13 abr, 2023 - 23:30 • Ângela Roque
Francisco Rodrigues da Cruz - o padre Cruz, como é conhecido - é uma das figuras mais marcantes de sempre da Igreja em Portugal. Morreu em 1948, já com fama de santidade, mas o processo de canonização aguarda ainda luz verde do Vaticano. Com a nova biografia "Padre Cruz. O Santo do Povo", as autoras Ana Catarina André, jornalista da Renascença, e Sara Capelo, consultora de comunicação, querem revelar o lado mais humano do sacerdote, que muitos até identificam pelo nome, mas poucos conhecerão a fundo.
"Queremos sobretudo retratar o homem, a humanidade do padre Cruz. E este olhar é aquilo que talvez se distinga no trabalho que procurámos fazer: não queremos retratá-lo de uma forma hagiográfica, mas como um homem do seu tempo, que tinha muito mais virtudes, certamente, do que a maioria das pessoas, mas como homem que era", sublinha Ana Catarina André.
Sara Capelo explica que as biografias que existiam “eram muito datadas, da altura em que o padre Cruz tinha morrido, finais dos anos 50, inícios dos anos 60. Não havia biografias depois disso”. Na pesquisa que fizeram acabaram por encontrar muitas novidades. “Foi muito surpreendente”, diz.
"Tivemos acesso aos arquivos da Causa da Beatificação do padre Cruz e foi possível aceder a um sem número de fontes muito próximas, e do próprio, nomeadamente cartas que ele escrevia e recebia, e que nos permitiram perceber muito melhor esta figura”. Esperam, por isso, conseguir dar “uma nova perspetiva" sobre a sua vida e missão.
O livro destaca a importância do padre Cruz ter sido um "guia das almas". “Era uma das capacidades que ele chamava a si próprio. Ele era um confessor nato: se o chamassem em Bragança, porque alguém necessitava de ser confessado, ele apanhava o primeiro combóio, depois se fosse necessário trocava o combóio por um burrito para chegar até uma aldeia distante, só para confessar a alguém que estava possivelmente à beira da morte e só aceitava confessar-se a ele. Ele considerava esta a função essencial de toda a sua vida, a de guiar as almas”, refere Sara Capelo.
Ana Catarina acrescenta: “tinha sempre disponibilidade para atender quem precisavadele, fossem os pobres - que ele visitava muito nos bairros mais humildes de Lisboa, e não só -, os presos – tornou-se amigo de muitos, que inclusivé o defenderam durante a Primeira República, na altura em que o clero era perseguido e vaiado na rua -, ou as pessoas com mais posses que, querendo aproximar-se de Deus, o procuravam”. E o padre Cruz ia a todo o país.
“É muito engraçado que, nos bilhetes que escrevia a uma das irmãs, dizia muitas vezes: ‘vou para Lisboa, vou para o Porto e depois passo por Coimbra e vou para Guimarães"... não estou a citar exatamente as cartas como elas eram, mas a ideia é que ele, num só dia, ia a muitos sítios, só para atender pessoas”, apesar da saúde frágil, que sempre teve, ou do avançar dos anos. “Mesmo nessa debilidade física e com mais idade, fazia quilómetros de norte a sul para atender a quem dele precisasse”.
“A paróquia dele era o país e essa é, de facto, a marca principal que deixou e que deve ser pensada”, refere Sara Capelo, explicando que não tendo deixado obra, devido a essa itinerância, “foi deixando a sua marca” por onde passou, e isso, diz, “merece reflexão”.
“Esta forma de ser do Padre Cruz, esta liberdade que tinha de, em qualquer momento e face a qualquer pedido de ajuda e auxílio, corresponder, será que nos dias de hoje isso era possível desta forma, com esta liberdade e esta capacidade de ir ao encontro de todos, onde quer que estejam, sem amarras geográficas? É uma questão muito interessante”.
Da relação com a hierarquia da Igreja, destacam o facto do padre Cruz ter sido o confessor de dois patriarcas, D. António Mendes Belo e o cardeal Cerejeira. “Há dados sobre isso, o que evidencia logo ali uma relação de proximidade”, revela Ana Catarina, lembrando a importância que ele também teve na credibilização das aparições de Fátima.
“Desempenha um papel muito importante" para contar ao então patriarca o que se estava a passar, porque "ele foi a Fátima logo depois das aparições" e conhecia os pastorinhos. "Aliás, a Lúcia até a conhece antes de 1917”, e foi mesmo o seu primeiro confessor.
Outra prova desta relação de proximidade, mas já com o Cardeal Cerejeira, é “quando o padre Cruz faz 80 anos. Estava no Seminário dos Olivais, em Lisboa. Nessa altura, antes ainda do Vaticano II, não se concelebrava como acontece hoje, e o Cardeal Cerejeira quis ser o acólito do padre Cruz na celebração", o que denota uma "grande estima e reverência" pelo sacerdote.
Apesar disto, o padre Cruz nunca quis cargos de poder. “É outro pormenor, que não é só um pormenor: o cardeal Mendes Belo quis que o Padre Cruz fosse cónego da Sé de Lisboa, e ele recusou. Há uma carta sobre isso em que ele explica que a missão dele é andar pelas ruas, andar nesta itinerância evangelizadora, não é ser cónego da Sé”. O cardeal aceitou.
Apesar de ter estado sempre próximo dos jesuítas, só entrou para a congregação na reta final da sua vida. “Houve sempre da parte da Companhia de Jesus o entendimento que, tendo em conta as suas características, nomeadamente de saúde - porque ele nasceu muito frágil e toda a vida teve várias fragilidades, pneumonias e doenças até mais sérias, que o fizeram parar em alguns momentos -, a resposta que lhe iam dando é que ele fazia muito bem em estar no mundo e ser este ser itinerante, este ‘guia das almas’. Portanto, na verdade, ele entrar para a Companhia de Jesus, foi quase uma bondade no fim de vida”, sublinha Sara Capelo.
Na pesquisa para o livro acabaram por descobrir que o padre Cruz “sempre quis pertencer a uma ordem religiosa”, e também pediu para entrar na congregação salesiana. “Encontrámos algo muito curioso no arquivo dos Salesianos em Lisboa, porque eles têm algumas cartas e testemunhos”. O sacerdote, conta, “foi, na verdade, responsável pela vinda dos Salesianos para Portugal, em finais do século XIX”. Na altura estava à frente do Colégio dos Órfãos, em Braga, sentia-se muito doente e "pediu que fossem eles a tomar conta do colégio. E de facto, conseguiu cumprir essa vontade”.
O padre Cruz terá, depois, aproveitado uma visita do sucessor de Dom Bosco, para tentar entrar na congregação, o que foi recusado. “Continue a fazer o que faz no mundo”, ter-lhe-á dito Dom Miguel Rua, quando já havia a ideia do padre Cruz ser um homem Santo.
Natural de Alcochete, Francisco Rodrigues da Cruz faleceu a 1 de outubro de 1948, aos 89 anos de idade. Quase 75 anos depois, continua a ser venerado dentro e fora do país. O processo de canonização aguarda luz verde do Vaticano.
“Talvez para a geração mais nova seja só o Padre Cruz do bairro Padre Cruz, em Lisboa, e de tantas outras ruas espalhadas pelo país, mas continua a trazer muitos devotos ao cemitério de Benfica, sobretudo na data da sua morte e do seu nascimento", diz Ana Catarina André. Há também quem visite o quarto onde viveu, no Largo do Caldas, no edifício que é do Patriarcado de Lisboa e que continua a albergar a sede do CDS.
À Causa de Canonização continuam a chegar cartas de vários países, “da Austrália, dos Estados Unidos, de pessoas que continuam a rezar ao Padre Cruz e a pedir a sua intercessão”.
A nova biografia ‘Padre Cruz. O Santo do Povo’, chegou esta semana às livrarias, numa edição da Oficina do Livro.