10 fev, 2025 - 22:30 • Sandra Afonso
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Enquanto o mundo assiste ao que pode ser o início de uma guerra comercial sem precedentes, Taiwan mantém-se discreta. A pequena ilha, um exemplo de sucesso económico, tem os seus próprios desafios, e pode depender do gigante norte-americano para manter a sua independência de outro gigante, a vizinha China.
Em "A mais breve história de Taiwan" (Ideias de Ler), Kerry Brown, professor de Estudos Chineses, conduz o leitor pelas origens da ilha e explica como se tornou estratégica para a China, para o Ocidente e para o futuro de todos.
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O antigo ministro da Defesa, Azeredo Lopes, escreve o prefácio na edição portuguesa e, à Renascença, contextualiza a posição de Taiwan nos dias de hoje e o que pode esperar do atual inquilino da Casa Branca, Donald Trump.
O que faz de Taiwan uma ilha estratégica neste momento e um tema sensível no plano internacional?
Taiwan ganha uma importância tremenda por uma razão relativamente simples: o poder global transferiu-se definitivamente, ou pelo menos tão definitivamente quanto o período das nossas vidas, para o Indo-Pacífico. Pela primeira vez, os europeus percebem que definitivamente não são o centro do mundo.
Taiwan tem uma importância fundamental, essencialmente por dois motivos. Primeiro, pela sua posição estratégica, absolutamente central no Indo-Pacífico, e depois porque Taiwan é impossível de compreender se não falarmos da China.
Se a China foi definida, e prevejo que venha a ser durante muito tempo, como o principal adversário sistémico dos Estados Unidos neste século, a importância de ter um pé encostado à China, em Taiwan, é enorme. O crescimento da China, a ameaça que representa a sua própria capacidade tecnológica atual, o controle que a China detém de muitos dos metais raros que são indispensáveis para as novas tecnologias, transforma Taiwan numa peça crucial da política externa norte-americana.
A covid-19 também expôs a dependência mundial aos semicondutores e sendo Taiwan uma grande produtora…
Essa era justamente a segunda razão. Taiwan também tem hoje um valor que nós não suspeitávamos há 20 anos. Sempre teve uma grande capacidade tecnológica, de inovação, uma capacidade industrial muito inovadora e os semicondutores hoje decidem o mundo. O simples facto de Taiwan ter a maior empresa privada produtora de semicondutores, a TSMC, faz com que a possibilidade de a China se apropriar de Taiwan seja uma ameaça direta à segurança estratégica do globo.
Também por causa disso, Biden disse claramente a Taiwan, eu continuo a apoiar-vos, eu continuo a defender-vos, mas vocês vão ter que colocar uma empresa da TSMC nos Estados Unidos. É então que ele aprova a lei dos semicondutores, financia diretamente a instalação da TSMC, no Arizona, e vai à Coreia do Sul dizer o mesmo. A Samsung criou já uma empresa gigantesca de produção de semicondutores.
Os norte-americanos, hoje, já estão menos assustados com a fragilidade de Taiwan, porque já retiraram à ilha capacidade industrial que transferiram para os Estados Unidos, vão diminuindo os riscos estratégicos que resultariam de um conflito direto entre a China e a ilha.
Também interessa aos EUA a autodeterminação de Taiwan e já não o escondem?
Pela primeira vez, desde os anos 70, os Estados Unidos estão a afastar-se significativamente daquele conceito um pouco inventado por Nixon e por Kissinger, em que não diziam, nem sim, nem não, ao direito de Taiwan se autodeterminar. Aquele velho princípio, uma China, dois sistemas, está hoje em crise. Os EUA têm dado sinais claros de apoio a Taiwan, se necessário, recorrendo às suas próprias forças militares, como disse Biden em abril de 22.
Mas essa era a política de Biden. Donald Trump, ainda antes de ser eleito, anunciou que utilizaria a política tarifária para impedir a invasão da China a Taiwan. Até admitiu agravar as tarifas em 200%, que bastaria para não recorrer a forças militares.
O que é extraordinário em Trump é que ele acredita que tudo se resolve pela força do dinheiro e pelo poder económico.
Agora, há coisas que são retórica. É bom termos presente que os Estados Unidos têm na região o maior número de forças expatriadas. Há mais de 200 mil soldados norte-americanos na região. Parece-me claro que os Estados Unidos nunca deixariam de atuar se, por ventura, houvesse uma ameaça de invasão ou medidas de coerção mais brutais por parte da China em relação à Taiwan.
Mesmo que, para isso, fosse necessário uma resposta militar?
O mais interessante é que, mesmo em relação a Taiwan, Trump anunciou que provavelmente vai aplicar tarifas. Ele trata francamente pior os seus aliados e dependentes. Quanto mais parecer que são dependentes, mais implacável aparentemente Trump gosta de se mostrar.
Ele já aplicou um nível intermédio de 10% a todas as importações chinesas. Estabeleceu agora tarifas de 25% gerais para quaisquer vendas de alumínio e aço. Isto a certa altura entra numa espiral um bocadinho descontrolada.
E, para responder à sua pergunta, independentemente de ser verdade que Trump é muito menos adepto do recurso à força militar do que, por exemplo, terá sido Joe Biden. Gosta de dizer que é um grande pacificador, com ele não há guerras. Bom, as guerras dele serão de outra natureza e não são menos perturbadoras das relações internacionais. Mas não vejo Trump disposto a envolver os soldados americanos na defesa direta de Taiwan.
Taiwan neste momento está entre dois gigantes, se as coisas correm mal entre eles, as consequências para a ilha são imprevisíveis.
Acha possível, não digo no curto, e se calhar nem no médio prazo, mas uma reunificação de Taiwan com a China?
No curto prazo essa reunificação parece-me muito, muito difícil. Nas últimas décadas criaram identidades que, não sendo totalmente diferenciadas, são distintas. É uma das coisas interessantes no livro.
Com o aproximar do fim do século passado, Taiwan dá passos muito importantes, com reformas estruturais, com a aproximação a um modelo cada vez mais democrático. Taiwan já não é a pior democracia que eu conheço e já tem até dimensões de um certo pluralismo exuberante. A partir desse momento, até do ponto de vista identitário, Taiwan quase que reivindica ter um povo. Isso significa que já não se confunde com o povo chinês propriamente dito.
Ainda por cima, a separação de Taiwan em relação à China continental foi o resultado de uma guerra civil, de uma fuga, de um poder que odiava. Hoje diria que é um bocadinho mais difícil de antecipar uma qualquer aproximação, quanto mais uma reunificação. Se o projeto de Xi Jinping era trazer de volta a ovelha tresmalhada, sinceramente, isto deixaria a guerra na Ucrânia, para aí numa terceira divisão. Seria, do ponto de vista dos riscos para a segurança mundial, uma coisa muito mais grave e de consequências muito mais imprevisíveis, do que esta triste guerra iniciada por Putin em fevereiro de 22.