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Pedro Vaz Patto
Opinião de Pedro Vaz Patto
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50 anos das primeiras eleições livres

24 abr, 2025 • Pedro Vaz Patto • Opinião de Pedro Vaz Patto


A consolidação da democracia como hoje a concebemos e vivemos em Portugal conheceu sérios obstáculos e para os superar foram decisivas essas eleições (de 25 de abril de 1976). Importa dar valor à possibilidade que temos, de nos pronunciar livremente sobre os destinos do nosso país.

Comemoram-se dentro de dias os cinquenta anos das primeiras eleições livres e com sufrágio universal da história de Portugal: as eleições para a assembleia que veio a aprovar a Constituição que, com sucessivas revisões, ainda hoje nos rege.

Na verdade, nenhuma das eleições anteriores, da monarquia constitucional da primeira República e do Estado Novo, foi verdadeira e simultaneamente, livre e universal.

Nem todos concordarão comigo, mas penso sinceramente que o júbilo e relevância associados a este cinquentenário são maiores do que os associados ao cinquentenário da revolução de 25 de abril que comemorámos no ano passado.

Digo isto porque nesse primeiro ano que se seguiu à revolução, e também depois das eleições para a Assembleia Constituinte, a consolidação da democracia como hoje a concebemos e vivemos em Portugal conheceu sérios obstáculos e para os superar foram decisivas essas eleições. Foram elas o acontecimento fundador da democracia em Portugal, num contexto em que era crescente a influência social e política de forças que rejeitavam o modelo daquela a que então se chamava redutivamente “democracia de tipo ocidental”, ou, segundo essas forças, “democracia burguesa”, por oposição à “democracia popular” (então vigente em países do leste da Europa). Ficou célebre a afirmação de Álvaro Cunhal, numa entrevista à jornalista italiana Oriana Fallaci, de que nunca haveria em Portugal uma democracia parlamentar.

Nessas eleições de 1975, eu ainda não tinha idade para votar, mas recordo-me bem de as seguir com o vivo interesse próprio dos adolescentes e jovens da altura. Recordo-me que setores com alguma influência no Movimento das Forças Armadas não valorizavam essas eleições e chegavam mesmo a apelar à abstenção, alegando que o povo, particularmente o do Norte do país, não estava devidamente preparado (queriam dizer: não estava devidamente doutrinado).

Apesar desses apelos e do clima de grande instabilidade e incerteza que então se vivia, a participação nessas eleições atingiu cerca de 92%, percentagem que nunca voltou a repetir-se, até hoje, em eleições portuguesas. Também me recordo bem das imagens de pessoas aguardando pacientemente em longas filas de espera a sua vez de votar (o que muitos faziam pela primeira vez).

Essa participação foi uma eloquente resposta de adesão do povo à tal “democracia de tipo ocidental”. O contraste com os elevados níveis de abstenção que se têm registado nas mais recentes eleições (abstenção que até se nota maisnos jovens) é motivo de reflexão: muitas vezes só valorizamos os bens a que temos acesso quando os recebemos pela primeira vez ou quando os perdemos, e não quando eles se tornaram habituais. Mas devemos reagir a essa tendência.

Importa dar valor à possibilidade que temos, de nos pronunciar livremente sobre os destinos do nosso país e que a alternância entre diferentes propostas de governo possa ocorrer pacificamente. São muitos os países privados dessa possibilidade e onde a consolidação das instituições democráticas espera ainda melhores dias.

A propósito, tenho acompanhado a situação contrastante de dois países nossos irmãos de língua portuguesa: Cabo Verde, por um lado, onde essa alternância tem ocorrido com normalidade exemplar no contexto africano, e Moçambique, por outro lado, onde as últimas eleições foram marcadas por fraudes destinadas a impedir essa alternância, com a consequente reação de rejeição popular dos resultados e a violenta repressão dessa reação.

Não podemos ignorar, por outro lado, a tendência que hoje se evidencia cada vez mais em muitos países, precisamente nos mais poderosos (até nos Estados Unidos, um país historicamente pioneiro na institucionalização da democracia) de reforço de um autoritarismo que assume formas diversificadas. Por vezes, com base na regra da maioria. Mas a democracia não decorre apenas da regra da maioria, exige o respeito pelos direitos humanos e pelas regras próprias do Estado de Direito. São essas regras que evitam a absolutização de qualquer poder (mesmo o que se baseia na regra da maioria) e nunca fecham a porta à possibilidade de alternância.

É célebre a afirmação de Wiston Churchill, segundo o qual a democracia será certamente um regime imperfeito, mas ainda não se inventou outro melhor.

É também esse o princípio claramente acolhido pela doutrina social da Igreja, sobretudo desde uma histórica mensagem de Pio XII, do Natal de 1944 (durante a Segunda Guerra Mundial, pois), por vezes qualificado como de “batismo” da democracia (ver site Vaticano). Mas nela também se clarifica o que distingue uma sã democracia.

Nela se proclama o princípio personalista que funda essa sã democracia: a pessoa humana «(…), longe de ser o objeto e um elemento passivo da vida social, deve antes ser e permanecer, o seu sujeito, fundamento e fim»

E se afirma que para uma correta visão da democracia, há que ter presente a distinção entre “povo” e “massa”: «O povo vive e move-se por si próprio, a massa é, por si, inerte e só pode ser movida de fora. O povo viva da plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais – no seu lugar e à sua maneira – é uma pessoa consciente das suas responsabilidades e das suas convicções. A massa, pelo contrário, espera um impulso de fora, jogo fácil nas mãos de quem quer que explore os seus instintos ou impressões, pronta a seguir, à vez, hoje uma bandeira, amanhã outra».Esta é uma distinção particularmente atual, como antídoto contra o populismo.

E é também atual outra ideia-força dessa mensagem: «Uma sã democracia, fundada sobre os imutáveis princípios da lei natural e da verdade revelada, será resolutamente contrária àquela corrupção que atribui à legislação do Estado um poder sem travões nem limites, que faz também do regime democrático, apesar das aparências contrárias mas vãs, um puro e simples sistema de absolutismo».

São, pois, estes os motivos porque entendo que devemos celebrar com grande júbilo o cinquentenário das eleições de 25 de abril de 1975, um passo no sentido da construção de uma sã democracia.


* Pedro Vaz Patto, Juiz, Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz

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