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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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​A vertigem eleitoral portuguesa

19 mar, 2025 • Opinião de José Miguel Sardica


A democracia não deve temer eleições. Mantenho a premissa. Mas precisa de pensar de forma muito séria na vertigem eleitoral em que o país mergulhou.

Nenhuma democracia pode temer a realizações de eleições. É verdade que a sua existência não é garantia absoluta de que o regime que as organiza é democrático; mas um regime que não as realiza só pode ser autocrático ou coisa pior. Sucede que, em democracia, as constituições prescrevem os ritmos eleitorais, espaçando-os no tempo (quatro anos é a regra), para que governos, autarquias, presidentes ou demais poderes eleitos atuem no quadro de mandatos que conferem tempo e, portanto, estabilidade e previsibilidade para o exercício das funções e para a realização de obra.

Portugal vai ter, novamente, eleições legislativas. Perante o caso montado pelo, a despeito do, ou contra o primeiro-ministro, por causa da sua empresa, das suas avenças e das suas contraditórias ações e parcas explicações, cada força política fez o que era lógico que fizesse, em face do ocorrido desde março de 2024. O PS, o CH e as esquerdas votaram contra a moção de confiança apresentada pelo governo; a AD e a IL votaram a favor. E o presidente, tendo cimentado a doutrina para-constitucional de que a queda de um executivo implica dissolução, tratou de agendar novo escrutínio.

Duvido muito que nova ida popular às urnas seja clarificadora. Desde logo, há o realíssimo risco de as eleições legislativas assumirem o cariz de um plebiscito a Luís Montenegro, retirando do debate da campanha qualquer reflexão séria sobre o presente e o futuro português. Se o primeiro-ministro for reconduzido, não poderá proclamar-se impoluto só porque o povo o reconduziu; e a oposição já declarou que avançará com uma CPI. Se perder por pouco e a maioria parlamentar continuar à direita, só um despudorado volte-face permitiria a Montenegro montar uma geringonça, metendo na gaveta o “não é não” a um André Ventura que há um ano vocifera contra a AD. Se o PS ganhar e o PSD não lhe inviabilizar o governo, Pedro Nuno Santos irá trilhar um caminho de pedras, permanentemente sujeito ao voto de uma coligação negativa das direitas, que o fará cair na primeira curva orçamental (ou outra) da estrada. O empate ao centro, a vociferação nos extremos, a tibieza presidencial e o facto de uma futura dissolução só voltar a ser possível a 10 de março de 2026 – tudo se conjuga para a política portuguesa entrar num perigoso bloqueio.

A democracia não deve temer eleições. Mantenho a premissa. Mas precisa de pensar de forma muito séria na vertigem eleitoral em que o país mergulhou. Coloquemo-la em perspetiva comparada. Esta será a 19.ª eleição legislativa dos 50 anos decorridos entre 1975 e 2025, a uma média de 2,6 anos por governo. Acontece que nos últimos 20 anos (2005-2025), essa média desceu para 2,5 anos, nos últimos 10 anos para dois e, olhando as três eleições de 2022, 2024 e 2025, vamos a caminho de uma média de um ano de durações governamentais (tanto mais que o nó górdio da política portuguesa nos poderá, com grande probabilidade, levar para novas eleições… em 2026).

Por comparação com a atual III República, a I República teve, em 16 anos, oito eleições legislativas (média de dois anos por governo), e terminou em impasse entre os “bonzos” de António Maria da Silva e os “canhotos” de José Domingues dos Santos. E antes dela, a Monarquia, na sua fase terminal (1890-1910), tivera 14 eleições em 20 anos (com um governo a cada 1,4 anos), e terminara em impasse entre um bloco conservador de aflitos e um bloco radical de revolucionários. Estamos, em 2025, melhor do que a I República ou a Monarquia nos seus ocasos? Sim. Mas esta é a primeira vez na história da democracia, e a primeira vez desde 1905-1906 (!), que há eleições legislativas por dissolução parlamentar em anos seguidos (2024-2025). E os ocasos políticos dos regimes só se percebem bem… quando os ditos já sucumbiram!

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