19 fev, 2025
A referência “Munique” tem um significado que todo o historiador, politólogo ou diplomata conhece bem. A 29 de setembro de 1938, na capital da Baviera, Hitler, Mussolini, Chamberlain e Daladier assinaram a divisão da Checoslováquia, consignando a soberania nazi sobre a zona dos sudetas e garantindo a independência à metade sobrante do país. Londres e Paris aceitaram o acordo para apaziguar Hitler, confiando que ele se aquietaria. Seis meses depois, em março de 1939, o líder nazi marchou sobre Praga e ocupou o que restava da martirizada Checoslováquia.
A partir de 1963, “Munique” passou a significar também a cidade sede da Conferência Anual de Segurança e Defesa, uma espécie de Davos político ‘avant-la-lettre’, onde os grandes da Guerra Fria iam solidificar amizades ou marcar posições em relação aos inimigos. Em mais de sessenta anos, alguns encontros entraram para a história: os de 1990 e 1992, após a queda do Muro de Berlim e o desaparecimento da URSS, o de 2002, no pós-11 de setembro, ou o de 2007, quando Vladimir Putin rompeu com a nova ordem pós-comunista da NATO e da UE, declarando que a Rússia jamais aceitaria a subalternização internacional para que a estavam a empurrar.
Dezoito anos depois de Putin ter voltado as costas ao Ocidente, a Conferência de Segurança e Defesa de 2025 vai também entrar para a história. Muitos analistas especulavam se se emularia o cenário de 1938, com o mundo a discutir o que fazer com as partes ou o todo da Ucrânia. Nada disso - porque isso ficou para os encontros das Arábias entre Keith Kellog (o enviado especial de Trump), Zelensky e Lavrov. A estrela de Munique foi o jovem vice-Presidente dos EUA, J. D. Vance, cujo discurso revelou, preto no branco, e de uma maneira bem mais articulada e de futuro do que a do seu chefe, a enorme fissura hoje reinante no velho eixo transatlântico ocidental.
O n.º 2 de Washington mostrou que há diferentes entendimentos sobre a questão da Ucrânia dos dois lados do oceano, criando um problema muito mais vasto do que o suposto retraimento americano, a provada ilegalidade de Putin ou a contabilidade de orçamentos militares. Segundo J. D. Vance, o grande perigo para a Europa não está em Moscovo, mas dentro dela própria. É um continente de multiculturalismo, globalismo, migrações incontroladas, guerrilhas identitárias e wokismo liberal, e de governos que fogem dos seus eleitorados, recusando ver que a democracia consiste em escutar o povo. A democracia significa já, portanto, diferentes coisas em Washington e em Bruxelas, Berlim ou Paris. Parece claro, disse Vance, contra quem a Europa se defende, mas não porquê. Ou seja, entre aqueles valores, contrários aos que movem o MAGA, e os valores da Rússia, pode até ser que os EUA declarem…a neutralidade. O corolário ficou expresso: tendo a NATO sido criada pela determinação americana em defender uma civilização ocidental comum, ela pode deixar de fazer sentido quando esses valores já não são comuns, nem partilhados.
Os EUA não querem a aniquilação da Europa; simplesmente, cansaram-se de pagar a defesa de um continente que se habituou a financiar o seu belo Estado social com o que poupava graças ao “guarda-chuva” nuclear americano. O vice de Donald Trump veio dizer que esse idílio acabou, e que quem se abrigava debaixo dele deve ceder o lugar a quem quer falar em nome do que verdadeiramente preocupa os povos europeus – no caso alemão, e segundo a nova leitura americana, nada menos do que a AfD! No fundo, já sabíamos disto. J. D. Vance limitou-se a pôr de parte as cortesias de estilo que ainda mascaravam o divórcio. E por isso, é tempo de luto nostálgico para os que vieram recordar as históricas amizades entre Reagan e Thatcher ou entre Bush e Blair.