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Entrevista Renascença

Tiago Pitta e Cunha: "Sem o Oceano, a Europa não tem profundidade estratégica. É cega, surda e muda"

30 mar, 2025 - 15:03 • José Pedro Frazão

A Fundação Oceano Azul e o Governo de França lançam este domingo e segunda-feira em Paris um SOS ao mundo sobre o estado dos oceanos. Em entrevista à Renascença, o presidente executivo da Fundação com sede em Lisboa, Tiago Pitta e Cunha articula a defesa do Oceano com a segurança europeia e defende que é preciso que as lideranças políticas passem das palavras às ações concretas neste domínio.

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Na noite deste domingo, a Torre Eiffel vai ganhar uma cor azul para tentar 'iluminar' as consciências para a defesa dos oceanos. O encontro SOS Oceano, co-organizado pelo Governo francês e a Fundação Oceano Azul, pretende lançar um alerta global sobre a necessidade de proteger os oceanos.

Um dia de mesas redondas antecede o segmento de alto nível, durante a manhã de segunda-feira, com Emmanuel Macron como anfitrião e intervenções do presidente do Conselho Europeu, António Costa, do ex-vice-presidente norte-americano e ambientalista Al Gore, da ex-presidente do Chile e antiga alta-comissária da ONU para os Direitos Humanos Michelle Bachelet e do ator Harrison Ford, vice-presidente da Conservation International, entre outras personalidades.

A necessidade de uma acção concreta é que move este encontro que junta o governo francês e a Fundação Oceano Azul, cujo presidente executivo Tiago Pitta e Cunha está na primeira linha da organização do evento.

Este encontro precede a Conferência dos Oceanos da ONU de Nice, em junho. Qual é o objetivo deste evento em Paris?

Esta conferência pretende levantar a cortina, com clareza e clarividência, sobre o que vai acontecer em Nice. Isso significa gerar este SOS que o Oceano lança como um apelo. Sabemos que a crise profunda do Oceano se está a agravar. Há 10 anos ou há 20 anos essa crise era menor. Quando nós falamos, por exemplo, em poluição de plásticos ou mesmo qualquer tipo de poluição, estamos pior em 2025 do que estávamos em 2024 ou 2023. Não conseguimos ainda inverter o estado das coisas. Para isso, é preciso haver muito maior capacidade política e um enquadramento de governação do Oceano a nível multilateral que não existe. Esta conferência vem lançar este apelo. É tempo de pararmos apenas com as declarações políticas. É necessário tomar ações, desenhar uma agenda urgente de 2025 a 2030 para trazer as soluções que o agravamento dos problemas dos Oceanos exige.

Esse discurso também se nota na questão das alterações climáticas, com uma sucessão de declarações a fazer apelo a uma ação urgente. No Eurobarómetro publicado esta semana, os europeus mostram querer mais defesa, mais segurança e as questões de clima diminuíram na agenda dos europeus e, em particular, dos portugueses. Não são sinais preocupantes que podem pôr em causa este impulso que quer ser dado ao nível dos oceanos?

Se virmos o que temos sido bombardeados pela imprensa, se virmos o que está a acontecer com a geopolítica mundial, compreendemos que as pessoas pensem primeiro na sua segurança física antes de pensarem na sua existência. Aquilo que está a acontecer com o oceano, como está a acontecer com o clima, é um tema de sobrevivência existencial da espécie humana. Mas talvez não tanto de segurança física dos europeus, em particular.

Também sentimos o que está a acontecer, e principalmente com as notícias que nos estão a trazer sobre a necessidade da Europa se rearmar. É normal que as pessoas estejam neste momento com o coração no sobressalto cívico que diz respeito a esta necessidade da Europa de ter, de um dia para o outro, de tomar conta de si própria em termos de defesa militar. Isso é absolutamente natural.

Agora, ninguém deve ter ilusões que o Oceano, na Europa principalmente, é exatamente aquilo que pode reforçar a nossa segurança e nossa defesa. Ele é o espaço do nosso livre-arbítrio, o nosso espaço vital. Sem o Oceano, a Europa não tem profundidade estratégica, a Europa é surda, cega e muda. Mesmo as comunicações por internet de que dependemos atualmente para todos os atos da nossa vida, incluindo para os nossos sistemas de defesa militar, vêm através das fibras óticas dos cabos submarinos.

A Europa necessita da energia que vem pelo oceano. Grande parte da energia da Europa é produzida fora do continente europeu e, atualmente, também já é produzida ao largo das nossas costas, através das energias renováveis e do eólico offshore. E vem também, obviamente, por causa do comércio. A Europa é o principal exportador através do comércio mundial. O comércio mundial, em 90%, viaja por navio e, portanto, a segurança das embarcações, da navegação, das infraestruturas críticas como os portos, é fundamental para a Europa. Neste sentido também, o mar é um fator geopolítico de enorme importância para os europeus.

Mas o SOS é para a sociedade civil ou é, sobretudo, para as lideranças políticas?

É para as lideranças políticas. O SOS é um evento sem precedentes na história das grandes conferências das Nações Unidas. Aqui temos, pela primeira vez, um país co-anfitrião, a França - co-anfitrião com a Costa Rica da organização de uma conferência das Nações Unidas, que tem lugar em França, em Nice - que decide levantar a cortina sobre essa conferência, a dois meses dela ter lugar, não com chefes de Estado ou numa conferência intergovernamental, mas escutando um apelo da sociedade civil.

É isto que a Fundação Oceano Azul procurou fazer. Tivemos este papel já na conferência das Nações Unidas em Lisboa. Nessa altura procurámos trazer a sociedade civil internacional para aderir a essa conferência em Lisboa e neste momento estamos um pouco a fazer a mesma coisa.

A Fundação Oceano Azul considera que é fundamental que a sociedade civil lance estes apelos para que, de alguma maneira, haja uma resposta por parte dos Estados Membros das Nações Unidas, para que não se fiquem por declarações. Para que efetivamente compreendam que é necessária uma agenda transformadora para a gestão e a governação do oceano, que, entre 2025 e 2030, pelo menos consiga elevar o nível de importância da ação do oceano ao nível de importância atual da ação do clima.

O processo eleitoral veio 'estragar as contas' da posição portuguesa, tendo em conta os processos que vão ficar um pouco suspensos?

Portugal irá seguramente menos bem preparado para uma conferência como a das Nações Unidas sobre o Oceano em Nice, devido à crise política e à queda do governo. Há um impacto já muito direto e concreto para um país que quer ser líder da agenda internacional multilateral do Oceano nas Nações Unidas.

Não ter conseguido ser um dos países que vai estar na linha da frente a ratificar o Tratado do Alto Mar, que é um dos principais contributos que o sistema multilateral gerou recentemente, vai ser algo com enorme peso negativo para Portugal. A única coisa que me consola um pouco é que, enquanto perdemos a possibilidade de ratificar a entrada em vigor do Tratado do Alto Mar, o Parlamento português, numa medida altamente pioneira, foi o primeiro na Europa e um dos primeiros no mundo a assumir a necessidade de uma moratória para não iniciar a exploração mineira subaquática até 2050, através de uma lei da Assembleia da República. E isso faz toda a diferença. Há países que assumiram resoluções parlamentares, mas na Europa nenhum país assumiu uma lei. Isso dá a Portugal também um contributo muito grande para dizer que, não ratificando o Tratado do Alto Mar, foi dos primeiros países a adotar uma lei como esta, tão importante para a sustentabilidade do Oceano.

A Fundação Oceano Azul fica à margem das eleições legislativas ou vai tentar sensibilizar a classe política para este tema?

A Fundação tem tido um papel de sensibilização da classe política. Procuramos sensibilizar todos os partidos políticos exatamente da mesma maneira. Não temos quaisquer escolhas políticas, somos totalmente agnósticos nesse capítulo, mas sabemos que os políticos são os interlocutores e os representantes da Nação, através dos parlamentares eleitos. Como tal, dirigimo-nos a todos os programas dos partidos políticos, como fizemos no passado com impactos muito positivos.

A Fundação teve, por exemplo, um papel muito importante na conformação final do Plano de Resiliência e Recuperação português , no que diz respeito à economia azul. Prova disso foi uma revisão desse plano na altura, que permitiu criar uma agenda competitiva para a economia azul, atualmente protagonizada pelo consórcio INOVAMAR. Também na área da educação, a Fundação conseguiu fazer grandes mudanças nos programas eleitorais do passado. Pensamos que Portugal tem uma oportunidade enorme nesta agenda do Oceano.

Na Europa, as coisas estão a progredir muito rapidamente e a Fundação Oceano Azul foi pioneira neste novo momento criado na União Europeia com o Pacto Europeu para o Oceano, com o grupo de reflexão Europe Jacques Delors.

Neste momento há conclusões do Conselho Europeu sobre o Oceano, coisa que nunca aconteceu antes. Temos o Parlamento Europeu muito mobilizado e a Comissão Europeia a trabalhar ativamente para, antes da Conferência das Nações Unidas, apresentar o Pacto Europeu Com o Oceano. Será um pacto em que os europeus dizem que vão tratar do Oceano, esperando que o Oceano venha a tratar de nós. Sabemos que isso é fundamental também para a prosperidade, mas também para a segurança dos europeus.


A Renascença viajou a convite da Fundação Oceano Azul

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