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FA Cup

Fugiu da guerra na Bósnia e quando chegou ao Plymouth falou sobre "coragem". Agora, eliminou o Liverpool

10 fev, 2025 - 12:20 • Hugo Tavares da Silva

Substituiu Rooney, tenta descolar da última posição no Championship e tem no verbo e na sua história de refugiado a narrativa perfeita para dar uma vida nova ao Plymouth Argyle.

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Sábado, 9 de maio de 1992. Com golos de Michael Thomas (sim, esse) e Ian Rush, que jogava ao lado de Dean Saunders (sim, esse), o Liverpool de Graeme Souness (sim, esse) conquistou a Taça de Inglaterra contra o Sunderland.

Se a luz do céu estava mais jubilosa e radiante para os lados de Anfield, em Bihac, na Bósnia, a história era outra. Já estalara a guerra nos Balcãs e a família de Miron Muslic, o treinador do Plymouth Argyle que agora eliminou o Liverpool na FA Cup, teve de fugir de um dia para o outro.

Levaram-se apenas as coisas que cabiam nas mãos. Pouco mais de um mês depois, a cidade foi cercada pelos sérvios e assim ficaria durante três anos.

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Muslic conversou sobre isto com a BBC há poucos dias, ainda antes de espantar o mundo ao eliminar os reds, os senhores que prometem ganhar mais uma Premier League sem muito esforço. O Plymouth Argyle, com um penálti de Ryan Hardie aos 53’, bateu a equipa de Arne Slot no Home Park, com Diogo Jota em campo.

O Plymouth está em último lugar no Championship, a segunda divisão inglesa, mas tem sido falado na imprensa porque, primeiro, Wayne Rooney pegou na equipa e não correu nada bem. E, depois, porque o substituto era um senhor nascido na Bósnia em 1982 com nacionalidade austríaca, pois ele, os pais e a irmã mudaram-se para Innsbruck para fugir da guerra civil, com o estatuto de refugiados.

Foi naquele país que Muslic viveu a ressaca da fuga da pólvora e das explosões e dos medos. Tinha apenas nove anos quando deixou o seu país. Foi futebolista em vários clubes austríacos e ali começou como treinador adjunto, no Union Weibkirchen. Prosseguiu a carreira no SV Ried e finalmente ganhou o direito a controlar as mensagens e as opções táticas no Floridsdorfer e, mais tarde, no SV Ried, um regresso. Daí voou para a Bélgica, para o Cercle Brugge, que levou à Liga Conferência.

Em janeiro, mudou-se para Plymouth e a primeira palestra foi um espectáculo tremendo. Parecia uma ted talk cheia de humanidade e com um guião, pendurado numa voz que serena, que faz acreditar.

“Nós tivemos dificuldades a vida toda, e isto faz parte da minha jornada, é por isso que estou sempre muito otimista e muito positivo”, confessou à BBC. Por isso, perder um jogo no futebol está longe de ser um drama.

“É essa a mensagem que quero passar aos jogadores, que a vida é uma luta com surpresas bonitas, e que há sempre algo por que vale a pena lutar.”

A palestra especial de Muslic

O Plymouth vive tempos belos. Depois de dois empates e de uma pesada goleada em casa com o Burnley, o clube venceu finalmente e logo contra um candidato à subida, o West Bromwich. Agora, os 'Pilgrims', fundados em 1886, eliminaram o Liverpool na quarta ronda da FA Cup e confirmam que fevereiro mais parece um musical feliz.

Segue-se mais um jogo em casa contra o Millwall, para encurtar as distâncias e fugir à despromoção. São quatro os pontos que separam o Plymouth do Hull City, o primeiro clube acima da linha de água.

Talvez o que agora vemos tenha começado naquela palestra de Muslic, a debutante palestra do treinador de 42 anos, nascido na Bósnia e que fugiu da guerra.

Começou por elogiar Kevin Nancekivell, o treinador que tem saltado de adjunto para principal para adjunto, no fundo para ajudar o clube em momentos de aperto. “Isso é coragem”, definiu Muslic, que também deixou algums palavras para o capitão Joe Edwards, lesionado na altura.

Depois, o bósnio refletiu sobre as dificuldades, sobre os tempos que foram árduos e angustiantes até ali. E começou a puxá-los para o seu lado. “Eles [imprensa e adeptos] podem destruir-nos todos os dias, em todos os jogos. É por isso que é difícil ser um futebolista profissional. É por isso que estamos aqui, porque é difícil.”

Talvez os jogadores não soubessem quem tinham perante eles, talvez fosse apenas o treinador do Cercle Brugge que ia cumprindo uma época demasiado humilde. Mas o som do silêncio tornou-se magia, as pausas, a atenção. O pacote estava lá todo. Havia uma carga especial naquele auditório.

“Nada, nas próximas semanas, vai ser fácil para nós. Sem problema”, continuou, imaginando a famosa ‘dog fight’, como chamam por lá às lutas pela manuntenção. “Vamos enfrentar este desafio com compromisso, com coração, com união (...).” A forma como traça o diagnóstico e diz, mais do que uma vez, “no problem” tem o doce sabor de um abraço desejado.

“Agressivos, intensos, corajosos. Serão estes os nossos princípios todos os dias”, vaticinou. “Este não são ingredientes para ganharmos um concurso de beleza, mas sim jogos de futebol.” No fundo, Muslic pediu aos jogadores que tornem muito desagradável para os adversários jogarem contra eles. Prometeu ideias, milhares, e ajudar os futebolistas. Como ponto de partida, “simplicidade e clareza”.

E deixou uma promessa àquele grupo de homens desanimados e questionadores das suas capacidades. “Podemos julgar-vos, avaliar, dar feedback, podemos criticar-vos. Vocês são jogadores de futebol, será apenas para desenvolver-vos e apoiar-vos. Serei direto e honesto na minha comunicação. Tenho de ser, é o meu direito como treinador, mas como seres humanos vocês são intocáveis. Nunca vou cruzar essa linha, dou-vos a minha palavra”.

A palestra circulou pelo mundo fora e gerou um impacto muito positivo, havendo até pessoas a escrever que agora apoiavam o Plymouth. Ah, a força do verbo.

“Estou muito ansioso por tudo o que está à nossa frente e vamos enfrentá-lo com um coração grande, convicção, coragem e tudo ficará bem”, garantiu.

Para já, os sorrisos voltaram aos rostos daquela gente. Quem sabe o que se segue…

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