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Cunha. Turismo e tradição travam mais uma batalha num restaurante do Porto

31 out, 2017 - 12:33 • João Carlos Malta (texto), Gonçalo Costa (fotos)

Começou por ser, há mais de um século uma padaria, ainda na Rua de Santa Catarina, e tornou-se num dos restaurantes mais famosos do Porto e do país. Agora, vive uma batalha pela sobrevivência. Há duas semanas, os proprietários receberam uma carta com uma ordem de despejo.

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"- Estão interessados em continuar?

- Estamos interessadíssimos.

- Nós estamos muito interessados que a Cunha lá continue muitos anos."

O diálogo reproduzido por Fernando Ferraz, proprietário do restaurante "Cunha", com os novos donos do prédio Emporium, no centro do Porto, decorreu há cerca de meio ano, após a RAR vender o imóvel ao fundo Emporium 658, investimentos imobiliários lda.

O gestor do restaurante, por onde há várias décadas passa toda a elite da sociedade portuense e nacional, garante à Renascença que andava um pouco nervoso com a mudança de proprietário, mas que depois dessa conversa ficou "tranquilo".

"Acreditámos cegamente. Vim de lá completamente descansado. Não notei nenhuma situação menos clara", lembra Fernando Ferraz que gere aquela casa há 26 anos.

Uma carta "armadilhada"

Até que há duas semanas tudo mudou. A "bomba" chegou por correio. Uma carta anunciava que até Abril do próximo ano, "Cunha" tinha que deixar o espaço que desde há décadas é ocupado por aquele restaurante emblemático.

"Fiquei apavorado. Disseram-nos uma coisa e agora dizem-nos outra", lembra Fernando Ferraz.

Em campo, o proprietário tem já um pedido junto da autarquia do Porto para classificação da Cunha como loja histórica. Põe todas as esperanças nessa acção.

A Cunha foi projectada no início dos anos 70 pelos arquitectos Victor Palla e Bento d'Almeida, sendo o Galeto, na Avenida da República, em Lisboa, inaugurado em 1966, outro dos lugares icónicos projectados pela dupla. Aliás ambos são muito idênticos na concepção e estilo.

Um restaurante das pessoas e chique a valer

O restaurante no cruzamento da rua Sá da Bandeira com a rua Guedes de Azevedo percorre o imaginário de muitas pessoas no Porto. É o caso de Isabel Araújo, sentada na esplanada a tomar o enésimo café na Cunha. Começou a ir ali com o pai quando ainda não andava.

"Nem qualquer um vinha aqui, era chique. Era uma confeitaria de referência. Nós vínhamos buscar doces no Natal porque era a época em que gastamos mais dinheiro, mas não podíamos vir todas as vezes comprar os chocolates e os húngaros", lembra Isabel.

O restaurante já acompanha a família há pelo menos três gerações. "A minha filha já cá fez uma festa de anos. Eu agora já venho de vez em quando, não venho cá com muita regularidade, mas passo sempre para tomar um café ou comer uma francesinha fora de horas", afirma.

Hostels e pouco mais

Também o ex-funcionário diplomático, José Ribeiro, de 68 anos, é cliente da Cunha desde 1984. As recordações do espaço multiplicam-se, mas todas vão ter aos sabores dos pasteis.

"Recebi a notícia com tristeza. Vamos ver se não vai para a frente e se conseguem lutar para manter a confeitaria", apela José. Mas reconhece que não será fácil. "Hoje em dia, a cidade do Porto está para 'hostels' e pouco mais", adianta.

"O turismo está a ganhar a batalha. Tem coisas boas, criou empregos e várias coisas boas. Mas a gente da cidade está a sair para os dormitórios fora do Porto", lamenta.

Também Isabel põe a tónica do que ali se está a passar numa luta entre o "boom" turístico e a tradição.

"O Porto está a crescer. Estou muito contente com a cidade, está a ficar muito bonita. Mas este tipo de lojas históricas não pode deixar de existir. Quando vamos a uma cidade estrangeira procuramos os locais antigos", defende.

O dono da Cunha não tem dúvidas de que a confirmar-se a saída do restaurante daquele espaço, algo que não acredita que se concretize, o destino do espaço será um: dar guarida a turistas. Depois poderá ter o nome ou de hotel ou de alojamento local.

Sessenta pessoas em risco

Mas se a dimensão histórica e arquitectónica da Cunha, da qual Siza Vieira chegou a dizer a Fernando Ferraz que nada devia mudar por se tratar de uma obra-prima, é importante, há uma dimensão laboral também relevante. Naquele espaço estão empregadas mais de 60 pessoas.

Conceição Lopes trabalha ali há mais de 30 anos e foi com uma enorme tristeza que recebeu a notícia de um possível despejo.

"Não acredito que isto se vai tornar realidade. Acho que algo vai acontecer e ajudar que a Cunha se mantenha pelo menos mais um século", vaticina.

É isso que espera também Fernando Ferraz que vai ao baú da memória buscar as recordações que lhe enchem o dia-a-dia. Uma das mais fortes é a de um Mário Soares enlameado pelas obras da rua e a chuva do Inverno que chegou à Cunha com um pedido vindo de Lisboa.

"A mulher (Maria Barroso) adorava os bombons da Cunha e ele dizia que se viesse ao Porto e não comprasse bombons tinha problemas", diz entre risos.

A Cunha era e é frequentada por artistas, políticos e futebolistas (Ferraz garante que foi ali que Sá Pinto firmou a saída do Salgueiros para o Sporting). Um património humano a que se junta o arquitectónico e o cultural, e que leva Fernando Ferraz a questionar: "Se a Cunha não é um edifício e um local de interesse histórico e que se tem de manter, então o que é?".

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