06 fev, 2025 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Joana Mesquita (Público)
Jorge Bacelar Gouveia admite que casos como o que levou o Ministério Público a acusar 60 arguidos na Operação Tutti-Frutti são “prática comum” nas autarquias. “A política local vive de pequenas intervenções, de amizades locais, de poderes locais, de iniciativas locais, das associações, de micro-poderes”, denuncia o constitucionalista e professor catedrático que já foi autarca.
Em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e do jornal Público, o antigo deputado do PSD declara apoio a Luís Marques Mendes nas eleições presidenciais e lembra ao almirante Gouveia e Melo: "presidir um país não é a mesma coisa que conduzir um submarino".
Dirigente do Observatório da Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), Bacelar Gouveia alerta ainda para o aumento da criminalidade violenta e com ligações ao tráfico de droga e propõe um “programa especial” para as grandes cidades ou para as zonas suburbanas e com articulação entre autarquias.
Esta semana, foi conhecida a acusação do MP no âmbito da Operação Tutti-Frutti. O que consta do processo é uma prática comum do PSD ou é comum aos diversos partidos?
Fui autarca de freguesia e de município. Li por alto a acusação. Aquilo que lá está corresponde em parte a uma conversa da chamada politiquice autárquica que é comum a muitos partidos.
Vê ali uma prática comum?
Sim, com a qual não me identifico. Promessas que não se cumprem, o toma lá, dá cá, que muitas vezes não passam de conversas de circunstância, que depois não são realizadas, outras vezes sim. Até acho que o mais importante não se costuma dizer ao telefone. Tenho reservas sobre as consequências do material que foi captado como material probatório.
É algo que é comum nos partidos ditos tradicionais?
Sim, são partidos com implantação local. A política local vive de pequenas intervenções, de amizades locais, de poderes locais, de iniciativas locais, das associações, de micro-poderes.
"Operação Tutti-Frutti? Corresponde em parte a uma conversa da chamada politiquice autárquica"
Há ali matéria problemática para dirigentes do PSD, como o líder da distrital, Ângelo Pereira?
Gostaria de afirmar a inocência dele até ao trânsito em julgado da sentença condenatória. [Mas] é preciso fazer uma avaliação política. Acho bem que as pessoas que estão nestas circunstâncias não exerçam cargos políticos ou partidários. Deve suspender ou demitir-se [de líder da distrital].
Concorda com Hugo Soares que pediu ao deputado Carlos Eduardo Reis, um dos acusados, que renuncie ao mandato?
Concordo. Renunciar ou suspender.
Dez anos para produzir uma acusação. O que é que isto diz da nossa justiça?
Não diz lá muito bem. Nove anos parece-me manifestamente excessivo.
Esta acusação fere o vereador Ângelo Pereira. Coloca em causa a reconquista da Câmara de Lisboa pelo PSD?
Acho que não. Penso que Carlos Moedas vai sair absolutamente ileso.
Hernâni Dias foi a primeira baixa no governo da AD. É um caso em que há um conflito de interesses que obrigava à demissão?
Fez bem. Mesmo na dúvida, penso que essa demissão se justificou para poupar o governo a um processo de desgaste político.
Não considera que houve demora na resposta do primeiro-ministro e do Governo?
É normal, é preciso avaliar as circunstâncias, falar com as pessoas. O que eu acho mais grave, no sentido de mais importante, não é isso. É a lei dos solos. Temos de ter muito cuidado e não transformarmos de repente os solos agrícolas em solos urbanizáveis. Isso significa uma fraude gigantesca do funcionamento do país e da construção no país. Tenho as minhas reticências em relação à lei como foi apresentada.
Esta quinta-feira Luís Marques Mendes formaliza a sua candidatura às eleições presidenciais. Tivemos o ex-ministro Ângelo Correia a defender uma candidatura do Almirante Gouveia e Melo. Como é que se posiciona?
O meu voto vai para Marques Mendes. Está a uma grande distância de vantagem em relação ao Almirante Melo, pelas suas capacidades políticas e pelo facto de eu não saber nada do Almirante. Não sei nada do seu modo de ver a política, como é que interpreta os poderes presidenciais. Presidir um país não é a mesma coisa que conduzir um submarino. O Parlamento precisa de uma pessoa com capacidade de diálogo horizontal e não de uma pessoa com autoritarismo vertical.
"Presidir um país não é a mesma coisa que conduzir um submarino"
Gouveia e Melo já teve uma declaração de apoio de Ângelo Correia, antigo ministro da Administração Interna do PSD. Como é que vê estes apoios?
É uma candidatura livre, o apoio deve ser livre. Não deve haver nenhum tipo de orientação de voto por parte do partido, embora pense que o PSD faz bem em apoiar quem acha que é indicado.
As sondagens têm dado vantagem a Gouveia e Melo, Marques Mendes parte em desvantagem.
A desvantagem será maior com a candidatura de André Ventura, porque vai ter impacto na área política em que se posicionam Marques Mendes e Gouveia e Melo, mas ainda estamos a começar.
Há aqui o risco de o PSD não ter ninguém da sua área política numa segunda volta?
Pode haver esse risco, pode haver uma fragmentação do eleitorado centro-direita com a intervenção de André Ventura. André Ventura pode provocar uma perda de chance de Marques Mendes passar à segunda volta.
Vê alguma forma de alguém desistir a favor de Marques Mendes?
André Ventura tem apelado à convergência das direitas e talvez pudesse dar um exemplo dessa convergência, desistindo e permitindo que o candidato do PSD pudesse passar à segunda volta, se houver o risco de não passar.
No PS há uma indefinição entre António Vitorino e António José Seguro. Beneficia o candidato apoiado pelo PSD?
Beneficia bastante. O PS tem um problema de divisão interna. A solução não são as primárias, é fazer um referendo interno e perguntar aos militantes quem é que acham que é o melhor candidato.
Já é possível fazer um balanço do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa?
Nos últimos anos, o mandato deteriorou-se. Houve uma tentativa de responder à crítica de que estava mais do lado do PS do que do PSD, mas não tem sido feita da forma mais airosa. Há um problema de relacionamento pessoal [entre o Presidente da República e Luís Montenegro].
É dirigente do OSCOT - Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo. Há um problema de segurança em Portugal?
Há um problema de segurança hoje que não havia há cinco anos. É um problema da segurança objetiva e um problema de insegurança subjetiva, as perceções que as pessoas têm.
Mas o relatório da PSP vem dizer o contrário, que a criminalidade geral até baixou.
O que nos preocupa é terem aumentado os crimes mais graves.
Vai ser um dos temas da campanha das autárquicas?
Vai. Carlos Moedas tem razão em dizer que há um problema de segurança em Lisboa. Não sei se se resolve pondo a Polícia Municipal a fazer aquilo que compete à PSP. O que podia haver era uma estratégia, um programa especial para as grandes cidades ou para as zonas suburbanas, precisamente para atacar nos lugares onde há uma maior criminalidade e uma sociedade mais violenta e mais organizada.
Para lá dos planos de operação especial da Polícia?
Sim. E para lá do próprio município em si, do aglomerado urbano, como, por exemplo, a grande área metropolitana de Lisboa ou o grande Porto. Muitas vezes estes crimes são cometidos no município de Lisboa, mas as pessoas vão para outros municípios limítrofes, por exemplo, Odivelas, Amadora. Tem de haver aqui um plano que não conheça as fronteiras mais estritas dos próprios municípios que, entre si, devem ter mecanismos de colaboração.
"Há um problema de segurança hoje que não havia há cinco anos"
Como é que vê a possível inclusão dos dados da nacionalidade, género e idade no RASI?
Com toda a normalidade, os dados devem ser incluídos. Saber a nacionalidade permite saber se há um problema com a integração desses imigrantes. Não me passaria pela cabeça, se fosse governante, de querer governar com a menor informação que se pode obter. Quero governar com a máxima informação possível. E essa informação é importante porque muitas vezes, ao saber a nacionalidade, isso permite saber se há um problema ou não há um problema, por exemplo, com a integração desses imigrantes. Se são estrangeiros e se cometem mais crimes, é porque eles podem estar a ser mal integrados e isso deve preocupar, não tanto na lógica repressiva, mas na lógica também preventiva e de propiciar ao governo que haja uma política de maior inclusão e de perceber que, afinal, se há certos crimes que estão a aumentar e são praticados por estrangeiros, é porque alguma coisa está mal também com o acolhimento desses estrangeiros. É nessa lógica que vejo esses números. Não vejo na lógica punitiva, que também pode existir, claro, mas vejo sobretudo na lógica preventiva e na lógica de inclusão social desses estrangeiros.
Como é que olha para a relação entre imigração e segurança que tem sido feita?
Não há uma relação direta, a não ser em certos segmentos. Por exemplo, se há mais imigração, há mais crimes de ajuda à imigração ilegal. Outra questão são os outros crimes, de roubo, de homicídio, aí essa relação não é direta.
Concorda com a antecipação da meta dos 2 % de investimento na defesa, como já admitiu o Primeiro-Ministro?
Acho que sim. Neste momento, a Europa confronta-se com um problema de segurança coletiva. Do outro lado do Atlântico, as notícias não são boas, porque os Estados Unidos já se cansaram de serem os únicos a suportar os encargos com a defesa militar da NATO. É necessário aumentar essas despesas e é necessário, sobretudo, que as pessoas tenham uma atitude em relação aos militares de reconhecer a sua importância num novo contexto internacional, que é o contexto da guerra da Ucrânia.
A meta de 5 % que defende Donald Trump é exequível para a Europa?
Acho que é irrealizável. Até porque a Europa agora vai entrar num processo de desaceleração e eu acho que os europeus não têm qualquer capacidade de acompanhar esse ritmo e, portanto, acho isso absolutamente irrealista. Vai favorecer as indústrias militares dos Estados Unidos, como é óbvio, mas tem de haver aí um certo compromisso e um certo realismo porque isso é impossível de atingir.
Esse reforço da defesa, não implica o desinvestimento noutros setores, nomeadamente no social?
Sim. Sabemos o que se está a passar, por exemplo, na educação. Sou professor do Ensino Superior, mas tenho vários alunos que são pais de crianças que dizem que até hoje não têm professor, desde o princípio do ano letivo, nas escolas públicas. Isto é uma coisa inadmissível.
E como é que se explica às pessoas o reforço na Defesa?
Isso é que é a arte de governar. É a arte de fazer o equilíbrio e a boa distribuição de recursos, mas também mostrar às pessoas que elas têm que aceitar esse compromisso de ter ao mesmo tempo mais segurança e terem também mais algum dinheiro, ou talvez não tanto quanto seria desejável, para correr às necessidades sociais.