09 out, 2016 - 09:39 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Exactamente a um mês das eleições e a pouco mais de 24 horas de um debate decisivo em que estado tem de estar uma campanha eleitoral para que o candidato seja obrigado negar a pés juntos que não desiste?
Não, não estamos a falar de uma eleição para uma junta de freguesia ou uma associação de estudantes. Estamos a falar da eleição para o cargo mais poderoso do mundo, que tem lugar a 8 de Novembro, e na qual se defrontam Hillary Clinton e Donald Trump.
O candidato republicano desmentiu este sábado ao “Washington Post” que estivesse a pensar desistir da corrida à Casa Branca, garantindo que “nunca desistirá”, que “nunca desistiu na vida” e que tem “um apoio enorme”.
E porque teve Trump de responder a tal pergunta a um mês das eleições? Porque são cada vez mais as vozes no próprio Partido Republicano que rejeitam votar nele e apelam aos correligionários e aos conservadores em geral para fazer o mesmo. Há até quem lhe peça que saia da corrida e dê lugar a alguém que consiga bater Hillary Clinton.
Uma hipótese praticamente inviável neste momento, não só porque os boletins de voto já estão impressos em muitos estados, mas sobretudo porque já começou o voto antecipado – milhares de pessoas já votaram, incluindo até o presidente Obama. E mesmo que tal fosse ainda possível, o Partido Republicano só poderia apresentar outro candidato com a concordância de Trump, o que, como se vê, está fora de questão.
Machismo primário
A razão mais recente para o avolumar das recusas em apoiar Trump é um vídeo divulgado na sexta-feira pelo “Washington Post”, no qual omultimilionário tecia considerações sobre as suas técnicas de sedução de mulheres, na qual fica patente a sua mentalidade machista. Conta uma história de como tentou seduzir uma mulher casada pagando-lhe mobílias, e diz como se aproxima das mulheres e as assedia de imediato de forma coerciva porque “às estrelas elas deixam fazer tudo”.
Uma gabarolice marialva em que a coisificação da mulher é evidente, confirmando o padrão de comportamento de Trump em relação às mulheres, patente em vários outros casos surgidos ao longo da campanha.
A conversa data de 2005, foi privada e teve como interlocutor um jornalista de um “talk show” antes de Trump entrar em estúdio. Alguém a gravou na altura e o vídeo apareceu agora no site do “Post” desencadeando mais uma tempestade em torno do candidato.
O seu companheiro de lista, Mike Pence, disse que “como marido e como pai estava ofendido” e que “não podia perdoar nem defender” as palavras e acções de Trump.
Paul Ryan, o líder da Câmara de Representantes, afirmou-se “enojado” com o vídeo e “desconvidou” Trump para uma acção de campanha que estava prevista para este sábado no seu estado do Wisconsin. Mike Pence, amigo de Ryan, substituiria o multimilionário, que justificou a ausência dizendo que ficava em Nova Iorque a preparar o debate de domingo à noite.
Recorde-se que Ryan já criticou várias vezes Trump. Chegou a acusá-lo de racismo quando ele disse que um juiz que apreciava um caso contra si não poderia ser imparcial porque “era mexicano”. Mesmo assim, Ryan, o republicano que ocupa o cargo institucional mais importante no país, acabou por dar o seu apoio oficial a Trump, embora mantenha um razoável distanciamento. Sempre que surge uma nova polémica que envolve o multimilionário especula-se que Ryan lhe retirará o seu apoio.
17 eleitos contra
Não o fez desta vez, mas não falta quem o tivesse feito. O senador John McCain, do Arizona, candidato republicano em 2008 contra Barack Obama, foi o mais destacado de todos. Ele que tinha sido apoucado por Trump no ano passado quando disse que não gostava de heróis que se deixam prender. McCain é considerado um herói de guerra porque esteve preso no Vietname e foi torturado, tendo ainda sequelas físicas dessa provação. “Quis apoiar o candidato nomeado pelo partido”, afirmou, mas o seu comportamento “tornou impossível continuar a oferecer-lhe sequer apoio condicional”.
Também Condoleezza Rice, ex-secretária de Estado de George W. Bush, que, desde que deixou cargos públicos, tem mantido total silêncio sobre questões de política interna, publicou uma mensagem no facebook em que diz “Basta!”. Trump “não deve ser presidente. Devia retirar-se”. Condoleezza gostaria de poder apoiar alguém com “estatura” e “dignidade” para ser presidente.
Além destas duas figuras destacadíssimas do Partido Republicano, há 17 eleitos que se demarcaram agora de Trump por causa do vídeo, muitos dos quais apelando a que o magnata se retire da corrida.
A senadora Kelly Ayotte, a lutar pela reeleição no New Hampshire, anunciou que não votará em Trump e escreverá o nome de Pence no boletim de voto. “Não posso apoiar um candidato que se vangloria de degradar e assaltar mulheres”, disse no sábado, uma semana depois de ter considerado Trump “um modelo” num debate televisivo.
O governador do Nevada, Gary Herbert, chamou aos comentários “ofensivos” e “desprezíveis” e também não vota em Trump. E o mesmo fará o congressista do estado, John Heck, e a congressista Martha Roby, do Alabama.
O ex-governador do Utah, Jon Huntsman, disse que chegou o momento de Mike Pence ser o candidato a presidente. Um congressista do mesmo Utah, Jason Chaffetz, foi directo: “Estou fora. Não posso em consciência continuar a apoiar esta pessoa para presidente. São os comentários mais repugnantes e ofensivos que se pode imaginar”.
Outro ex-governador republicano e vedeta cinematográfica, Arnold Schwarzenegger, confessa que não votará no candidato do partido pela primeira vez. Como “republicano orgulhoso” lembra aos seus pares que “é seu dever colocar o país acima do partido”.
Seis senadores -- John Tune, do Dakota do Sul, Shelley Moore Capito, da Virgínia Ocidental, Mike Crapo, do Idaho, Deb Fischer, do Nebraska, Dan Sullivan, do Alaska, e a já referida Kelly Ayotte – apelaram também à desistência de Trump.
Um congressista do Colorado, Mike Coffman, disse que “para o bem do país, Trump devia sair e dar aos republicanos uma chance de derrotar Hillary Clinton. Nesta altura a derrota dele é quase certa”. É também a convicção de vários outros congressistas.
Refira-se que, à excepção do New Hampshire e do Nevada, considerados “swing states”, os outros eleitos provêm de estados conservadores onde os republicanos vencem geralmente as eleições com facilidade. E todos eles tinham já exprimido o seu apoio a Trump publicamente. Neste momento, os cálculos apontam para cerca de 150 republicanos desempenhando cargos electivos que não apoiam Trump.
Pedido inédito de desculpa
Tentando travar o impacto do vídeo, o candidato gravou uma mensagem a lamentar o sucedido, o que é inédito porque ainda não se tinha visto o multimilionário a pedir desculpa por nada do que disse na campanha. A própria mulher, Melania Trump, apelidou os comentários do marido de “inaceitáveis e ofensivos”, mas disse que eles não representavam o homem que conhece. “Ele tem o coração e a cabeça de um líder. Espero que as pessoas aceitem as desculpas dele, como eu aceitei, e que se concentrem nos assuntos importantes da nossa nação e do mundo”.
E talvez seja justamente porque estão preocupadas com os assuntos do país e do mundo que muitas pessoas continuam a abandonar Trump. Um caso emblemático é o de Hugh Hewitt, um dos mais famosos radialistas conservadores cujo programa tem milhões de ouvintes. Depois de algumas reservas em apoiar Trump, acabou por se render ao candidato e apelar ao voto nele no Verão, mas agora pediu ao Partido Republicano para o substituir “para o bem do país, do partido e da sua família”. Hewitt é o tipo de “opinion maker” que influencia largos milhares de eleitores.
Estas perdas de apoios constituem aquilo que Trump e a sua “entourage” costumam considerar o “establishment” ou a elite de Washington que se vê agora ameaçada pela sua candidatura politicamente incorrecta e que representará a revolta das bases do partido. Esse é pelo menos o argumento geralmente utilizado quando algum conservador destacado critica Trump.
É portanto possível que mais uma vez a reacção de Trump seja a de reforçar a tendência populista e basista que a caracteriza desde o início. A expectativa em relação ao debate com Hillary Clinton este domingo sai assim redobrada, dado que a campanha fez saber que o candidato iria concentrar-se nos temas que preocupam o país como a economia, a imigração, o comércio internacional, o terrorismo, a criminalidade, recusando os temas de carácter pessoal.
Mas o facto de ter perdido o primeiro debate, segundo a generalidade dos analistas, e de esse desaire ter impulsionado Hillary nas sondagens pode baralhar os dados da questão. Na mensagem em que pediu desculpa, Trump refere-se aos casos amorosos de Bill Clinton, diz que o assunto será discutido nos próximos dias e pede às pessoas que vejam o debate.
A conjugação destes dois factores – hostilidade da elite conservadora e necessidade de vencer o debate – poderá levá-lo a uma ainda maior agressividade populista contra Hillary. Em vez de dar uma imagem mais presidenciável, seguindo os conselhos dos seus estrategas, talvez seja tentado a obedecer à sua natureza. Como defendem alguns apoiantes, “deixem o Trump ser Trump”, porque essa seria a melhor forma de angariar votos junto daqueles que estão revoltados com o sistema político e com a economia.
Se tal suceder, este segundo debate poderá ser o expoente máximo de um Trump decidido a partir a loiça e a proferir as afirmações mais surpreendentes. Talvez ainda não tenhamos visto tudo.