08 nov, 2016 - 02:08 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
No segundo debate entre Hillary Clinton e Donald Trump durante esta campanha eleitoral, um membro do painel de eleitores escolhidos para fazer perguntas aos candidatos lançou uma questão inesperada de que, provavelmente, nenhum jornalista se lembraria.
Quis saber se havia alguma coisa que os candidatos admirassem no adversário. Uma pergunta que fazia todo o sentido no contexto de uma campanha feroz, extremada, divisiva como nunca, plena de insultos e ódios, que aliás os candidatos não escondiam. Esse mesmo debate tinha começado e acabou sem que sequer apertassem as mãos.
Aparentemente colhidos de surpresa, os candidatos engendraram uma resposta de cortesia, mas desta vez Donald pareceu mais sincero do que Hillary. A candidata democrata esquivou-se a elogiar uma qualquer característica de Trump dizendo que admirava os seus filhos.
Trump disse sem rodeios que admirava o facto de Hillary ser persistente, nunca desistir, ser uma lutadora e não virar as costas aos combates que a vida lhe foi proporcionando.
Esta é, de facto, uma característica que ninguém lhe negará, nem mesmo o homem que nesta terça-feira mais deseja derrotá-la. A vida de Hillary é feita de combates, daqueles que requerem muita força interior, muita convicção, muita persistência e muita determinação.
São combates que não se resolvem apenas com a luta de uma pessoa ou mesmo com a luta de muitas pessoas. São combates que se arrastam no tempo e demoram gerações a resolver. São combates que enfrentam preconceitos, desafiam mentalidades, confrontam certezas ancestrais e que por isso vão conquistando aqui e ali algum terreno, recuando acolá e além, e que parecem nunca estar definitivamente resolvidos.
Para este tipo de combates é preciso ter uma vontade férrea e uma confiança inabalável no futuro. E Hillary Clinton tem estas características, como já demonstrou por várias vezes ao longo da vida. No vídeo que lançou a 24 horas das urnas, ela sublinha isso mesmo: dirige-se aos americanos e diz que eles sabem pelo menos uma coisa – que ela nunca desiste.
Porque lutar por causas como o ensino pré-escolar, por um sistema de saúde acessível à generalidade das pessoas e não só a quem tem bons rendimentos, por salário igual para trabalho igual no caso das mulheres, por licença de parto paga, por planeamento familiar gratuito, como ela fez por toda a América, a direitos iguais aos homens, como ela fez na China, são combates que se travam com a consciência de que a probabilidade de correrem mal é elevada. Por isso, precisam de alguém que nunca desista.
Ao longo da sua vida de empenhamento cívico e político, Hillary Clinton somou vários sucessos, mas nos dois maiores combates em que se envolveu sofreu duas enormes derrotas.
Primeira derrota
A primeira foi a da reforma do sistema de saúde que tentou nos dois primeiros anos da presidência de Bill Clinton. Quando chegou à Casa Branca, em 1992, Hillary quis mostrar que a sua actividade não se confinaria ao papel tradicional da primeira dama. Recusou os gabinetes destinados às primeiras damas e instalou-se na ala oeste, marcando o terreno junto do poder executivo.
E meteu mãos à obra para reformar o sistema de saúde. Bill nomeou-a líder de uma “task force” e fez do assunto uma prioridade do seu mandato presidencial. Ela não se poupou a esforços. Convocou peritos, ouviu juristas, escutou todos os envolvidos no sistema, trabalhou com eleitos dos dois partidos, formou dezenas de grupos de trabalho, mobilizou pessoal da saúde, cientistas, vítimas do sistema, produziu relatórios de milhares de páginas, reuniu todos os argumentos possíveis para que a lei passasse no Congresso.
Ao fim de um ano de trabalho exaustivo, o Senado reprovou a lei, apesar de os democratas disporem de maioria na câmara. Foi declarada uma peça legislativa inviável e houve quem pusesse em causa a legitimidade da primeira dama, que não é membro da Administração, para assumir aquele papel.
Nas eleições intercalares para o Congresso, em 1994, os democratas perdem a maioria no Senado e na Câmara dos Representantes e a responsabilidade pela pesada derrota é-lhe atribuída a ela e ao seu plano de reforma da saúde. Na sua primeira incursão na alta política de Washington, Hillary acabava de ser derrubada com estrondo.
Nos dois anos que restam a Bill na Casa Branca para completar o primeiro mandato, a estrela de Hillary apagou-se. Passou a investir em questões internacionais, bem mais longe da ribalta de Washington. A sua potencial carreira política parecia ter acabado antes mesmo de ter começado.
Mas ela resistiu na sombra. Abalou uma conferência sobre a mulher na China ao proclamar que os direitos das mulheres são direitos humanos e viajou um pouco por todo o lado advogando a causa das mulheres e das crianças.
Segunda derrota
Tal como soube resistir na sombra quando rebentou o escândalo Monica Lewinsky, que não terá acabado com o casamento com Bill apenas por ambição política, na interpretação de inúmeros observadores.
Dois anos após Bill deixar a Casa Branca, regressa ao primeiro plano ao candidatar-se a senadora por Nova Iorque. Vence facilmente e representa o estado quando o 11 de Setembro choca a América e o mundo. De novo na ribalta, prepara a candidatura à presidência em 2008. As peças pareciam encaixar todas. Não se vislumbrava rival à altura no Partido Democrático e o aparelho estava com ela.
Tinha experiência, sabedoria e máquina em abundância, nada poderia detê-la. Mas um jovem senador, por sinal de Chicago, a sua terra natal, intrometeu-se-lhe no caminho. Era um bom orador, mas estava no primeiro mandato, era caloiro e ainda por cima negro. Tudo handicaps.
O desfecho é conhecido. Apesar de travar o combate da sua vida, aquele pelo qual terá ambicionado desde sempre, voltou a perder. Foi a segunda grande derrota da sua vida. Então com 61 anos, parecia o fim de uma carreira política que tinha aspirado ao voo mais alto de todos.
Mas Obama convida-a para secretária de Estado e ela acaba por aceitar com relutância. Adquire durante quatro anos uma experiência preciosa para voltar a tentar a Casa Branca. Em 2016 ninguém no partido lhe barrou o caminho, embora o combate com Bernie Sanders não tenha sido fácil.
As portas da Casa Branca parecem finalmente abertas para ela, aos 69 anos, e depois de vários combates menores bem sucedidos e dois maiores mal sucedidos.
Esta terça-feira à noite se saberá qual dos dois aforismos portugueses Hillary Clinton confirma: se o “não há duas (derrotas) sem três”; ou se “à terceira é de vez”.
A América – e o mundo – sustêm a respiração.