Siga-nos no Whatsapp
Alfredo Teixeira
Opinião de Alfredo Teixeira
A+ / A-

O paradoxo do Papa Francisco – a religião importa?

29 abr, 2025 • Alfredo Teixeira • Opinião de Alfredo Teixeira


O Papa preencheu, em parte, a necessidade de novos protagonistas na construção da cidadania global – quando os Estados se encontram fragilizados e as instituições internacionais desmoralizadas.

Escrevo este texto depois das cerimónias fúnebres do Papa Francisco, quando se prepara o conclave que procederá à eleição do novo pontífice romano.

Nos últimos dias, a esfera pública foi tomada por um coro de pronunciamentos sobre o que representa esta figura, no contexto da nossa contemporaneidade. Já o sabíamos, mas tornou-se mais patente: a figura do Papa Francisco suscitava um crédito muito mais amplo do aquele que é gerado pela instituição a cuja comunhão presidia.

É o «paradoxo do Papa Francisco». Em 2019, o sociólogo italiano, Luca Diotallevi, dava este título a um dos seus livros, propondo-se reformular as mais hegemónicas conceções sobre a secularização, precisamente a partir de uma interpretação deste paradoxo: como compreender esta dicotomia entre o carisma de uma liderança religiosa e o capital simbólico da instituição que ele representa?

As instituições religiosas, em particular, constituem-se como um tipo de organização estruturada a partir de um universo crente partilhado. Representam uma memória autorizada (e que autoriza). Os historiadores – e outros cientistas sociais –, escreveram sobre uma crise religiosa, vivida em particular no Atlântico Norte, na década de 60 do século XX. Mas essa crise não se confinou ao campo religioso. Ela dizia respeito as todas as formas de comunhão ideológica, como partidos políticos e outras formas de aliança para promover valores comuns. Estes estudos procuraram mostrar que, mercê de um conjunto de transformações sociais, os indivíduos apresentavam-se cada vez mais autónomos em relação às instituições, resistindo a ver o seu lugar no mundo como uma posição «pronta-a-vestir». Abria-se um espaço mais amplo para compreender as dinâmicas culturais a partir da singularidade biográfica dos indivíduos - «todos têm uma história para contar», e não apenas as vetustas instituições que transportam uma narrativa secular.

Mas essa afirmação de um novo protagonismo dos indivíduos, na sociedade, pode acontecer no interior das próprias instituições. No campo da autoridade religiosa – perspetiva que importa a este texto – tornou-se corrente observar que as instituições religiosas perdiam, em muitos contextos, a sua influência social, mas ao mesmo tempo, certos indivíduos religiosos adquiriam um enorme protagonismo na cena pública. «Virtuosos» da religião como Madre Teresa de Calcutá, João Paulo II, Desmond Tutu, Dalai Lama, entre outros, habitaram as diferentes mediasferas como referências fundamentais para muitos dos valores necessários a uma nova cidadania global a construir.

A força da operação biográfica abre amplas possibilidades de identificação pessoal com a narrativa do protagonista, sem a mediação do aparelho institucional. Por isso, é necessário ter uma história para contar.

No dia em que Francisco foi eleito e saudou pela primeira vez o mundo, na condição de pontífice romano, a esfera mediática agitou-se à procura das narrativas que pudessem dar corpo biográfico a esta figura, desconhecida para muitos.

Quantos católicos saberão os nomes de batismo dos Papas anteriores a João Paulo II? Provavelmente, poucos. E o fator decisivo não é a distância no tempo. Esse desconhecimento traduz uma determinada configuração do sujeito concentrado na sua função institucional.

Recentemente, todos reconheciam facilmente o nome polaco de João Paulo II, o nome alemão de Bento XVI ou o nome hispano-italiano de Francisco – o nome transporta uma história pessoal irredutível. O fenómeno da atração exercida por estes atores documenta, aliás, a relevância dos processos de recomposição individual e de emocionalização do crer. A sua circulação nas diversas mediasferas facilitou a bricolagem de sacralidades efémeras e emocionais. Logo no início do pontificado de Francisco, Ricardo Araújo Pereira protagonizava um sketch cuja narrativa exemplificava como a pessoa mais comum poderia receber um telefonema do Papa. Este era o novo emblema papal.

Muitos discursos públicos documentaram o reconhecimento de Francisco como uma espécie de «sumo sacerdote» de uma sacralidade à escala global. O cruzamento entre a força do seu lugar institucional com os traços do seu carisma pessoal permite a emergência de uma autoridade que não se limita já às fronteiras da eclesiosfera romana. Trata-se de uma transação entre a consagração da individualidade e o reconhecimento do lugar «sacral» desta figura.

Nesse sentido, as linguagens do sagrado transformam-se. O sagrado já não é servido por estratégias de ocultação e distanciamento, mas por linguagens de proximidade – um «Papa próximo das pessoas» repetiu o coro mediático, nos últimos dias.

A sociologia de Danièle Hervieu-Léger interpretou a figura do Papa enquanto «operador utópico», que promove uma territorialidade pessoal simbólica, reunindo indivíduos, antes disseminados, em torno de grandes causas para a humanidade.

Por isso, Francisco foi celebrado como aquele que deu voz a uma submodernidade que não se vê representada na agenda global: a voz do sul, da periferia, dos desalojados, dos refugiados, dos descartados. A enumeração poderia continuar, mas podemos resumi-la no «grito dos pobres e da terra». Reunindo, num vasto fresco humano, multidões que sofrem, no seu quotidiano, o impacto negativo de decisões políticas e de formas de organização económica, o Papa preencheu, em parte, a necessidade de novos protagonistas na construção da cidadania global – quando os Estados se encontram fragilizados e as instituições internacionais desmoralizadas.

Assim nos encontramos perante o paradoxo de Francisco. A sua voz é respeitada, os seus gestos aclamados, mas esse crédito não é facilmente transferível para a instituição a que ele preside. «Não acredito em Deus… não acredito na Igreja… mas tenho fé em Francisco», repetiu-se, por estes dias. No entanto, as palavras e os gestos de Francisco enraízam-se explicitamente na continuada releitura de uma tradição religiosa.

Este é um contexto favorável para uma renovada atenção ao contributo que as sabedorias religiosas e espirituais da humanidade podem dar à construção dos consensos necessários ao governo da «casa comum». Francisco, procurou na tradição cristã um imperativo para alimentar esse processo: fraternidade. Outras ideias matriciais podem ser encontradas em diferentes tradições religiosas e espirituais, se passarem do seu particularismo à esfera da razão pública que deve alimentar os nossos debates acerca de uma vida melhor para todos.

Nas suas páginas sobre a democracia, o filósofo Jürgen Habermas apelou a uma nova cultura, na qual as tradições religiosas possam ser uma fonte possível de sabedoria, válida para a construção de consensos, que vão para além do campo religioso – acerca da vida comum, do que percebemos como mais ameaçante ou do que não encontra voz noutros modos de agir sobre o mundo. Neste contexto, reivindicou a possibilidade de um agnosticismo disponível para novas aprendizagens – uma política aberta à crítica das práticas sociais, que pode ter origem nas comunidades religiosas. Afinal, a religião importa.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.