20 jan, 2025
Foi dado assinalável relevo na comunicação social ao facto de pela primeira vez não ter sido convidado para a cerimónia de abertura do Ano Judicial um representante da Igreja Católica. Uma decisão que quebrou uma tradução de décadas e que se terá baseado no princípio da laicidade do Estado.
Poderá haver múltiplas razões de oportunidade que justifiquem a ausência de um convite desses em qualquer cerimónia oficial e também na de abertura do Ano Judicial. Não é certamente obrigatório que para uma qualquer cerimónia oficial seja convidado um representante da Igreja Católica. Mas o que não me parece de aceitar é que se invoque o princípio da laicidade do Estado (ou, mais rigorosamente, da não confessionalidade do Estado, pois é esta a designação usada no artigo 4.º da Lei da Liberdade Religiosa – Lei n.º 16/2001, de 22 de junho) para justificar a ausência desse convite.
É certo que as cerimónias oficiais devem respeitar esse princípio (assim o impõe expressamente o n.º 2 desse artigo 4.º) e, por isso, nessas cerimónias não deverá ser dada ao representante de alguma comunidade religiosa um destaque que seja equiparável ao de uma alta entidade do Estado, nem delas deverá constar algum ato de culto religioso. Mas a tal não obsta a presença desse representante como convidado.
A não confessionalidade do Estado não implica que ele ignore ou desvalorize o relevo histórico social e cultural da religião. A presença de autoridades religiosas em cerimónias oficiais de particular importância simboliza o reconhecimento desse relevo para a vida de muitas pessoas e para a sociedade em geral. O Estado não deve estar fechado sobre si, ignorando as instituições da sociedade civil, onde se incluem as religiosas. Com elas deve dialogar e colaborar.
Expressão clara da postura aberta, dialogante e cooperante que deve presidir ao relacionamento entre o Estado e as comunidades religiosas é a afirmação do princípio da cooperação entre um e outras que consta do artigo 5.º da referida Lei da Liberdade Religiosa: «O Estado cooperará com as igrejas e comunidades religiosas radicadas em Portugal, tendo em consideração a sua representatividade, com vista designadamente à promoção dos direitos humanos, do desenvolvimento integral de cada pessoas e dos valores da paz, da liberdade, da solidariedade e da tolerância». À luz deste princípio, o Estado não só não hostiliza a religião (como decorreria de uma mentalidade laicista, que desvirtua a autêntica laicidade, ou não confessionalidade), como não ignora o seu relevo pessoal, social e cultural. Esse relevo é reconhecido simbolicamente pela presença de representantes de comunidades religiosas em cerimónias oficiais.
Por isso mesmo, prevê a Lei do Protocolo do Estado (Lei n.º 40/2006, de 20 de agosto) que possam ser convidadas autoridades religiosas para cerimónias oficiais (no seu artigo 38.º), tal como outras entidades da sociedade civil (no seu artigo 39.º). Estatui esse artigo 38.º: «As autoridades religiosas, quando convidadas para cerimónias oficiais, recebem o tratamento adequado à dignidade e representatividade das funções que exercem, ordenando-se conforme a respetiva implantação na sociedade portuguesa».
Compreende-se, assim, que a muitos tenha surpreendido a quebra da tradição do convite para a cerimónia de abertura do Ano Judicial dirigido a um representante da Igreja Católica com a invocação do princípio da não confessionalidade do Estado. É certo que em tempos era dada a essa presença um destaque equiparável ao de altas entidades do Estado, o que não será conforme a esse princípio. Mas já o será a presença desse representante como qualquer outro convidado. Isso sucede com frequência em cerimónias de outros órgãos de soberania, desde logo do Parlamento (veja-se, por exemplo, a recente comemoração do cinquentenário do 25 de abril). Também tem sucedido em cerimónias de outros tribunais superiores.
Dir-se-á que a não confessionalidade do Estado e o princípio da não discriminação entre confissões religiosas (consignado no artigo 2.º, n.º 2, da Lei da Liberdade Religiosa) exigem que esse convite seja dirigido a outras comunidades religiosas, e não apenas à Igreja Católica. No entanto, qualquer dos preceitos legais acima citados alude à representatividade e implantação das várias comunidades religiosas na sociedade portuguesa. Por razões históricas e sociológicas, é notória a especial representatividade da Igreja Católica na sociedade portuguesa. Não sendo viável, por razões logísticas, a presença de representantes de várias comunidades religiosas numa cerimónia oficial, nada obsta a que seja convidado apenas uma autoridade da Igreja Católica, dada a especial representatividade desta na sociedade portuguesa. Mas sendo essa presença viável, também ela é, à luz daqueles princípios, de todo aconselhável. Isso já sucedeu em cerimónias da iniciativa do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa e é o que sucede habitualmente nas comemorações anuais do 25 de abril, para o que são convidados todos os membros da Comissão da Liberdade Religiosa, onde se incluem representantes de comunidades religiosas com alguma implantação em Portugal.