro. Que traduzam a missão e a cultura da organização de forma honesta e verdadeira. Tal requer autoconhecimento e vulnerabilidade, assumindo que não sabemos o futuro, especialmente nos dias de hoje. Brené Brown dizia que a vulnerabilidade não é ganhar ou perder – é ter coragem para se mostrar e ser visto quando não podemos controlar o resultado. Por outras palavras, é aceitar que há risco, incerteza e exposição emocional, mas ainda assim avançamos, porque é onde a coragem e a conexão acontecem.
Liderar é, afinal, uma jornada de coragem e vulnerabilidade. Está na hora de deixarmos de lado personagens que achamos que fazem sentido e passarmos a abraçar a verdadeira conexão, porque é nela que reside a chave para o crescimento coletivo.