21 mar, 2019 - 07:47 • Mia Alberti em Cúcuta, Colômbia
O cenário no posto fronteiriço da ponte Simón Bolivar é uma algazarra constante, entre os gritos dos vendedores de rua às buzinas de inúmeras motas e táxis que por ali vão buscando os viajantes. Estima-se que mais de 50 mil pessoas cheguem todos os dias a esta cidade colombiana vindos da Venezuela.
Mesmo depois do fecho das fronteiras em fevereiro, milhares continuam a passar ilegalmente procurando aqui uma vida melhor.
Pastora Salas e Angélica Alonso vieram para a Colômbia há nove e três meses, respetivamente. Deixaram a Venezuela para procurar trabalho e enviar dinheiro e comida para os filhos que deixaram para trás.
Mas o que aqui encontraram não foi o paraíso que esperavam. Vivem com as vendas ambulantes de tabaco ou rebuçados, e muitas vezes não têm onde dormir.
“Se tivermos que dormir no chão, dormimos no chão”, conta Angélica. “Temos que ser guerreiras, pela nossa família”, diz, mostrando o sítio onde irá dormir: no chão à frente de uma loja. Sem colchão, sem nada, na pedra.
“Se não temos emprego, se as vendas não são o suficiente, então que outra opção temos senão dormir na rua?”, diz Pastora.
A venezuelana conta à Renascença que “era feliz” na Venezuela, antes da crise, quando trabalhava como cozinheira. “Tinha a minha própria casa, o meu jardim”, diz.
“Depois perdi o emprego, vendi a casa, depois vendi os móveis, o sofá, o frigorífico, tudo o que tinha para dar de comer aos meus filhos. E quando já não consegui mais, vim para aqui”, conta.
Pastora e Angélica não são as únicas a dormir neste passeio. Dezenas de outros venezuelanos descansam encostados à loja fechada. Os seus filhos brincam descalços, na calçada em frente.
Onde está a ajuda?
A crise migratória de venezuelanos é a maior de sempre na história da América Latina. É estimado que mais de dois milhões de pessoas abandonaram o país. Metade delas vieram para a Colômbia.
Mas a magnitude da crise não corresponde à resposta das autoridades na Colômbia, principalmente na cidade fronteiriça de Cúcuta.
Aqui não há sequer um campo de refugiados, um sistema de acolhimento, uma casa-de-banho, uma cama, um teto. Em mais de dois anos de crise migratória, os governos centrais e locais não montaram nenhuma infraestrutura de apoio às pessoas, desesperadas e com fome, que aqui chegam aos montes.
O Presidente da Câmara de Cúcuta, César Rojas, admite que “não existe uma política de habitação e alojamento para os migrantes” na cidade e que o que mais o preocupa é “a falta de oportunidades”.
“[Os venezuelanos] ficam aqui porque conseguem arranjar trabalho nas ruas, a vender coisas". Mas, diz Rojas, arranjar um emprego fixo é extremamente difícil.
Por um lado porque a maior parte dos migrantes não tem passaportes ou documentos legais e depois porque Cúcuta tem a segunda mais alta taxa de desemprego na Colômbia. Em 2018 a taxa subiu para 15%, um índice superior à média nacional de 12% de desempregados, de acordo com o Departamento Administrativo Nacional de Estatísticas (DANE).
César Rojas garante que a cidade está a tentar ajudar os venezuelanos com apoio à educação para as crianças, mas que “falta ajuda do Governo central”. “Na situação que estamos a viver desde 2015, os recursos municipais não são suficientes”, diz.
Órgãos internacionais como a Cruz Vermelha ou a Agência das Nações Unidas para os Refugiados também não montaram qualquer infraestrutura de apoio (como fizeram na fronteira com o Brasil, por exemplo). No entanto, têm ajudado, com donativos e recursos, as organizações locais, a única ajuda com que os venezuelanos podem contar verdadeiramente.
Sem caridade, fome certa
É o caso da Casa de Paso da Divina Providência, uma paróquia católica a poucos metros da ponte Simon Bolívar. O pequeno espaço comunitário tornou-se numa cantina gigante e um dos poucos sítios onde os migrantes podem comer.
O Estado não disponibilizou nenhuma sopa dos pobres ou banco alimentar, apesar da enorme necessidade. Na Casa de Paso, por baixo de tendas e balcões improvisados, voluntários servem mais de seis mil refeições quentes todos os dias. Um esforço monumental para a pequena associação.
“Recebemos donativos e temos ajuda de muitas pessoas que, de boa vontade, praticam a caridade e vêm ajudar os mais pobres”, conta à Renascença D. Vítor Ochoa, bispo de Cúcuta.
A organização religiosa recebe apoios do Programa Alimentar Mundial, da ONU e da Cáritas, entre outros. “Atendemos aqui os irmãos venezuelanos que têm dificuldades com uma refeição quente todos os dias”, conta Ochoa. “É um trabalho de caridade da Igreja Católica”.
A falta de medicamentos e a fome são os principais motivos que trouxeram estes venezuelanos até aqui. O atual salário mínimo corresponde a pouco mais que 15 euros e um quilo de queijo é o equivalente a mais de metade disso.
Na entrada da Casa de Paso, voluntários aguentam a multidão de gente à espera para entrar, deixando passar pequenos grupos de cada vez. No pátio, grandes toldos laranjas dão sombra às várias mesas corridas.
Ali os mais pequenos carregam os seus próprios pratos e copos de plástico, outros adormeceram sob o calor quente colombiano. Mães amamentam os filhos e avós aproveitam para descansar os pés.
“Se este lugar não existisse, não se o que faria”, conta Jessica Victoria, de 30 anos. Tem a cara e os braços magros, onde carrega o seu filho mais novo, ainda bebé. Ela e o marido viviam no estado venezuelano de Valencia e deixaram tudo “para encontrar uma vida melhor”. Jessica relembra a falta de comida e medicamentos.
“Sempre quis vir para a Colômbia, as pessoas falavam muito bem do país, que era melhor, que adoravam a comida, então pensámos: vamos pra lá”, conta.
Mas a chegada “foi diferente”: “eu imaginava um paraíso”. “Mas quando cheguei fiquei desolada. Ainda aqui estamos mas não estamos em casa. Eu durmo no chão. Às vezes temos comida às vezes não”, diz.
"Não me arrependo"
“Existe um total vazio onde deviam estar os apoios do Estado”, diz Franklin Dias, coordenador de projeto da Associação Scalabrini. Esta organização católica oferece o único centro de acolhimento de migrantes em todo a região. Mas entre os seus dois centros há apenas 230 camas.
Na rua que dá acesso ao centro, várias pessoas dormem no passeio de betão esburacado, na esperança de conseguir uma vaga.
Franklin explica à Renascença que, apesar da Colômbia ter lidado historicamente com várias crises migratórias, não existe “uma clara política de migração” e que o país “nunca tinha recebido tantos Venezuelanos”.
No ano passado o Governo colombiano anunciou um orçamento de 400 mil milhões de pesos (aproximadamente 113 mil euros) para ajudar os migrantes venezuelanos. Mas até agora a teoria não passou à prática.
Enquanto isso muitos venezuelanos como Pastora e Angelica vão continuar a depender das poucas vendas que fazem e de instituições como a de Franklin. Mesmo a dormir no chão, dizem, a vida na Colômbia é melhor do que na Venezuela. O que deixa apenas à imaginação o quão pior pode ser.
“Eu não me arrependo”, conta Angélica. “Aqui encontro coisas para a minha família que não há lá”.
Pastora concorda: “aqui ainda faço algum dinheiro, compro alguma comida e envio para o meu filho”. “Não, não me arrependo”.
Sem arrependimentos, Pastora e Angelica voltam ao trabalho, misturando-se na mescla de vendedores à porta da fronteira. As suas vozes voltam a juntar-se às dezenas de outros que lutam para vender um chocolate, uma pastilha. A sobrevivência daqueles que deixaram na Venezuela depende disso.