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Alfredo Teixeira
Opinião de Alfredo Teixeira
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Opinião Católica-Lisbon

Coro Gulbenkian - a voz é um lugar habitável

07 abr, 2025 • Alfredo Teixeira • Opinião de Alfredo Teixeira


Num tempo de desencanto, sob o império da visualidade, cantar é devolver o mistério à vida, reinstaurando o tempo da escuta. Cantar com os outros é reconstruir uma casa comum, uma solidariedade habitável. Parabéns, Coro Gulbenkian.

No dia 3 de abril, estreou nas salas de cinema o documentário «Coro», realizado por Edgar Ferreira. O artefacto fílmico celebra os 60 anos do Coro Gulbenkian. Junta-se a outros dois filmes comemorativos - sobre a Orquestra Gulbenkian, a «Soma das Partes», também de Edgar Ferreira, e sobre o extinto Ballet Gulbenkian (1965-2005), com o título «Um Corpo que Dança», de Marco Martins.

Deixo a leitura crítica do objeto cinematográfico para os peritos no ofício. Fico-me por um olhar treinado pela antropologia visual, embora, neste caso, não suficientemente distanciado. Acompanho a atividade do Coro Gulbenkian desde o dealbar da minha juventude. Alguns dos cantores, em diversos contextos, têm estreado, cantado e gravado a música que escrevo. Por isso, a minha leitura resulta de um olhar «co-movido», ou seja, atraído pelo trânsito de muitas memórias, emoções e cumplicidades partilhadas.

Edgar Ferreira construiu a narrativa como uma viagem interior. O lugar originante, seguindo as confissões do realizador, parece ter sido a descoberta de que este reputado coro é constituído por pessoas que, em grande parte, não se dedicam a tempo inteiro a esta formação coral, mas desenvolvem outras carreiras profissionais, e que essas outras carreiras não são, em muitos casos, ocupações musicais. Esse lugar de espanto, para o realizador, foi o motor para uma espécie de arquitetura de interiores. Não lhe interessou tanto a «forma» da instituição coral, mas antes o «conteúdo» que lhe dá espessura humana. Na escolha dos protagonistas, privilegiou os mais apetrechados para fazer o transporte da memória e os que melhor exemplificam essa vasta pluralidade que descreve este organismo vivo, de múltiplas vozes. O médico, a advogada, o engenheiro, a doula, a professora, o enólogo, a terapeuta, o atleta de triatlo, os músicos a tempo inteiro, entre outros, são o rosto de uma vocalidade interior que faz do Coro Gulbenkian um lugar de superação.

Não espanta, pois, que o documentário abra com o cantor-atleta num registo intenso de ação (os mais distraídos podem julgar que se enganaram na sala e veem, desprevenidos, um documentário desportivo). Como um ritornello, a figura do cantor-atleta regressa no epílogo do documentário. A metáfora da ascese desportiva transporta a atividade coral para o desafio da auto-transcendência. Na narrativa de uns, o stress, a mesmice ou a precaridade dos quotidianos encontra a redenção na vocalidade partilhada. Para outros, a experiência da comunhão coral é o prolongamento plenificante do labor de todos os dias. Para todos, o Coro Gulbenkian é, ao mesmo tempo, uma utopia realizada e uma promessa. Utopia realizada, no encantamento vespertino que habita a sala de ensaios. Promessa, porque, no fim, importa a comunhão musical com os públicos, no desejo do aplauso reconstituidor.

Não encontrarão no documentário a proliferação de cenas de bastidor ou a espetacular encenação «making-of» de produções musicais. O tecido documental é constituído pela voz dos cantores. Os maestros do Coro Gulbenkian são uma ausência presente. Não é deles o palco deste documentário. Mas Corboz, Eldoro, Matta (os dois primeiros já falecidos) tomam corpo na voz e na memória dos cantores. Sem eles, essa voz seria outra.

Esta voz é o corpo de uma vida interior. É a epiderme de um organismo de emoções, transformações e dramas pessoais. Nesta leitura biografada do Coro Gulbenkian, os cantores são corpos em trânsito na demanda de um lugar habitável. Lugar, porquê? Reporto-me ao que Marc Augé escreveu sobre os não-lugares, categoria que o antropólogo reservou para os contextos em que os indivíduos são adicionados num espaço de forma arbitrária (aeroportos, estações, lugares de circulação), distinguindo-se dos lugares, estes marcados por dinâmicas que lhes dão espessura cultural: língua, ritos, valores, narrativas, memórias, símbolos, emoções partilhadas, criações coletivas, etc. Em muitos dos discursos, o Coro Gulbenkian instala-se na linguagem do desejo. O desejo de um lugar habitável, onde o apelo interior possa ter voz e se amplifique na voz dos outros, numa cantilação frágil ou num brado sonoro. Cada voz é única. Não pode ser replicada. É uma assinatura existencial. Mas o coro é o lugar da metamorfose dessas singularidades, construindo uma outra voz, una e múltipla.

Ao longo da projeção do documentário, não pude deixar de me recordar de numa leitura que descobri há já alguns anos. Refiro-me ao ensaio filosófico de Vincent Delecroix – «Chanter: reprendre la parole» (Cantar: retomar a palavra, 2012), obra em que se explora o nexo íntimo entre o canto e a existência humana. Ao cantar, transcendemos o linguajar quotidiano. Cantar é expor-se, dar-se a ouvir de um modo que transcende o ato de fala: «Cantar é tornar-se vulnerável diante do outro e de si mesmo». O canto, para Delecroix, abre um espaço de transcendência. Resgatando-nos da ordem utilitária da linguagem, recria um lugar de suspensão, de pura emoção, numa ordem temporal nova. Na perspetiva do filósofo, cantar é uma experiência mística – o espiritual oferece-se no material e o material é a sua possibilidade de comunicação. Delecroix reflete sobre a voz como algo que está entre o corpo e o espírito. A voz é corporal, mas carrega emoções e sentidos – na gramática que herdámos dos medievais, dir-se-ia que a voz é fisiologia da alma.

Num tempo de desencanto, sob o império da visualidade, cantar é devolver o mistério à vida, reinstaurando o tempo da escuta. Cantar com os outros é reconstruir uma casa comum, uma solidariedade habitável. Parabéns, Coro Gulbenkian.


Alfredo Teixeira é antropólogo, investigador e docente na UCP.

Este espaço de opinião é uma colaboração entre a Renascença e a Católica-Lisbon School of Business and Economics.

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