26 jun, 2024 - 22:30 • Hugo Tavares da Silva
Veja também:
As meias mal escondem as caneleiras que não escondem as canelas. Os pés, como se fossem mãos, afagam a bola. O corpo balança como uma serpentina na hora de ponta de uma ventania. A barba é de lenda que não quer saber. Jogar futebol é um acaso, ele podia fazer tudo. Khvicha Kvaratskhelia é o ’10’ (por acaso até é o ‘7’, mas é o 10 na alma), o tal a quem chamam “Kvaradona” em Nápoles e bastaria essa frase para explicarmos o futebolista. Bastaram 93 segundos para ele meter a bola na baliza de Portugal.
Os portugueses parece que nunca quiseram muito saber deste jogo, o que parece uma coisa hedionda de se escrever. Mas convocar a desconcentração e o facilitismo é justo. O ambiente era bom, a harmonia estava lá e os que mereciam jogar e não jogavam jogaram. Mas a defensiva Geórgia, que tem o povo nas ruas para colar o futuro aos ideais europeus, tornou-se ainda mais defensiva. A linha de cinco prometia fazer suar a rapaziada de azul-azulejo.
Cristiano Ronaldo, o capitão que não descansa porque há golos para meter e recordes para bater, mostrou cedo que estava ansioso e desatou num abrir de braços pouco animador. Com João Neves e João Palhinha não se antecipava a criatividade necessária para furar uma selva de pernas de homens sonhadores. E nestas coisas dos sonhos convém dar troco com orgulho e responsabilidade (e o lado do coração que trata dessas questões do coração não correspondeu).
É que Willy Sagnol, o selecionador georgiano que jogou no França-Portugal do Mundial 2006, avisara na véspera. É muito bom estar ali, sim senhor, é a primeira aparição num palco destes como país independente (faziam parte da União Soviética), mas a natureza humana empurra-nos para mais. E mais era ganhar a Portugal, caso quisessem estar mais uns tempos pela Alemanha.
E foi isso mesmo que aconteceu.
António Silva fez um daqueles jogos que substituem os despertadores durante algumas noites. Com o relógio a aproximar-se dos 90 segundos, o jovem defesa meteu a bola nos pés de Georges Mikautadze, que descobriu mais à frente Kvaratskhelia. O mago meteu-se no meio dos portugueses e, indiferente ao ruído e à certeza de um Euro 2024 abaixo das expectativas, atirou uma bala para a baliza de Diogo Costa. Foi um belo golo.
Mais tarde, António Silva voltou a pecar. Uma abordagem completamente negligente levou-o a cometer um penálti que o VAR não deixou passar. Dois-zero, por Mikautadze, é o melhor marcador do torneio, com três golos. Os portugueses estavam nervosos e sem os pesos pesados lá dentro, pelo menos as sombras que tornam Cristiano menos sombra.
Roberto Martínez investiu num regresso aos três centrais, com Silva, Danilo Pereira e Gonçalo Inácio, também errante em alguns duelos. A equipa parecia vestir, por baixo da pele, a dúvida, a corrosiva dúvida. Mais à frente estavam João Neves e o bom João Palhinha. Depois, Pedro Neto agitou pela esquerda. Diogo Dalot jogou pela direita. João Félix, a procurar coisas que não o procuram a ele, e Francisco Conceição apoiavam o capitão.
Portugal tentou semear e colher as virtudes da paciência. A bola movia-se, mas a estrutura georgiana nem por isso. Faltava jogo por dentro, jogo gingão. Como tem sido habitual neste Europeu, Giorgi Kochorashvili surgiu a um nível impecável, interessante com a bola no pé, rotativo e comprometido, como todos. Mais atrás estava o herói dos heróis, um daqueles que vai ter o nome numa praça do país: Giorgi Mamardashvili. Defendeu tudo e mais alguma coisa.
A criatividade era o problema. Os portugueses têm essa coisa de sentir dificuldades em furar blocos baixos, defesas que estacionam um pouco à frente do guarda-redes, com uma densidade populacional quase perversa. A posse de bola andou acima dos 70%. Para quê? Pouco. A ansiedade dominou o espírito dos campeões europeus de 2016, tidos como favoritos para este Campeonato da Europa e que agora, mesmo sem a equipa titular, veem colocado em cima deles um ponto de interrogação.
Cristiano levou um amarelo depois de pedir uma grande penalidade, que até parecia, tal foi o agarrão na camisola. Félix começou a tentar o drible, as viragens que o caracterizam num terreno onde cabia apenas uma cabine telefónica e até a rematar de longe. Palhinha, idem. E até Dalot tentaria de longe, valeria Mamardashvili.
Neto e Conceição tentavam forçar pela linha, à procura dos cruzamentos. A previsibilidade como jeito de viver (zero movimentos que transtornam a vida alheia, zero coragem ou ideias). Percebeu-se cedo que seria um jogo dramático, pela falta de genica, mas principalmente pelo desligamento entre todos e, claro, pelo pouco espaço para jogar. Os paraísos turcos não acontecem todos os dias…
No descanso, ou seja quando estava 1-0 ainda, Rúben Neves entrou por Palhinha. Talvez fosse tempo de começar a pensar nos oitavos. Lasha Dvali negou, em mergulho, um golo a Cristiano, que não escondia a irritação, afogando assim aquele feeling de generosidade que andamos todos a propagar, ainda que não tenha perdido as valências como pivot.
“Kvaradona”, um cidadão de Tiblissi, continuou a inventar coisas, fez o vento assobiar, ganhou faltas, ofereceu aos colegas tempo e deu à nação, em suspenso perante a televisão, um motivo ou outro para suspirar. É um artista e finalmente acordou, e logo perante o ídolo de infância (há 11 anos, Cristiano inaugurou a academia do Dinamo Tbilisi e lá estava um tal de Khvicha). Seria considerado o melhor em campo. Os georgianos iam saindo aqui e ali com alguma qualidade, quiçá faltou a palavra robusta de Pepe.
O selecionador português lançou aos 66’ Nélson Semedo e Gonçalo Ramos (por Ronaldo) e aos 75’ Matheus Nunes e Diogo Jota. Soava a protocolo. Havia um plano. O espanhol não reagiu para virar o jogo, mas sim para dar minutos ao grupo. A derrota é apenas um rabisco no guião.
Os estóicos georgianos, premiados contra o algum infortúnio lusitano, manteriam a baliza a zero e garantiram, quando o árbitro apitou pela última vez, o apuramento para os oitavos de final. É a primeira presença num torneio desta envergadura. Sagnol sabia o que dizia. As ruas do país, tal como as bancadas do estádio do Schalke 04 e a garganta dos protagonistas, encheram-se de uma bebedeira de alegria das boas. Emocionante. Agora, segue-se a Espanha para esta aventureira Geórgia. Depois, quem sabe, a Alemanha ou a Dinamarca. Mais tarde, poderá reeditar-se a jogatana que esta noite aconteceu em Gelsenkirchen.
Para Portugal, segue-se nos ‘oitavos’ a Eslovénia, a tal que encantou em 2000 com Zahovic, e as dúvidas. Será que Martínez se arrependeu da revolução? O grupo sairá beliscado? Cristiano, até aqui elogiado pela postura solidária, surgirá mais ansioso com os eslovenos para meter o seu golo? E os três centrais, ainda contam para o selecionador? Palhinha e os três centrais, afinal, é fórmula que está a valer?
Resta esperar.