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José Luís Ramos Pinheiro
Opinião de José Luís Ramos Pinheiro
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A Europa e as "Trumpalhadas"

22 fev, 2025 • Opinião de José Luís Ramos Pinheiro


A política passou a estar fora de moda. E as modas começaram a ser ditadas por agendas, melhor ou pior intencionadas, mas com um ponto em comum: conduzir-nos – talvez, instrumentalizar-nos – em ordem a um pensamento único.

Parecendo o contrário, o que estamos a viver não é novo. Na europa, como no mundo em geral, a História mostra como a guerra e a paz se alternaram e sucederam. Por aqui, nenhuma guerra dura para sempre e não há paz que não se acabe.

Depois de duas guerras mundiais no século XX tivemos um longo período de paz na europa. Ainda assim, vivemos debaixo da chamada ‘guerra fria’ até o império soviético implodir.

Muitos celebraram a implosão soviética, a começar por reconhecidos pensadores americanos, como uma espécie de fim da História. Debelada a infeção comunista, viriam, a partir dessa altura, anos de prosperidade e bem-estar. E a paz, outrora comprometida pela superpotência soviética, era, praticamente, um dado adquirido.

A realidade não confirmou tais previsões. A estreiteza dessa visão ignorava múltiplos fatores de um mundo cada vez mais global, interdependente e por isso mais permeável e sensível a muitas desestabilizações regionais. Pior, essas previsões não tinham em conta o fator humano, sempre decisivo em cada esquina da História. Porque são as pessoas que nas diferentes circunstâncias fazem a diferença. Sejam os emigrantes em fuga, sejam os líderes – democráticos ou nem por isso - que pelas mais diversas razões acedem ao poder.

É verdade que após a segunda guerra mundial, a europa, animada por visionários como Jean Monnet, Robert Schuman ou Adenauer, construiu um projeto de paz, sustentado por uma economia que cresceu e satisfez, não todas, mas muitas necessidades sociais. Aprofundaram-se direitos e garantias. Pelo caminho, também se anestesiaram consciências, sobretudo após a queda do muro de Berlim e do império soviético.

Estando garantidas a democracia e a liberdade, para quê perder tempo com a política? Por que motivo deveriam as elites dedicar-se à política, enquanto meio de promoção do bem comum, quando poderiam entregar-se às suas vidas privadas, sem desassossegos pessoais e mediáticos?

A política passou a estar fora de moda. E as modas começaram a ser ditadas por agendas, melhor ou pior intencionadas, mas com um ponto em comum: conduzir-nos – talvez, instrumentalizar-nos – em ordem a um pensamento único.

Sobre vida, sexualidade, educação, comportamentos, linguagem e atitudes havia uma cartilha bem-pensante. E quem ferisse o único pensamento tolerado, pelo mais politicamente correto dos pensamentos, seria cancelado e exposto.

A cultura woke ganhou terreno e impôs-se a quase tudo e a quase todos, nos últimos anos.

Nalgumas sociedades europeias exibir a condição cristã, por exemplo, passou a ser considerada manifestação de exclusão dos que não se reconhecem como tal. E nalguns casos, para não ferir suscetibilidades, as férias do Natal começaram a ser conhecidas como férias de inverno.

Expressões essenciais da nossa civilização, como a objeção de consciência, passaram a ser vistas como descartáveis. E há relatórios europeus que apontam para o fim do recurso a esse último reduto da liberdade individual.

Os mesmos europeus afadigaram-se, anos a fio, a desvalorizar a vida dos que ainda não nasceram ou daqueles que ainda não morreram. Facilitando a morte de uns e de outos, nascer e morrer começaram a ser regulados como um incómodo. E na sociedade do bem-estar todos os incómodos são elimináveis, nem outra coisa poderíamos tolerar.

A tolerância passou a ser total, com aqueles que pensam de acordo com as cartilhas ‘oficiais’, mas a intolerância converteu-se na regra a aplicar aos que desafiam e desafinam do coro orquestrado.

Como sempre na história humana, há fluxos e refluxos. E aos radicalismos de um lado sucedem-se os extremismos do outro.

No recente discurso em Munique, J D Vance, o vice-presidente que Donald Trump levou consigo para a Casa Branca, pôs o dedo nalgumas feridas europeias. E apelou ao respeito pela liberdade de expressão e pela democracia. Instou mesmo os países europeus a saberem respeitar os resultados eleitorais, não permitindo que sejam os tribunais a porem em causa a vontade do povo.

Por cá, muitos europeus regozijaram-se com as palavras de Vance e com o raspanete às elites europeias.

Sucede que J D Vance é das pessoas menos indicadas para o fazer. O Presidente que agora o escolheu para este cargo, nunca reconheceu os resultados eleitorais de 2020. Como candidato vencido, usou todos os recursos judiciários disponíveis, para que os tribunais anulassem eleições e impedissem a tomada de posse de Joe Biden. E também ele, Donald Trump, acirrou a multidão, levando-a a investir contra o Capitólio num dos episódios mais lamentáveis da democracia norte-americana.

Ao falar em respeito pela democracia e pela liberdade, não tive a certeza se o vice-presidente Vance pensava mais nos europeus ou no seu presidente, Donald Trump.

De resto, J D Vance é vice-presidente de uma administração que procura condicionar a opinião pública através da aquisição e controle das redes sociais, com o mesmo objetivo dos seus adversários – criar um pensamento único e, embora discutível, indiscutido.

Vance, que em 2016 disse ter votado contra Trump e no passado comparou o atual presidente americano a Hitler, pode ter razão, e tem, nalgumas coisas que disse sobre a europa, mas fê-lo não pelos valores que defende, mas pelos interesses que representa.

Interesses que estão à vista na audácia como Donald Trump manifestou intenção de anexar o Canadá e absorver a Gronelândia. Na forma como tem gerido a questão da Ucrânia e no tom como procura desqualificar Zelensky e absolver Putin. Na sofreguidão como não disfarça o apetite pelas riquezas estratégicas da Ucrânia. Na insensibilidade como se pronuncia sobre o futuro de Gaza, como se o terrorismo do Hamas justificasse toda a sorte de negócios imobiliários em que se especializou ao longo da vida, impondo novos fluxos migratórios, ele que tanto se queixa dos imigrantes no seu país, o qual foi criado precisamente como resultado de um enorme movimento migratório.

Num mês de mandato, o furacão Trump feriu (de morte?) a (antiga?) ordem internacional.

Perante as orientações norte-americanas que ameaçam lavar as mãos da segurança europeia, ganham força novos (des)alinhamentos internacionais.

A China já se aproximou da Ucrânia e também por isso da europa. Porém, simultaneamente, os excessos de Trump, mais empenhado em fazer negócios do que em estabilizar o mundo, podem libertar os chineses para outros voos, incluindo no tema de Taiwan.

Para a Europa, a presidência de Trump é oportunidade para rever fraquezas internas e externas. Mas os desvarios de Trump não podem justificar ou branquear as falhas europeias. Não basta criticar Washington nem lamentar a nossa sorte.

Essencial é relançar as bases de uma União Europeia diferente, para um futuro novo e que já chegou. Não será fácil reverter, em tão curto espaço de tempo, erros de uma geração; sobretudo num tempo eleitoralmente tão crítico, designadamente na Alemanha que vai a votos já no próximo Domingo.

Se a extrema-direita viesse a governar países chave como a França ou a Alemanha, seria quase inevitável a desagregação europeia, sonhada por Putin e consentida por Trump.

Os próximos tempos serão desafiantes. E é nesta altura que mais falta nos fazem líderes (políticos e não só) de envergadura. A Europa já os teve e Portugal também. Messianismos à parte, eles hão-de aparecer. Resta saber quando e a que preço.

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