25 fev, 2025 - 07:17 • José Pedro Frazão
O eurodeputado do PSD Sebastião Bugalho é o único português na delegação do Parlamento Europeu que assinala em Kiev os três anos de invasão de larga escala da Ucrânia pela Rússia.
Ao fim do primeiro de dois dias de reuniões, o antigo comentador confirma o desejo europeu dos ucranianos e articula a questão da defesa europeia com soluções que podem não ser apenas a constituição de um exército europeu.
Em entrevista dada à Renascença em Kiev, Sebastião Bugalho deixa críticas a Trump pela forma como pressiona para a realização de eleições neste momento ilegais na Ucrânia e explica que Bruxelas já está a procurar mapear onde é que a retirada da agência norte-americana USAID pode causar mais danos nas democracias europeias.
Que impressões lhe deixam as suas primeiras horas em Kiev, tendo em conta a realidade incerta relacionada com a posição norte-americana e aquilo que a Europa deve fazer?
A primeira impressão dos contactos com a população ucraniana aqui em Kiev é de um enorme otimismo e resiliência. Vemos uma enorme vontade de vencer e de conseguir uma paz justa. Esse otimismo realista, essa energia que consegue ser positiva no meio do negrume, foi aquilo que senti nos contatos mais sociais, com as forças vivas da sociedade. O que mais me impressiona é mesmo o contato com os ucranianos comuns, que não têm nome, de que não ouvimos falar.
Teve tempo para isso?
Claro que tivemos. Nós não estamos dentro de um casulo, apesar de Kiev ter medidas bastante restritas de segurança e de vez em quando recebemos todos um alerta no telemóvel para ir para o bunker. No próprio Parlamento, na sessão solene, estivemos com representantes ucranianos que estavam a assistir e ouvimos vários testemunhos de famílias, de soldados, de gente que perdeu filhos, cujos familiares sofreram lesões profundas no cenário de guerra, no combate.
Para não fugir à sua pergunta mais política, o posicionamento da nova administração norte-americana coloca uma questão à Ucrânia e à Europa. Nenhum de nós deve fugir dela. Nós certamente não o fazemos. E obviamente que foi tema, nas várias reuniões e trocas de impressões. Foi uma questão bastante debatida - e até central - com os primeiros-ministros e os presidentes europeus a focarem-se nela.
Enquanto portugueses e eurodeputados, com duplo mandato nacional e europeu, olhamos com o mesmo realismo para a questão transatlântica. Não abdicamos dela, mesmo quando parece que do outro lado estão a abdicar.
Temos a prioridade que tivemos desde que a invasão começou. Defender a soberania territorial ucraniana, defender o direito internacional, manter o apoio militar, político e financeiro à Ucrânia, durante a guerra e depois da guerra.
Como é que se senta a Europa numa mesa que tem poucas cadeiras para ocupar, e que deve que incluir países como por exemplo o Reino Unido? O presidente António Costa sublinhou a necessidade de haver um representante especial que pudesse agregar todas estas sensibilidades europeias. Será a melhor solução?
Não é a primeira vez que ouço essa sugestão. Já a escutei a membros da presidência do Conselho polaca. Não é exatamente uma ideia partidarizada nos fóruns europeus neste momento.A mim [essa ideia] não me pareceria mal, até porque essa aproximação deve ser mais holística do que tem sido até agora.
Vemos uma grande disponibilidade dos britânicos para falarem connosco em matérias de defesa e apoio à Ucrânia. O recém-eleito [na Alemanha] Friedrich Merz também já referiu a necessidade do ‘chapéu de chuva’ nuclear britânico e entrar em conversações com a França e com a Alemanha para proteger o continente europeu.
Tudo isso me parece lógico, mas devemos procurar uma aproximação mais generalista ao Reino Unido. Falo, por exemplo, da questão do digital.
[O vice-presidente norte-americano] J. D. Vance foi a Munique falar, essencialmente, de questões culturais e digitais. E nós, enquanto União Europeia, não podemos prescindir do Reino Unido na questão da soberania digital do continente europeu. Causou-me alguma surpresa que, por exemplo, o Reino Unido não tivesse assinado o comunicado conjunto que saiu da Cimeira da Inteligência Artificial em Paris, na mesma semana da Cimeira de Munique.
Precisamos definitivamente de contar com o Reino Unido na questão da soberania digital, do desenvolvimento da inteligência artificial de forma segura e inovadora, da proteção das nossas democracias de interferências eleitorais, que também podem ser digitais, e usar as novas tecnologias para fins mais nefastos.
Ter um interlocutor mais direto e institucional da Europa com o Reino Unido é uma boa solução, se conseguisse incluir a pasta digital.
Defende a mobilização de militares portugueses, para fazer interposição de paz na Ucrânia, no contexto das garantias de segurança que possam ser prestadas e na transição para um novo modelo de segurança na Ucrânia?
Neste momento essa questão não é unânime na União Europeia em nenhum dos seus espaços políticos ou instituições.
Por exemplo, o Governo polaco, que neste momento preside ao Conselho da União e que é muito a favor do apoio à Ucrânia - e que aumentou a sua despesa em defesa e segurança para lá do exigido pela NATO - não é a favor de colocar as suas tropas numa missão de manutenção de paz na Ucrânia depois de um cessar-fogo e depois de um acordo de paz. Talvez devido à circunstância eleitoral que atravessa, em véspera de presidenciais.
Vai ser muito interessante olhar para o que vai acontecer na Alemanha nos próximos meses. Os mecanismos financeiros de desenvolvimento e investimento em defesa poderão ser aprofundados, agora que a Alemanha tem um novo chanceler.
Mas o que pensa sobre isso, enquanto eurodeputado?
Repare: a questão da deslocação de forças armadas nacionais para um território estrangeiro - que ainda não é Estado-membro da União, ainda não é Estado-aliado da NATO e que ainda está neste momento em cenário de guerra - seria prematuro debatê-la, desconhecendo a opinião do nosso Comandante Supremo, que é o Presidente da República, e ultrapassando o Governo nacional, que tem um Primeiro-Ministro e um Ministro da Defesa. Portanto, não é certamente o eurodeputado que vai decidir onde é que as tropas portuguesas vão.
Aquilo que gostaria que acontecesse, por exemplo, era que a ‘Bússola Estratégica’ da União Europeia, aprovada no Conselho Europeu pelos 27 Estados-membros há dois anos, que já inclui uma força de 5 mil militares originários das várias Forças Armadas nacionais de cada Estado-membro, pudesse ter um papel ativo nessa manutenção de paz.
Se me pergunta se acho que, dessas 5 mil tropas que estão previstas na ‘Bússola Estratégica’ europeia com o aval dos 27 Estados-membros, parte desse contingente tivesse uma presença gradual e alternada no território ucraniano como força de manutenção de paz depois de um acordo de paz, isso não me chocaria. Se algum desses 5 mil soldados será português? É muito provável.
Estamos a falar de tropas europeias de países que também pertencem à Nato. Não seria uma provocação à Rússia?
Nem todos os países da União Europeia são países da NATO, mas sim, é previsível que coincidisse na maioria, é verdade.
Não me tenciono pôr na cabeça de Vladimir Putin, Mas se perguntarem ao presidente da Rússia se prefere que a Ucrânia faça parte da NATO ou se prefere ter tropas europeias que também são membros da NATO no território ucraniano, talvez ele preferisse a segunda opção à primeira.
Mas, com franqueza, prefiro responder a perguntas com base nas opções democráticas e democraticamente sufragadas do povo ucraniano do que nos caprichos de um ditador de uma superpotência.
Qual é a impressão que retira dos contatos vários em relação à percepção da elite política ucraniana em relação a esse cenário?
Tive a oportunidade de reunir com interlocutores que apoiam o governo de Zelensky mas também reuni com presidentes de comissões parlamentares chefiadas por partidos da oposição e também pelas próprias forças políticas que sustentam o atual governo. Parece-me claro - isto não é segredo para ninguém - que há um desejo bastante consensual entre as várias forças políticas ucranianas de fazer não só parte da União Europeia, como fazer parte da Aliança Atlântica.
Também me parece que os pressupostos com que os decisores e os representantes eleitos ucranianos estão a fazer política, formam as suas opiniões e baseiam as suas decisões são mais factuais do que alguns participantes, ou pelo menos opinadores, deste conflito.
Como assim?
Os ucranianos sabem que a Rússia só tem neste momento 20% do seu território. Não estou a desvalorizar mas ao contrário do que dizem algumas forças ou entidades políticas, a Rússia não está a ganhar a guerra. Para ter 100% do território ucraniano, à velocidade com que está a conquistar nos últimos 6 meses, a Rússia demoraria 83 anos Esse cálculo vem do Instituto de Estudos da Guerra, que tem acompanhado o conflito desde o início
Uma das coisas que me agradaram nas conversações com os vários membros do parlamento ucraniano, independentemente de serem mais ou menos favoráveis ao governo em funções - lei marcial e em cenário de guerra - é que fundamentam as suas decisões e posições em factos. E esse parece-me o ponto de partida mais saudável para conseguir um acordo de paz.
Falando em factos e em eleições democraticas, tem-se levantado o debate sobre a situação política do próprio Zelensky. A lei marcial está em curso até 9 de maio e há um prazo constitucional que permite a realização de eleições nos meses seguintes ao fim da lei marcial.
Essa clarificação eleitoral seria benéfica em algum tipo de contexto também para a Europa ou a Europa simplesmente deve avançar, independentemente dessa clarificação interna, ao nível da sua cooperação militar com ‘botas no terreno’?
Colocar ‘botas no terreno’ é um cenário que só se coloca depois de um cessar-fogo e de um acordo de paz. Estamos muito longe dos dois neste momento.
O processo eleitoral interno ucraniano não é um fator da equação?
A discussão ou o debate sobre o processo eleitoral neste momento não se coloca, porque não há um líder da oposição a pedir eleições. Não há nenhum partido da oposição - não reuni com nenhum que me viesse a dizer que a lei marcial devia ser suspendida no curto ou médio prazo. Segundo a Constituição Ucraniana, só se pode convocar eleições fora do período em que a lei marcial esteja a ser instaurada.
Fazer insinuações eleitorais durante este período roça não só a inconstitucionalidade como a ilegalidade. Foi uma das declarações, no meu entender, mais perigosas da parte dos nossos aliados americanos - que são nossos aliados e que não vão deixar de ser - que talvez não tenham pensado nas consequências das suas declarações, nomeadamente para o espaço europeu. Aquele que é considerado o grande líder da ordem internacional do pós-segunda guerra defendeu a convocatória de uma eleição ilegal - porque se a Ucrânia tivesse eleições hoje, seriam eleições contra a sua própria lei, contra a sua própria Constituição.
Imagine o luxo que não é, para um separatista russófilo em qualquer país dos Balcãs Ocidentais - a região da Europa mais favorita ao alargamento e à integração europeia além da Ucrânia - ouvir os Estados Unidos da América a apelar à convocatória de uma eleição contra a lei.
Sei, por exemplo, o que acontece na Bósnia quando se ouvem essas notícias da parte do outro lado do Atlântico. Se os Estados Unidos da América querem uma eleição ilegal na Ucrânia, então também quer um referendo ilegal na Bósnia?
Portanto, este tipo de posições, talvez alvo de pouca reflexão e fundamentação legal e constitucional, corre o risco de inspirar, voluntariamente ou não, um tipo de separatismo muito pouco saudável não só para as democracias europeias, mas como para o próprio projeto europeu. Se foi propositado, foi mau. Se não foi propositado, não deixa de ser.
A Presidente da Comissão Europeia vai apresentar na próxima semana um plano de armamento europeu, no Conselho Europeu que o Presidente do Conselho Europeu convocou para 6 de Março. Para onde é que caminha a defesa europeia? Para a constituição de uma autonomia de um exército europeu? A Europa pode ser empurrada para aí?
A Europa, para usar a sua expressão, está a ser empurrada pela realidade que a rodeia e ainda bem que é assim. E está a ser incentivada, para usar uma expressão mais simpática, a ser mais autónoma do ponto de vista estratégico, não só na questão alimentar ou na questão sanitária, mas em concreto, graças a esta circunstância em particular da ameaça russa, à questão de defesa e militar.
A partir do momento em que assumimos que queremos ter mais despesa de defesa, mais investimento em defesa, mais autonomia de defesa, não é inevitável termos um exército europeu. É como uma pessoa que não tem uma porta e, de repente, decide que quer uma casa com piscina. Entre o 8 e o 80 hámuito para andar. Não funciona assim.
Ouço um debate muito saudável sobre soluções que podem acontecer muito rapidamente. Os chamados ‘países frugais’, que foram de facto bastante conservadores e ortodoxos no ponto de vista orçamental durante a crise das dívidas soberanas e da zona euro, têm uma posição completamente diferente, por exemplo, sobre a emissão de dívida conjunta para investimentos em defesa,
Os chamados ‘defense bonds’ estavam no nosso manifesto eleitoral, e provavelmente, acho que entre as forças europeístas portuguesas será uma matéria consensual.
A emissão de dívida conjunta para a defesa europeia, até entre os países mais conservadores do ponto de vista orçamental, e agora com a Alemanha, com o novo chanceler, é mais provável.
Mas, por exemplo, a presidência polaca, através do ministro dos negócios estrangeiros, veio à comissão de assuntos externos do Parlamento Europeu, e tem uma ideia bastante inovadora - que também poderá estar também poderá ser lançada como solução nas próximas semanas - que é a ideia da criação de um banco de fomento europeu só para investimentos em defesa. Ou seja, transformar o investimento em defesa mais na lógica do investimento do que no endividamento. É uma ideia ‘muito polaca’ e que poderá definir a sua presidência do Conselho com Donald Tusk, que conhece bem a Europa, porque foi presidente do conselho europeu.
Vejo uma Europa que, face à invasão e à guerra de agressão injustificada da Rússia, face a uma posição mais hostil e por vezes incompreensível dos Estados Unidos da América, que às tarifas respondeu com tarifas, em 12 horas.
Respondeu à possibilidade de levantamento do pacote de sanções americanas à Rússia com um novo pacote, o 16º. À possibilidade de desinvestimento americano em defesa europeia e até possível remoção de tropas americanas do leste europeu, está a responder com pacotes de investimento e com possíveis políticas integracionistas de defesa.
Portanto, ao contrário daquilo que os pessimistas diziam, a Europa ainda conta. Ao contrário daquilo que os eurocéticos diziam, a Europa tem soluções. E ao contrário daquilo que criticam, muitas vezes gratuitamente, o projeto europeu, estamos a fazê-lo a uma velocidade como nunca tínhamos feito. Com uma ousadia política que nunca tínhamos tido, que não tem precedentes históricos na União e vamos ser capazes de resolver os problemas que a realidade coloca dentro de nós.
Não tenho dúvidas nenhumas disto. Não é uma questão partidária, não é um salto de fé, não é ingenuidade, não é sequer uma crença europeista desmedida. É a realidade à frente dos meus olhos.
Dentro desta lógica de reação proactiva que a União Europeia tem demonstrado, há um exemplo flagrante das últimas semanas, que é o caso do desfinanciamento da USAID, a Agência dos Estados Unidos da América para a ajuda e para o desenvolvimento internacional.
Posso aqui dizer que a Comissão Europeia nas últimas duas semanas já começou a mapear, nomeadamente na região dos Balcãs Ocidentais, que projetos estratégicos democráticos poderão vir a ter financiamento europeu para compensar a saída das verbas americanas, para conseguirmos impedir o recuo democrático, da participação cívica, europeísta, democrática, e impedir ou travar o melhor possível a interferência russa através de meios digitais e subversivos, como tem sido o seu apanágio, nomeadamente na Georgia e na Moldávia.
Portanto, neste momento, a uma velocidade assinalável e notável, a Comissão Europeia tem respondido. Neste momento, a Comissão Europeia já está a mapear onde é que o vazio da USAID pode prejudicar ou ferir as democracias, não só europeias, mas como aquelas que querem vir a fazer parte da nossa família.