13 set, 2016 - 20:32 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
A menos de dois meses das eleições e numa data com forte simbolismo como o 11 de Setembro, a candidata democrata à Casa Branca desafiou duplamente a sorte – quer física, quer intelectualmente – e o resultado foi claramente negativo.
Tudo começou na sexta-feira quando os médicos lhe diagnosticaram uma pneumonia e a aconselharam a abrandar o ritmo da campanha ou mesmo a proteger-se e parar durante uns dias. Mas Hillary, que além da pressão do calendário eleitoral é uma “workaholic”, achou que podia desafiar a prudência e decidiu manter a agenda prevista.
Para um restaurante chique de Nova Iorque estava marcado um jantar de recolha de fundos com a presença de algumas celebridades, entre as quais Barbra Streisand. Hillary compareceu e, talvez febril, disse aquilo que terá sido até hoje a frase mais imprudente da sua campanha. Dividiu os apoiantes de Trump em “duas metades” e disse que uma delas devia ser colocada no “cesto dos deploráveis”.
Porquê? Porque era “racista, sexista, homofóbica, xenófoba, islamofóbica. Infelizmente, há gente assim e ele deu-lhes voz e aos seus websites que dantes tinham 11 mil pessoas e hoje têm 11 milhões. Ele “twita” e “retwita” a sua retórica ofensiva, de ódio, canalha. Alguma dessa gente é irrecuperável, mas felizmente eles não são a América”.
Antes de proferir a frase, Hillary admitiu que ia fazer “uma generalização grosseira”, mas como se sabe as generalizações são sempre perigosas mesmo quando não são grosseiras. E sobretudo se são feitas no espaço público e numa campanha eleitoral com a tensão desta campanha americana. É suposto os candidatos atacarem-se mutuamente, criticarem as campanhas adversárias, mas não dispararem sobre os eleitores quaisquer que eles sejam. Não há nada de mais politicamente incorrecto do que isso numa campanha.
Mais tarde, a candidata penitenciou-se pelo que disse, mas só parcialmente. Admitiu que não devia ter dito “metade” dos eleitores de Trump, afinal a generalização pecaria pela extensão e não pela substância. Subentendido ficou que haveria entre estes eleitores muitos que podiam ser incluídos no outro “cesto”, aquele que Hillary definiu como sendo o de pessoas que aspiram “desesperadamente por mudança” porque “sentem que o governo as abandonou, a economia as abandonou, ninguém quer saber delas”.
Ou seja, implicitamente Hillary reafirmou o que tinha dito em relação ao primeiro “cesto”, dando um “tiro no pé” surpreendente para uma candidata tão experiente, do establishment e do politicamente correcto. Desafiou por isso a prudência. Terá sido uma consequência da febre?
Mas sendo tacticamente desastrosa, a frase de Hillary espelha uma realidade que, de facto, a campanha de Trump trouxe à superfície, à qual deu voz e amplificou. Desde que o multimilionário começou a proferir frases sexistas, homofóbicas, islamofóbicas, xenófobas, racistas, que vários institutos de sondagens e media avaliaram o grau de aceitação das mesmas junto dos seus apoiantes. E o resultado é… deplorável.
Preconceitos raciais
Vejamos: em Junho, a Reuters apurava que quase 50% dos apoiantes de Trump descreviam os negros como “mais violentos” e “mais criminosos” que os brancos, enquanto 40% os descreviam como “mais preguiçosos”. Em Julho, outro estudo da mesma agência concluía que 58% dos apoiantes de Trump tinham uma visão “algo desfavorável” do Islão e 78% acreditam que o Islão tem mais propensão para encorajar actos de terrorismo.
Uma sondagem do centro de pesquisas Pew, em Fevereiro, apurava que 65% dos republicanos defendem que o presidente deve criticar o Islão como um todo, sem rodeios, quando fala de extremismo islâmico.
No mesmo mês de Fevereiro, um outro estudo, este do Public Policy Polling, feito na Carolina do Sul, um estado fortemente republicano, apurava estes dados: 80% dos eleitores prováveis de Trump defendia a proibição de entrada a muçulmanos no país, uma proposta que o candidato recentemente reformulou.
Sessenta e dois por cento eram a favor da criação de uma base de dados nacional para os muçulmanos, enquanto 40% defendiam o fecho das mesquitas no país. Trinta e um por cento aceitariam a proibição de entrada de homossexuais no país, e 32% concordam com o internamento forçado de que os japoneses nos Estados Unidos foram vítimas durante a II Guerra Mundial.
O dado talvez mais surpreendente é que 38% disseram que teriam preferido que o Sul tivesse vencido a guerra civil americana, que pôs fim à escravatura. Recorde-se que em muitos edifícios públicos da Carolina do Sul, incluindo no Capitólio, onde reúne o Congresso estadual, a bandeira da Confederação, a coligação que se bateu pela manutenção da escravatura, esteve hasteada até ao ano passado, 150 anos após a guerra civil. E só foi retirada na sequência de um acontecimento traumático – a morte de dezenas de negros numa igreja às mãos de um jovem de extrema-direita.
Em Junho, outra sondagem do Pew Research Center apurava que 79% dos apoiantes de Clinton pensam que o tratamento das minorias étnicas e raciais é um assunto importante, enquanto apenas 42% dos apoiantes de Trump pensam o mesmo.
Os preconceitos em relação aos negros aumentaram por parte dos brancos desde que Obama foi eleito presidente. A reacção negativa ficou patente numa pesquisa do American National Election Studies em 2012. Os inquiridos foram solicitados a classificar brancos e negros numa tabela que ia de inteligente a não inteligente e de trabalhador a preguiçoso. Sessenta e dois por cento dos brancos classificaram os negros mais abaixo em pelo menos um dos itens, enquanto em 2008 tinham sido apenas 45% a fazê-lo.
São os brancos que sentem que estão a perder terreno para as várias minorias e que se incomodam com isso os maiores entusiastas da candidatura de Trump, como concluíram vários estudos académicos e sondagens. A convenção do Partido Republicano, realizada em Cleveland em Julho, foi de algum modo o espelho desse sentimento baseado em preconceitos raciais. Cerca de 90% dos delegados eram brancos, um contraste flagrante com a do Partido Democrático.
Em suma, a frase de Hillary Clinton pode pecar pela generalização, mas não peca pela substância. Traduz uma verdade, embora neste momento seja para ela uma verdade inconveniente.
Secretismo doentio
Igualmente inconveniente é certamente a pneumonia porque a obriga a vários dias de inactividade numa fase importante da campanha. Mas também porque veio dar algum fôlego aos rumores que a campanha de Trump tem lançado sobre a saúde da rival.
No domingo, Hillary tinha duas opções difíceis. Ou assumia que estava doente e não comparecia às cerimónias do 15º aniversário do 11 de Setembro, alimentando todo o tipo de especulações; ou agia como se nada estivesse a acontecer. Optou pela segunda hipótese, desafiando a sorte e a prudência.
O dia estava muito quente. O calor em Nova Iorque é, por vezes, asfixiante, abafado, pesado, muito húmido, o que se torna insuportável para alguém com o sistema respiratório em situação crítica. Mesmo assim Hillary aguentou 90 minutos antes de se retirar. E quando duas horas mais tarde apareceu à porta do apartamento da filha, quis dar a imagem de que tudo não passara de uma pequena indisposição momentânea.
“Sinto-me óptima, óptima. Está um dia lindo em Nova Iorque!”, gritou para os repórteres que lhe perguntavam como estava e o que tinha acontecido. O vídeo divulgado posteriormente mostrava-a cambaleante e incapaz de entrar no carro. Mas isso poderia ter sido mesmo episódico.
A história dos EUA está cheia de episódios desse tipo. Em meados do século XIX, o presidente Franklin Pierce ficou conhecido como “Frank, o desmaiador”. Bush pai, quando era presidente, vomitou no prato durante um banquete no Japão e Bush filho engasgou-se com um biscoito ficando sem respiração e perdendo a consciência por momentos. E quem não se lembra, entre nós, de Cavaco Silva ter desmaiado em plena cerimónia de tomada de posse de António Guterres como seu sucessor à frente do Governo? Ou, já como presidente, ter sido retirado de maca de uma cerimónia pública?
O problema com Hillary é que ocultou o seu estado de saúde, dando mais uma vez argumentos aqueles que a acham pouco credível e desonesta. Só depois de ele se tornar incontornável é que assumiu publicamente que estava doente. Uma doença, de resto, hoje sem riscos e facilmente curável, mas que neste contexto político veio agravar o clima de desconfiança em torno da candidata. E alimentar os rumores sobre o seu verdadeiro estado clínico e a suspeição de que há mais um esqueleto no armário.
“A pneumonia cura-se com antibióticos, mas qual é a cura para uma tendência doentia para o secretismo que está sempre a criar problemas desnecessários?”, perguntou David Axelrod, o grande estratega de Obama, na CNN, dando eco às preocupações que a proverbial atitude de Clinton de manter zonas da sua vida ocultas ou achar que pode agir fora das regras – como no caso dos emails em servidor privado – suscita entre os seus apoiantes.
É claro que numa campanha como a actual onde Trump não revelou até hoje qualquer boletim clínico (diz agora que o fará esta semana), não revelou qualquer declaração de impostos, não deu provas públicas de quanto contribuiu para caridade, não esclareceu as falências das suas empresas nem os negócios com os oligarcas russos, este escrutínio de Clinton pode parecer bizarro.
Hillary, de resto, acusa os media de parcialidade justamente porque lhe exigem um grau de transparência que, segundo ela, não exigirão ao seu adversário. Mas tenha razão ou não, uma campanha eleitoral como a americana não pode contar com a complacência de ninguém para vencer.
Como os americanos gostam de dizer, “play by the rules” é o melhor caminho (o único?) para o sucesso. E no passado fim-de-semana, Hillary desafiou a sorte duas vezes e as coisas não lhe correram bem.
A duas semanas do primeiro grande debate com Trump, Clinton perdeu fôlego. Literal e politicamente. Veremos se o recupera a tempo.