Siga-nos no Whatsapp
Ângela Lucas
Opinião de Ângela Lucas
A+ / A-

Opinião Católica-Lisbon

A proposta Omnibus: simplificação ou desregulação?

10 mar, 2025 • Ângela Lucas • Opinião de Ângela Lucas


Entenda o pacote de “simplificação” da legislação europeia em matéria de sustentabilidade, que vai afetar várias leis fundamentais para o Pacto Ecológico Europeu.

Para aqueles que acompanham de perto as questões de sustentabilidade, o final do mês de fevereiro foi intenso, com a Comissão Europeia (CE) a apresentar, no dia 26, a primeira proposta Omnibus – o muito aguardado pacote de “simplificação” da legislação europeia em matéria de sustentabilidade.

Esta iniciativa surge na sequência do Relatório Draghi – Uma Estratégia de Competitividade para a Europa (apresentado setembro de 2024) –, que alertou para a falta de produtividade na Europa e para o “desafio existencial” que isso apresenta para o Velho Continente.

A proposta Omnibus surge também na sequência da recente Bússola de Competitividade apresentada pela CE, que prometeu tornar a economia da UE mais próspera e competitiva, nomeadamente através da redução da carga administrativa em 25% (e em 35% para as pequenas e médias empresas – PME) até ao final do mandato desta Comissão, em 2029.

O pacote de propostas legislativas afeta várias leis fundamentais para o Pacto Ecológico Europeu, incluindo:

  • A Diretiva de Relato de Sustentabilidade Corporativa (CSRD)

  • A Taxonomia da União Europeia (Taxonomia da UE)

  • A Diretiva de Diligência Devida em Sustentabilidade Corporativa (CSDDD)

CSRD

De acordo com a proposta da CE, para o reporte de sustentabilidade das empresas da UE, apenas aquelas com mais de 1000 trabalhadores (anteriormente 250) permanecerão dentro do âmbito da CSRD. A Comissão estima que esta alteração exclua 80% das empresas dos requisitos de relato de sustentabilidade, alinhando o âmbito da CSRD mais de perto com o da CSDDD.

Para as empresas-mãe não europeias, que devem reportar a partir de 2028, o limiar aumentará, aplicando-se apenas a grupos que geram um volume de negócios líquido de 450 milhões de euros (anteriormente 150 milhões de euros) na UE nos últimos dois anos consecutivos.

As PME cotadas em bolsa foram totalmente excluídas do âmbito da CSRD e, assim, deixam de ser obrigadas a reportar.

A Comissão também propôs medidas para proteger as PME de pedidos desproporcionados de informações sobre sustentabilidade, sempre que façam parte das cadeias de valor de empresas sujeitas à CSRD e CSDDD. Segundo as novas regras propostas, as empresas abrangidas só poderão solicitar às PME um conjunto limitado de informações, alinhado com os standards voluntários de reporte para PME.

Na verdade, para empresas com menos de 1000 trabalhadores (que deixarão de estar sujeitas à CSRD), a Comissão propõe a introdução de Standards Voluntários de Reporte para PME (Standards PME), a serem desenvolvidos pela EFRAG. Assim, a proposta preliminar dos Standards PME, publicada pela EFRAG em janeiro deste ano, terá de ser revista pela CE antes da respetiva adoção (através de regulamento delegado).

Além disso, a Comissão compromete-se a rever as Normas Europeias de Relato de Sustentabilidade (ESRS) para reduzir significativamente o número de dados obrigatórios e priorizar os dados quantitativos em detrimento das descrições qualitativas. As ESRS revistas devem ser publicadas nos primeiros seis meses após a revisão da CSRD para que possam ser aplicadas pelas empresas que reportem a partir de 2027.

Acresce que os planos para a adoção de normas setoriais foram abandonados.

A proposta Omnibus mantém o princípio da dupla materialidade na CSRD – um elemento distintivo do regime europeu de reporte de sustentabilidade (e que se temia fosse eliminado, considerando versões preliminares do pacote divulgadas antes de 26 de fevereiro).

Embora os relatórios continuem sujeitos a garantia limitada (em termos do nível de fiabilidade exigido às auditorias a que ficam sujeitos), a Comissão eliminou a opção de a aumentar para garantia razoável a partir de 2028.

Taxonomia da UE

Atualmente, as empresas da UE abrangidas pela CSRD são obrigadas a divulgar informações segundo a Taxonomia da UE. No entanto, a CE propõe limitar este requisito a empresas com 450 milhões de euros ou mais em volume de negócios líquido, individualmente ou em grupo. Para as restantes empresas abrangidas (ou seja, empresas com mais de 1000 trabalhadores, mas menos de 450 milhões de euros de volume de negócios), o relato de taxonomia passa a ser voluntário.

A proposta Omnibus inclui ainda medidas para simplificar os requisitos de reporte da Taxonomia, nomeadamente:

  • Simplificação do templates de reporte, reduzindo em quase 70% o número de pontos de dados a reportar;
  • Introdução de um limiar de materialidade financeira, isentando empresas de reportar atividades elegíveis para a Taxonomia que representem menos de 10% do seu negócio
  • Modificação dos principais indicadores de desempenho para instituições financeiras, incluindo a simplificação do Índice de Ativos Verdes – Green Asset Ratio (GAR) – para bancos (as empresas fora do âmbito da CSRD são excluídas do denominador para calcular o GAR, enquanto atualmente todas são consideradas para efeitos de determinação do denominador do GAR)

Além disso, a proposta visa simplificar os critérios técnicos de avaliação da Taxonomia, reduzindo a complexidade da análise do princípio de Não Causar Dano Significativo (DNSH) e dos requisitos das salvaguardas mínimas.

CSDDD

A proposta Omnibus dilui significativamente a CSDDD, removendo muitas das obrigações inicialmente previstas para responsabilizar as empresas por violações em matéria de ambiente e de direitos humanos.

Embora não haja mudanças no âmbito da diretiva, a diligência devida passará a focar-se nos parceiros comerciais diretos (Nível 1) em vez de abranger toda a cadeia de valor – contrastando com o que se dispõe nas Diretrizes da OCDE e nos Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos.

Requisitos adicionais de due diligence para parceiros comerciais indiretos só serão aplicáveis em dois casos específicos: se os parceiros intermediários tiverem sido artificialmente (fraudulentamente) estabelecidos, ou se a empresa tiver informações credíveis da existência de um potencial impacto adverso ao nível de um parceiro indireto.

Outras alterações incluem a:

  • Eliminação da obrigação de terminar contratos como último recurso. Em vez disso, as empresas devem suspender a relação comercial e tentar resolver o problema com o parceiro em causa – alteração que visa responder às preocupações sobre as consequências indesejadas da CSDDD em regiões de alto risco, que enfrentavam a possibilidade de uma redução significativa do comércio, dado que grandes empresas da UE poderiam optar pela cessação abrupta da relação contratual, como a opção mais fácil (em vez da remediação dos impactos)
  • Extensão do prazo para rever medidas de diligência devida, de um para cinco anos, a menos que existam razões fundamentadas para acreditar que as medidas de diligência devida vigentes são inadequadas ou ineficazes
  • Alteração aos Planos de Transição Climática, eliminando a obrigação de os "pôr em prática" e passando a exigir apenas a descrição das ações de implementação. De acordo com a Comissão Europeia, o objetivo é alinhar melhor com o plano de transição previsto na CSRD, mas importará perceber se e em que medida esta alteração salvaguarda a coerência com a Lei Europeia do Clima

A proposta Omnibus modifica também o regime de responsabilidade civil previsto na CSDDD, reduzindo substancialmente os riscos para as empresas. Os Estados-membros deixarão de ser obrigados a:

i. Estabelecer um regime uniforme de responsabilidade civil em toda a UE para casos de incumprimento

ii. Permitir que ONG e sindicatos intentem ações em representação dos visados

iii. Aplicar a legislação nacional (europeia) independentemente do local onde ocorreu o dano

Ainda assim, as legislações nacionais devem garantir que indivíduos que sofram danos por incumprimento das obrigações de diligência devida por parte de uma empresa têm direito a uma compensação.

Porém, eliminando a exigência de um sistema uniforme em toda a UE e permitindo que cada Estado-Membro aplique regras nacionais, isso significa que as empresas poderão ter de avaliar 27 diferentes sistemas jurídicos para determinar o regime de responsabilidade a que estão sujeitas. Além disso, ao abandonar um regime uniforme de responsabilidade civil em toda a UE, os tribunais europeus poderão ter de aplicar as leis do país terceiro onde ocorreu o dano, com todas as dificuldades óbvias que isso acarreta.

Acresce que a Comissão removeu o valor de coima mínimo correspondente a 5% do volume de negócios global. Embora os Estados-Membros ainda possam aplicar sanções, esta alteração poderá incentivá-los a nivelar a definição das penalizações “pelo mínimo", de forma a atrair empresas para a sua jurisdição. No entanto, a Comissão irá emitir orientações dirigidas às autoridades de supervisão, a fim de auxiliá-las na determinação do nível adequado de sanções, que devem, ainda assim, ser eficazes, proporcionais e dissuasivas.

Por outro lado, para garantir harmonização, os Estados-membros deixarão de poder impor requisitos adicionais de diligência devida ao nível nacional, para além dos estabelecidos pela diretiva, em áreas-chave como avaliação de risco, due diligence da cadeia de valor e sanções.

"Parar o relógio" da CSRD e CSDDD (mas o tempo continua a contar...)

Para as empresas que permanecem dentro do âmbito da CSRD, mas ainda não iniciaram o seu reporte de sustentabilidade, a Comissão Europeia apresentou uma proposta separada que visa "pausar o relógio" do reporte. Se adotada, esta medida dará a essas empresas mais dois anos antes de terem de começar a reportar, independentemente de quaisquer outras alterações substanciais à CSRD e à CSDDD, reconhecendo que o reporte do CSRD deve continuar de alguma forma, ainda que com um adiamento, até nova indicação.

Quanto à CSDDD, os Estados-membros terão mais 12 meses para a sua transposição, estendendo o prazo para 26 de julho de 2027. Além disso, foi removido o prazo original de cumprimento (das obrigações substantivas da CSDDD) por parte das empresas, previsto para 26 de julho de 2027, para as maiores entidades abrangidas (5000 trabalhadores e 1,5 mil milhões de euros de volume de negócios global, ou grupos sediados fora da UE com mais de 1,5 mil milhões de euros de volume de negócios na UE). Consequentemente, todas as empresas da UE com mais de 3000 trabalhadores e um volume de negócios global superior a 900 milhões de euros (bem como entidades não pertencentes à UE com mais de 900 milhões de euros de volume de negócios na UE) – classificadas como grandes empresas – terão agora até 26 de julho de 2028 para cumprir. Para as empresas abrangidas, mas que se encontrem abaixo destes limiares, o prazo para cumprir as obrigações substantivas da CSDDD mantém-se inalterado: 26 de julho de 2029.

No que diz respeito às obrigações de reporte da CSDDD para grandes empresas, estas continuarão a ter início em 2029, conforme originalmente planeado. No entanto, para todas as outras empresas dentro do âmbito de aplicação, a data de início será adiada por um ano, empurrando as suas primeiras obrigações de reporte para 2030.

Além disso, a CE antecipará a publicação das suas diretrizes de diligência devida, antecipando a data original de 26 de janeiro de 2027 para 26 de julho de 2026. O objetivo da Comissão é garantir que as entidades abrangidas tenham dois anos para compreender e preparar-se para os requisitos, em vez de apenas seis meses.

A CE pretende acelerar o processo de aprovação desta Diretiva autónoma destinada a "pausar o relógio" para proporcionar rapidamente clareza às empresas atualmente sujeitas ao CSRD – uma preocupação comum, independentemente das posições individuais dos Estados-membros sobre as principais reformas materiais avançadas pelo Omnibus.

E o que acontece com o SFDR?

O Regulamento sobre Divulgação de Informações relacionadas com a Sustentabilidade no Setor dos Serviços Financeiros (SFDR) não está incluído no pacote Omnibus e deverá passar por um processo de simplificação autónomo no último trimestre de 2025. No entanto, a redução significativa do âmbito da CSRD pode indicar a direção das futuras reformas do SFDR. Uma questão-chave é saber se a Comissão aliviará a carga sobre as entidades financeiras, reduzindo ou até eliminando a obrigação de recolher e reportar indicadores relativos aos principais impactos adversos (PIA). Como os dados dos PIA foram originalmente concebidos para serem obtidos a partir dos relatórios da CSRD das empresas investidas, um âmbito mais restrito da CSRD poderá criar lacunas de dados, potencialmente influenciando as próximas alterações ao SFDR.

E agora?...

Um dos principais desafios para as empresas será gerir este período de transição, durante o qual continuam legalmente sujeitas a obrigações que provavelmente serão alteradas ou mesmo eliminadas nos próximos meses. Isto é especialmente preocupante e complexo para as empresas que já investiram recursos significativos na preparação dos seus primeiros relatórios de sustentabilidade este ano.

A incerteza legal e o vazio regulatório representam sempre riscos para os negócios.

É importante recordar que um dos objetivos centrais da legislação de sustentabilidade agora em causa era garantir que o capital fosse direcionado para práticas sustentáveis, ajudando a orientar a tomada de decisão dos investidores e a promover um comportamento corporativo responsável. Seria ingénuo acreditar que todas as empresas que deixarem de ser obrigadas a reportar continuarão a fazê-lo. Algumas poderão optar por fazê-lo, mas a passagem do campo do compliance para o da ação voluntária em sustentabilidade significa que as empresas terão de encontrar o seu próprio business case assente no valor para continuar a reportar.

As empresas devem considerar a vantagem competitiva – tanto a curto como a longo prazo – de compreender, avaliar e gerir riscos, oportunidades e impactos ao longo da sua cadeia de valor e das suas operações. A verdadeira competitividade e o crescimento económico surgirão da integração plena da sustentabilidade na estratégia central do negócio – o que exige uma liderança responsável.

Muitas empresas já investiram em formação, recolha de dados e em toda a preparação necessária para cumprir a legislação de sustentabilidade da UE. Em vez de verem estes esforços como custos afundados, devem capitalizá-los. A narrativa sobre o relato de sustentabilidade deve evoluir de uma lógica de “custo” para uma narrativa de «criação de valor» – um motor para a estratégia, rentabilidade, crescimento e inovação.

O que se segue?

O futuro da proposta Omnibus depende agora das negociações com o Parlamento Europeu e o Conselho, o que pode resultar em novas alterações substanciais. Dada a complexidade do processo legislativo europeu, é expectável que o texto final venha ainda a sofrer alterações significativas. A obtenção de um acordo envolve frequentemente discussões prolongadas, podendo demorar habitualmente entre 6 e 18 meses.

O pacote Omnibus entra assim na fase de debate legislativo, sendo novas alterações não só possíveis, como prováveis. Noutras palavras, foi reaberta a Caixa de Pandora do Pacto Ecológico Europeu. Se o Omnibus acabará por ser uma verdadeira simplificação ou um pacote mais amplo de desregulação, teremos ainda de esperar para ver.

Que as negociações recomecem – e que as empresas sejam resilientes até que seja mais claro o que aí vem!


Ângela Lucas, Advisor & Researcher, no Center for Responsible Business & Leadership da Católica-Lisbon

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.