10 fev, 2025
A propósito de declarações de um político relativas à relação dos imigrantes com a cultura portuguesa, houve quem as contestasse dizendo que desses imigrantes só se pode pretender que respeitem a Constituição e as leis que nos regem, pois é só esse respeito que nos acomuna a nós portugueses, tão diferentes que somos nas ideias e nos hábitos a que aderimos.
Esta ideia de que só temos em comum a Constituição e as leis que nos regem, levada a sério e às suas últimas consequências (o que talvez até nem tenha sido intenção de quem a afirmou) põe em causa a própria existência de uma cultura portuguesa e, até mesmo, de uma nação portuguesa (só haveria um Estado, não uma nação).
Não pode ser apenas o direito positivo a cimentar aquela coesão social e sentimento de pertença comunitária que nos identificam como portugueses. Para essa coesão e esse sentimento contam uma memória comum que atravessa os séculos e um destino comum que queremos partilhar. Não se trata apenas de tradições gastronómicas e apoio a seleções desportivas. Está em causa, desde logo. a língua com que nos entendemos e tudo o que isso implica. Da cultura portuguesa não podem apagar-se as suas raízes cristãs e católicas, o que não significa que um não católico seja menos português. Uma cultura nacional não é algo de monolítico e estático, mas é bem real.
E que tem isto a ver com a integração dos imigrantes?
Essa integração não significa que cada imigrante, para além do respeito pelas leis que nos regem, deva aderir à cultura portuguesa e rejeitar a sua própria cultura de origem, segundo um modelo de assimilação. Devem ser aceites todas as expressões dessa cultura (incluindo as práticas e sinais de identificação religiosos) que não sejam objetivamente contrárias à dignidade humana (porque esta está acima das culturas e não se compadece com o relativismo). Mas também não se poderá falar em integração quando as comunidades imigrantes se fecham como num gueto, sem espaços comuns de convivência e diálogo com a comunidade do país de acolhimento. Foi esse modelo multiculturalista que Ângela Merkel considerou ter fracassado na Alemanha.
É, por isso, legítimo pretender, não que todos os imigrantes adiram à cultura portuguesa, mas certamente que a conheçam e respeitem. Do mesmo modo que os portugueses devem conhecer e respeitar a cultura de origem dos imigrantes que devem ser acolhidos não certamente como simples mão de obra economicamente necessária. Este diálogo de culturas é mutuamente enriquecedor, como o pode comprovar a história dos portugueses que se espalharam pelo mundo deixando um legado que perdura até hoje (quem, por exemplo, visite Goa e as suas igrejas pode comprová-lo).
Esta ideia (de que a abertura a outras culturas proporcionada pelas migrações é enriquecedora) é afirmada com ênfase na encíclica Fratelli tutti do Papa Francisco.
Nessa encíclica se afirma: «Uma pessoa e um povo só são fecundos se souberem criticamente integrar no seu seio a abertura aos outros» (n. 41). A globalização não deve uniformizar e destruir «a riqueza e singularidade de cada pessoa e de cada povo» (n. 100).
Mas uma cultura que se fecha pode sofrer de “esclerose”. «As várias culturas, cuja riqueza se foi criando ao longo dos séculos, devem ser salvaguardadas, para que o mundo não fique mais pobre»; «(…) porém, sem deixar de as estimular a que permitam surgir de si mesmas algo de novo no encontro com outras realidades» (n. 134). «Não me encontro com o outro se não possuo um substrato onde estou firme e enraizado, pois é a partir dele que posso acolher o dom do outro e oferecer-lhe algo de autêntico»; «cada qual ama e cuida, com particular responsabilidade, da sua terra e preocupa-se com o seu país, assim como deve amar e cuidar da própria casa» (n. 143).
Porém: «Ao olhar para si mesmo do ponto de vista do outro, de quem é diferente, cada um pode reconhecer nele as peculiaridades da sua própria pessoa e cultura, as suas riquezas, peculiaridades e limites»; «as outras culturas não constituem inimigos de quem seja preciso defender-se, mas reflexos distintos da riqueza inexaurível da vida humana» (n. 147); «uma sã abertura não ameaça a identidade, porque ao enriquecer-se com elementos doutros lugares, uma cultura viva não faz uma cópia nem mera repetição, mas integra as novidades, segundo modalidades próprias», o que provoca «o nascimento de uma nova síntese, que, em última análise, beneficia a todos» (n. 148).
Isto é assim, porque nenhum «povo ou cultura pode obter tudo de si mesmo» (n. 150).
Em conclusão: «Toda a cultura saudável é por natureza aberta e acolhedora, não estática» (n. 146). Está aqui a resposta do Papa Francisco aos receios de que se percam as riquezas das identidades nacionais e culturais (que ele de modo algum ignora ou despreza) com a convivência e diálogo, proporcionados pelas migrações, com outros povos e culturas