07 mar, 2025
Passados três anos, já muitos se esqueceram da notável onda de solidariedade para com o povo ucraniano que se gerou logo a seguir à invasão de que foi vítima, uma onda de solidariedade que levou muitos a fazer viagens até às fronteiras desse país e a abrir casas para acolher refugiados.
Uma recente nota da Comissão dos Episcopados da União Europeia (acessível, em várias línguas, em www.comece.eu), pelo contrário, vem recordar o sofrimento desse povo e afirmar a constante proximidade e solidariedade para com ele. Apela à União Europeia e seus Estados membros para que permaneçam unidos no seu compromisso de o apoiar. Afirma que o uso da força para modificar as fronteiras nacionais e os atos atrozes cometidos contra a população civil não são apenas injustificados, mas exigem que justiça seja feita. Afirma que a luta da Ucrânia pela paz e defesa da sua integridade territorial não é apenas uma luta pelo seu futuro, é decisiva para o destino de todo o continente europeu e de um mundo livre e democrático. Afirma que, para ser sustentável e justo, um futuro acordo de paz deve respeitar o direito internacional e conter eficazes garantias de segurança para evitar que o conflito se reacenda. Afirma, ainda, que o reforço da coesão social da Ucrânia exige a proteção dos direitos de todas as comunidades, incluindo a minoria russófona.
A propósito, não posso esquecer as ocasiões que tive de conhecer e ouvir colegas da comissão Justiça e Paz ucraniana. Impressionou-me a intransigência com que defendiam a necessidade de vencer a guerra contra o invasor russo incondicionalmente, «custe o que custar», sem negociações ou cedências, porque estas representariam sempre um “prémio para o infrator”. Salientavam eles também que os planos invasores de Putin não se restringem aos territórios já ocupados, estendem-se a todo o território ucraniano, que, confessadamente, considera parte da Rússia (para não falar num plano mais vasto de restabelecimento da antiga União Soviética, cujo desmembramento já afirmou lamentar como a maior tragédia dos tempos mais recentes).
Devo dizer que não me identificava inteiramente com essa intransigência (que, além do mais, levava a críticas severas aos apelos do Papa Francisco à busca incessante da paz através da diplomacia). Reconhecia a legítima defesa ucraniana perante a agressão russa, na linha do que afirma o Catecismo da Igreja Católica (n.º 2308). Mas também a importância de não desistir de alcançar a paz não necessariamente através de uma vitória incondicional (que se tornava cada vez mais utópica), mas de negociações e cedências que não teriam que representar necessariamente um “prémio para o infrator”. É também o Catecismo que afirma que condição da legitimidade de uma guerra é também a de que os males que acarreta (que se vão agravando com o seu prolongamento e com o uso de meios cada vez mais mortíferos) não sejam superiores aos males que pretende evitar (n.º 2309).
Todos concordávamos, porém que uma verdadeira paz há de ser uma paz justa e duradoura.
Assistimos agora a uma perspetiva de cessação desta guerra, que dura há três anos. Tenho pensado muito no que sentirão hoje esses meus colegas ucranianos. O fim dessa guerra, em si mesmo, é certamente de saudar. Mas eles também certamente pensarão que não se trata de uma paz justa. Pensarão que foram abandonados e traídos por um governo seu aliado, que a solidariedade para com eles em grande parte se esvaneceu e que poderão ter sido em vão todos os enormes sacrifícios até agora vividos pelo seu povo.
Desde logo porque até agora as negociações da suposta paz têm decorrido sem a presença de qualquer representante do seu governo, decorrem entre o governo agressor e o governo que os abandonou e traiu (o qual não tem pejo em afirmar os seus propósitos de extorquir valiosos recursos minerais ucranianos como compensação pela ajuda prestada até agora – propósito que parece suplantar qualquer verdadeiro desejo de uma paz justa).
Nenhuma preocupação se nota em não premiar o infrator, que violou de forma flagrante o direito internacional e a Carta das Nações Unidas, ao desencadear uma guerra de agressão. Não é só a Ucrânia que perde com isso, é a autoridade do direito internacional que fica em cheque. Qualquer potencial agressor pode esperar ser premiado como Putin.
Nenhuma preocupação se nota em evitar que Putin concretize, mais cedo ou mais tarde, o seu propósito de ocupar todo o território ucraniano. Já muitos observadores salientaram o exemplo histórico do acordo de Munique, que em 1938 reconheceu a ocupação alemã de uma parte do território da Checoslováquia: pensavam os contraentes que essa cedência evitaria o desencadear da guerra, mas ela teve o efeito contrário, precisamente porque se tratou de um “prémio ao infrator”.
A verdadeira paz não é apenas a ausência de guerra. Vem a propósito recordar o que na encíclica de São João XXIII se afirma sobre os pilares em que assenta a verdadeira paz e que são: a verdade, a justiça, a liberdade e a caridade. Sem esses pilares, não podemos falar numa paz autêntica.
E vem também a propósito o que afirma o Papa Francisco na encíclica Fratelli Tutti (no seu n.º 241) sobre o amor ao opressor (sim, porque o amor cristão não exclui o amor ao inimigo e o amor ao opressor). Mas amar o opressor não significa consentir que este continue a oprimir ou levá-lo a pensar que é aceitável o que faz; amar corretamente é procurar que ele deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano; a justiça é guardar a dignidade da vítima, uma dignidade que lhe foi dada por Deus; o perdão não anula as necessidades da justiça, reclama-as.
É deste modo que se constrói uma paz justa, aquela paz justa a que tem direito o povo ucraniano, que continua a merecer, hoje como desde há três anos, a nossa solidariedade.