Siga-nos no Whatsapp
Vidas Invisíveis
Em que situações se pode retirar um filho aos pais? Que mecanismos de ajuda existem? Como melhorar o sistema de prevenção e cuidado? São algumas das questões a debater no Vidas Invisíveis, sobre a realidade do acolhimento de crianças e jovens em risco em Portugal. Este é um podcast Renascença em parceria com a Associação CANDEIA, com produção e apresentação de Ângela Roque, sonorização de Beatriz Garcia e imagem gráfica de Rodrigo Machado. Um novo episódio todas as quartas-feiras.
A+ / A-
Arquivo
Uma casa de acolhimento pode ser um lar a sério?
Ouça o podcast Vidas Invisíveis

Vidas Invisíveis

Uma casa de acolhimento pode ser um lar a sério?

19 mar, 2025 • Ângela Roque


“Há crianças que nunca se adaptam”, conta Silvina Garcia, de 22 anos, que já viveu numa instituição. No seu caso a experiência “foi muito boa”, apesar da intervenção familiar tardia, mas defende que deve haver mais acompanhamento na transição para a vida adulta. Para Vera Boa Fé, da Fundação O Século, é preciso “desmistificar” o que significa viver numa casa de acolhimento, onde a rotina “é idêntica à de uma família”.

Como é o dia a dia numa casa de acolhimento? Quem é acolhido consegue sentir-se em casa? Para além das dificuldades, é possível crescer em harmonia? Há histórias felizes para contar?

No episódio 4 do podcast Vidas Invisíveis ouvimos o testemunho de uma jovem ex-acolhida. Silvina Garcia de 22 anos, começa por falar da “boa experiência” que teve no Lar Maria Droste, em Lisboa, que recebe crianças retiradas aos pais por ordem judicial. Foi para lá viver há seis anos – tinha então 16 – com três irmãs, uma delas gémea, e sentiu sempre que aquela era a sua “casa”.

Já segue a Informação da Renascença no WhatsApp? É só clicar aqui

“Eu tive uma experiência ótima no acolhimento. Eu senti mesmo que éramos uma família”, conta.

Vera Boa Fé, técnica na Casa das Conchas, da Fundação O Século, diz que “é uma honra poder trabalhar com estes miúdos, estar com eles diariamente”. E fala do esforço que as instituições fazem para os ajudar e combater o medo com que muitos entram.

“Tentamos que se sintam em casa e minimizar os traumas - porque há vários, físicos e emocionais - que ficam de um acolhimento, para que quando saem deem este testemunho, de que se sentiram cuidados e respeitados nos seus direitos e deveres”.

Mas, como é a rotina diária numa instituição? “É idêntica à de uma família, desde o levantar à higiene, as refeições, o levar à escola, acompanhar e trazer da escola, levar às atividades extracurriculares, às consultas, fazer todo este acompanhamento até ao último pormenor do dia, que é vestir o pijama, lavar os dentes, contar uma história e adormecer”.

“Somos programados para amar os nossos pais”

Apesar da sua “boa experiência” na instituição onde esteve, Silvina sabe que “há muitos jovens e muitas crianças que não se adaptam ao acolhimento. Até o dia em que saem, não se adaptam”. E fala do estigma que ainda existe em relação às instituições.

“Quando entramos temos medo! Porque a maior parte das pessoas pensa que aquele é um lugar mau, que fomos para lá porque nos portámos mal, ou que somos maltratados. Confundem muito com casa de correção. Mas não é nada disso, as pessoas têm mesmo uma ideia super errada!”.

Vera Boa Fé conhece reações idênticas. “Isto choca-me! É raro um miúdo que seja acolhido, pelo menos ali na Casa das Conchas, que não passe esta mensagem, ‘estou aqui porque me portei mal’. E isso não é verdade”.

O mais comum, diz, é estas crianças sentirem-se culpadas, por isso, “o primeiro grande desafio que temos numa casa de acolhimento é desmistificar, para que eles sintam que a responsabilidade de estarem ali não é deles”.

“Os jovens vão para um centro educativo porque se portam mal, porque cometem crimes. As crianças e os jovens que vão para uma casa de acolhimento não é porque se portaram mal, é porque alguém se portou mal com eles. Nem que seja o próprio Estado, ou a comunidade que não apoiou nem teve intervenção em tempo útil. Não foram eles!”.

Mas, Silvina lembra que não é fácil para uma criança ver a realidade nesses termos. “Mesmo quando os jovens são acolhidos e não há condições de voltarem para os pais, há muitos que tomam a decisão de aos 18 anos voltarem, porque são pais! Nós somos programados para amar os nossos pais, não vamos achar que a culpa é deles”.

“Não é à toa que uma grande percentagem de sem-abrigo em Portugal são (jovens) ex-acolhidos”

Para Silvina Garcia falta acompanhamento qaundo se atinge a maioridade. “Eu sou um caso desses”. Em 2020 saiu do lar. Hoje percebe que errou. "É uma decisão de muita responsabilidade para ser tomada aos 18 anos. O que me influenciou foi o que influencia todos os jovens, foi esta questão da liberdade, a rebeldia de querer sair, querer estar mais tempo com o namorado, com os amigos”.

“Tive uma experiência ótima no acolhimento, e saí sem pensar. Hoje em dia penso em regressar à autonomia, até porque hoje há a lei que permite que possamos mudar de ideias e voltar, e já penso nisso”.

Defende, por isso, que devia haver “um acompanhamento maior no pós-acolhimento, se calhar durante um ano, de forma mais permanente, para se ter a certeza da decisão”. E deixa um alerta: “Não é à toa que uma grande percentagem de sem-abrigo em Portugal são (jovens) ex-acolhidos. É porque não foram devidamente acompanhados nesse pós-acolhimento”.

Vera Boa Fé explica que para cada criança acolhida é desenhado um projeto de vida, e a partir dos 16 anos se quiserem podem ir para um apartamento de autonomia.

“Quando já se sabe atempadamente que a família não será a resposta, nem a adoção nem o apadrinhamento civil, a medida a ser proposta e trabalhada é a da autonomia”. Mas é condição obrigatória trabalharem ou estudarem. "Não podem estar lá sem ocupação, isso está delineado no projeto de vida deles”.

Já nos apartamentos – no caso da Fundação O Século têm três, dois em Carnaxide e um em Cascais, com 10 jovens no total – não ficam sozinhos. “Há uma equipa que trabalha com eles. Vivem com outros jovens e são acompanhados”.

Sendo uma ajuda importante, face à atual crise da habitação, a ideia é que “consigam uma independência para que depois possam sair, ir para as suas casas e ganhar asas, dando lugar a outros jovens”.

A viver de novo com a mãe e com a irmã mais nova, Silvina sonha agora com a entrada na faculdade, em “educação social, para seguir esta área do acolhimento. Eu quero ajudar. E gostava também de ter a minha família e a minha autonomia”.

“Sou acompanhada, de há um ano para cá, por uma associação que é a Terra dos Sonhos, que me ajuda imenso na parte da autonomia, do trabalho, de qualquer coisa de saúde. E nunca me desliguei do acolhimento, criei ligações incríveis. Mesmo as minhas irmãs têm pessoas incríveis na vida delas! Portanto, apesar de eu não ter tomado a decisão certa (aos 18 anos), o acolhimento trouxe-me imensa coisa boa”.

Vera Boa Fé diz que há muitos “exemplos felizes”, como o de Silvina, e sublinha o importante papel que muitas associações da sociedade civil desempenham, ao complementar o trabalho das instituições de acolhimento. “Falamos da associação Candeia, da Terra dos Sonhos, e de vários parceiros, pessoas, associações que são invisíveis, mas que se não fossem eles, não conseguiríamos fazer o trabalho que fazemos com estas crianças e jovens”.

“Se fosse só com o Estado, se calhar muitas instituições já teriam fechado portas. E não falo só da questão financeira, falo de tudo. Porque tal como nós pegamos na nossa família e nos nossos filhos e vamos de férias, estes miúdos também precisam de sair dali e de ir de férias. E a Candeia, por exemplo, faz isso, tal como a Terra dos Sonhos, com todo o tipo de experiências profissionais que proporciona”.

Estas associações e voluntários tambpem deviam ser mais ouvidos nos processos e “por quem decide a vida destas crianças, porque conhecem mais estes jovens do que propriamente o senhor juiz, a técnica que faz assessoria ao tribunal ou a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. E estas pessoas não são ouvidas”.

O Vidas Invisíveis é um podcast Renascença em parceria com a Associação Candeia, sobre o acolhimento de crianças e jovens em risco, com novos episódios todas as quartas-feiras.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.