24 fev, 2025 • Alfredo Teixeira
A notícia do falecimento de Manuel Sérgio teve o esperado eco na esfera mediática. Mas a sua memória foi capturada pela hegemonia que o futebol exerce no domínio do fenómeno desportivo. As notícias mais massificadas apresentaram-no como uma espécie de guru de alguns treinadores de futebol. Mas não devemos esquecer que estamos perante o mais importante legado de uma filosofia do desporto, em Portugal. Desporto pensado como lugar de descoberta de uma dimensão estruturante da condição humana, a motricidade.
Quando, na década de 1960, Manuel Sérgio começa a escrever sobre desporto, antevia-se uma rutura com essa cultura industrial, mecanicista e elitista, herdada das culturas desportivas predominantes no século XIX. A ciência da motricidade humana que estava em construção criticava a cesura entre “corpo-físico” e “corpo-consciência”. Alicerçada na releitura das teologias cristãs da encarnação e das novas antropologias da complexidade, a sua teoria crítica da modernidade visa a superação de diversos dualismos.
A condição humana foi pensada por Manuel Sérgio na perspetiva da motricidade, que define o corpo a partir do movimento. Mas esse movimento não é apenas auto-organização, é intencionalidade. E essa intencionalidade resolve-se na transcendência. À nota de transcendência, Manuel Sérgio acrescentará, em determinado momento do seu percurso intelectual, a nota de solidariedade: motricidade humana enquanto movimento intencional e solidário de transcendência. A nota da solidariedade aprofundou-se à medida que Manuel Sérgio reforçou a ideia de que a motricidade é essencialmente cooperativa. A transcendência foi inicialmente definida como superação, mas foi-se abrindo a outras significações, que incluem essa abertura horizontal e vertical ao “outro” - na expressão sergiana, transcender-se é necessário para saber que se vive.
Este ponto de vista dá uma particular importância ao carácter “incompleto” do ser humano (que, por isso, é dádiva e projeto). É no âmbito da motricidade que se presentifica o que no ser humano é desenvolvimento, construção de valor, caminho lúdico e festivo para a transcendência - ser “co-movido”, por vocação. A conduta motora é compreendida como movimento intencional de um ser que historicamente transforma e se transforma, escapando às estruturas que o pretendem reduzir a objeto. Na perspetiva da ciência da motricidade humana, o corpo é consciência, num contínuo ato criativo: “ser corpo é ser consciência e ser consciência é ser movimento”. Este corpo-sujeito é também lugar de resistência, de inconformidade, e não apenas um reflexo de estruturas sociais ou objeto de disciplina.
A filosofia de Manuel Sérgio acompanhou uma revalorização do corpo situado no mundo, incluindo a subjetividade e a cultura. A atividade desportiva - nas diversas modalidades, na diversidade sexuada, ou na adaptação às pessoas com deficiências físicas e intelectuais - foi um importante laboratório do pensamento sergiano. Na sua ótica, a conduta corporal desportiva é uma determinada forma de acolher espaço, posicionar-se, mover-se nele e habitá-lo com os outros. A disciplina da estética do desporto tem mostrado como as modalidades desportivas tornam patente a pluralidade de configurações da morfologia corporal, divergindo da uniformização industrial e mercantil dos corpos.
Na composição da ideia de motricidade, Manuel Sérgio inclui a predisposição para a interioridade e a prática do diálogo. Aqui se enraízam as vias que aproximam a motricidade da criatividade. As práticas lúdicas, simbólicas e produtivas traduzem a vontade do ser humano se realizar como sujeito, na sua abertura ao sonho, na sua vontade de libertação, perseguindo o inédito e o absoluto. É para este âmbito que Manuel Sérgio reorienta o conceito de “cinefantasia”, atribuído a Arnold Gehlen. O conceito procura interpretar o ser humano na sua condição de abertura a novas possibilidades, não redutíveis aos cenários de poder existentes - na motricidade, “o indivíduo faz-se pessoa, ou seja, ser-para-os-outros, ser-para-o-transcendente”. Talvez por isso, todas as minhas conversas, com este homem arguto e inquieto, pudessem ser resumidas na figura do espanto - essa qualidade que permite abrir uma fenda espiritual no mundo.
Nota final: o autor deste texto, que se publica no dia as exéquias de Manuel Sérgio, coordena a Cátedra Manuel Sérgio – Desporto, Ética e Transcendência (UCP-CITER)