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Sever do Vouga. Na terra onde ninguém dorme, só se fala de fogo posto

18 set, 2024 - 07:00 • Catarina Santos

Autarcas exaustos, populares aflitos, fogos que começam subitamente. “Enquanto não houver um castigo verdadeiro, não vai lá”, desabafa quem vai a caminho da terceira noite sem descanso. Reportagem em Talhadas, Sever do Vouga.

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Uma nuvem de fumo preto começa a sair, de repente, do meio de uma zona de mato. Não há fagulhas no ar e o vento já não está tão intenso como nas horas anteriores. Alguns populares sobem a rua em sobressalto a avisar que viram movimentos suspeitos na zona por onde o fogo agora avança.

A tarde vai longa e alguns elementos do corpo de bombeiros da Vidigueira tinham parado na rotunda ali ao lado para render os colegas. Começam a estudar formas de chegar ao local. O terreno é acidentado, não parece tarefa fácil.

“Onde é que vai o gajo do trator?”, questiona um deles. Os populares que tinham vindo pedir ajuda já se puseram a caminho, por estreitos caminhos de campos, munidos com bidões de rega.

Carros de bombeiros não faltam por ali ao pé, junto à rotunda da Nacional 328, que dá início à freguesia de Talhadas, em Sever do Vouga. É um dos pontos de reabastecimento de água que vai servindo as várias corporações a operar na zona.

Em pouco tempo, uma corporação acede por outro caminho rural e junta-se à equipa de primeira intervenção da Junta de Freguesia de Talhadas. Vários populares contribuem com baldes de água e atacando as chamas com ramos.

“Presumimos que seja fogo posto, mas não temos a certeza de nada”, afirma o presidente da junta, António Dias, que sobe e desce a ladeira sem parar.

“Rapidamente se propagou e iria ser muito complicado para uma oficina que temos a norte e uma empresa [de materiais de construção] que há aqui a poente”, explica.

Em torno do foco de incêndio há também dezenas de casas, rodeadas de campos e jardins, que os habitantes começaram prontamente a regar. Horas antes, os que dependem de um motor para aceder a água não teriam conseguido fazê-lo, porque a luz esteve cortada durante boa parte do dia.

— A GNR não vem aí?

— O presidente chamou o comandante, para ver se o apanha.

— Não precisa de ir muito longe.

As conversas entre os vizinhos que se juntam na ladeira têm todas o mesmo tema.

“Vi aqui algumas pessoas a comentar que foi um indivíduo que foi comprar pão e que passou aqui”, conta António Ferreira, 56 anos, dono do restaurante Manjar da Pedra, uns 200 metros acima do local do fogo. “É totalmente estranho. E dá-me impressão que já é a segunda ou terceira vez que acontece isto.”

“Já viemos hoje duas vezes e esta foi a terceira”, acrescenta António Fernandes, dono de um terreno agrícola a dois passos do foco de incêndio.

“Consta-se que se estão a passar algumas coisas estranhas. Apesar da natureza e do vento, e as matas não estão conforme deviam estar, mas também há coisas que a gente não consegue perceber bem”, remata.

O assunto havia de ser endereçado ainda nessa noite pelo primeiro-ministro. Luís Montenegro prometeu que o Estado “vai atrás dos responsáveis” pelos incêndios florestais nos casos em que há mão criminosa, anunciando a criação de "uma equipa especializada em aprofundar com todos os meios a investigação criminal à volta dos incêndios florestais".

Aquele fogo acabou por consumir dezenas de árvores, mas conseguiu-se travar a progressão para os terrenos circundantes. Ficou a dois passos do campo e do barracão onde António Fernandes e a mulher, Fernanda Ribeiro, guardam o material agrícola.

“A gente não dorme de noite. E vai ser toda a noite outra vez, porque nós temos a casa acolá daquele lado e ele também está a vir da A25 para cá. Vai ser toda a noitinha”, vaticina Fernanda.

“Vai ser muito complicado, porque são terrenos que têm uma grande manta morta e potenciam o ressurgimento dos incêndios”, sublinha o presidente da junta de freguesia de Talhadas.

Para António Dias, o mais complicado é perder habitações para o fogo, como aconteceu esta terça-feira. “Conseguimos salvaguardar uma, a outra já não conseguimos. Porque não há meios”, afirma. “Eu entendo, os incêndios são muitos, os bombeiros têm recursos limitados, como todos nós, e torna-se difícil acudir a tudo”. A moradia que ardeu era de segunda habitação.

Apoios não serão atrasados por “burocracias”, garante ministro

Entre as dezenas de populares que assistem ao rescaldo junto à rotunda, ninguém pensa em descansar nas próximas horas.

“Daqui a pouco começa a levantar o vento...”, antecipa António Ferreira, que na noite anterior viu dois armazéns, na zona industrial de Talhadas, serem completamente consumidos pelas chamas. "Durante a noite e a madrugada foi uma loucura”.

Foi “naturalmente fogo posto”, afirma o presidente da Câmara Municipal de Sever do Vouga. Com os olhos vermelhos e ar visivelmente extenuado, Pedro Lobo assegura que “era impossível chegar uma fagulha” àquela área de fábricas.

As empresas afetadas — uma de madeiras e outra de materiais de casa-de-banho — foram visitadas na tarde desta terça-feira pelo ministro da Coesão Territorial. Depois de ouvir os empresários afetados, Manuel Castro Almeida garantiu celeridade na resposta.

“Não vamos deixar atrasar com burocracias os apoios, que é uma coisa que muitas vezes acontece. Isto vai ser muito diligente”, assegurou o governante.

Enquanto o ministro falava, ouvia-se estruturas a cair no interior dos armazéns ardidos. Ao fundo da colina, ali mesmo ao lado, um aviário era consumido pelas chamas.

“A presidente da comissão de coordenação vai rapidamente fazer a vistoria das fábricas para ver a dimensão do prejuízo e calcularmos depois a natureza e o montante dos apoios. A partir daí, está nas mãos dos empresários andarem depressa com as obras e nós andaremos depressa com o apoio, para que rapidamente os operários possam reentrar na fábrica e começar a trabalhar.”

A presença de Castro Almeida chamou outros habitantes ao local. João Silva contou ao ministro como o campo de futebol, balneários e arrecadações da Juventude Académica Pessegueirense, ali ao lado, foram destruídos, deixando cerca de 100 jovens atletas sem treinos por uma temporada que se prevê longa.

“O equipamento como o seu campo não estava aqui no nosso esquema”, respondeu Castro Almeida, assegurando, contudo, que procuraria “encontrar também uma fórmula para poder ajudar”.

O primeiro-ministro admitiu acionar o fundo de solidariedade europeu para fazer face aos danos provocados pelos incêndios dos últimos dias.

“Eu sou uma pessoa de esperança, tenho fé.” É assim que o presidente da câmara reage às garantias do Governo. “Tenho estado em contacto com o Governo diretamente e confio que se vai poder ajudar esta gente toda”, diz Pedro Lobo.

Tem procurado reunir “calma e coragem” para enfrentar uma situação que não o deixa dormir há vários dias. “Temos evitado sobretudo as casas, pessoas, empresas, animais."

O autarca lamenta que haja localidades “onde foram as próprias pessoas a tomar conta dos seus incêndios”.

“Nós não conseguimos chegar a todo o lado. Gostaria de ter um meio para cada pessoa, mas não consigo”.

Depois de enfrentarem rajadas de vento de 85 km/hora na madrugada anterior, Pedro Lobo teme o que está por vir. “Vamos ver como será a noite. Neste momento já arderam seguramente mais de sete mil hectares em Sever do Vouga”, remata, antes de arrancar para outra emergência.

“Enquanto não houver um castigo verdadeiro, não vai lá”

— As nossas casas ficam mais ou menos a quantos metros?, pergunta Fernanda às vizinhas.

— Em linha reta? Para aí 100 metros, responde Perfeição Silva.

— Só que temos acolá outra frente. A gente não sabe onde acudir.

Perfeição tem 55 anos. Também assiste ao rescaldo do fogo que poupou oficinas e casas ao fim da tarde de terça-feira. Outros terrenos seus, no lugar de Macida, arderam na última noite. “E não apareceu lá ninguém, tiveram de se ajeitar sozinhos”, lamenta. “O que é que a gente há de fazer? Enquanto não houver um castigo verdadeiro, não vai lá”.

Tal como os vizinhos, está convencida de que a origem do fogo é humana e intencional. “Eu fui a casa do meu filho levar um saquinho com umas couvinhas para os animais, vim para cima e não se via nada - e eu olhei, porque esta parte é toda minha, deste lado. Vim para baixo e já começo a ver lume pelas árvores acima. Foram para aí quatro minutos.”

A madrugada anterior foi de pouco ou nenhum descanso para os habitantes de Talhadas e Fernanda reforça que esta vai pelo mesmo caminho. “Isto de noite vai arder tudo até lá adiante. Não há hipótese. Porque é muito vento, muito vento, muito vento! Há quatro dias que é tanto vento...”, lamenta a mulher de 69 anos.

O dono do restaurante Manjar da Pedra também não tem conseguido descansar mais do que um par de horas desde domingo. “Já nem estou a falar em negócio, esqueça, as pessoas querem é fugir daqui, porque estes últimos dias têm sido difíceis para todos nós. Estamos a ficar saturados.”

Deixámos para trás o fogo que não passou de um susto e, mal regressamos à Nacional 328, chamas aparatosas escalam a parede de árvores por trás da rotunda. Logo à frente, no cruzamento com a A25, a dimensão do incêndio revela-se com mais exatidão. Vários bombeiros e meios terrestres lutam contra as labaredas, numa encosta inclinada. O acesso está cortado pela GNR.

Poucos quilómetros adiante, vários populares vigiam o avançar de outro foco de incêndio, numa espécie de varanda natural que permite fazer uma panorâmica que começa na freguesia de Talhadas, alcança Albergaria-a-Velha ao fundo e deixa adivinhar, à direita, o centro de Sever do Vouga.

Na vinda para Talhadas, em pleno dia, tínhamos encontrado ali Paulo Dias e o pai, naturais da aldeia de Arcas, na freguesia de Talhadas. Tinham subido àquele ponto alto para vigiar o andamento das chamas. “Se passar esta estrada, é quase certo que lá chega. Estamos aqui a tentar perceber se chega lá ou não”, contava Paulo.

Já a noite ia alta e pai e filho continuavam a circular por aquelas estradas, sem desviar os olhos das várias frentes de fogo.

Pela 1h da manhã desta quarta-feira, o presidente da Câmara de Sever do Vouga falava de “múltiplos reacendimentos e múltiplos pontos de incêndio”, descrevendo a evolução da situação como “imprevisível”.

“Estamos dependentes da natureza, do que o vento fizer”, restando, afirmava, “tentar com os meios que temos disponíveis” - e que “são manifestamente poucos”.

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