13 jan, 2025 - 07:00 • Fábio Monteiro , Salomé Esteves (infografia)
Vasco e Dinis, 22 e 23 anos, partilham um problema: a adição ao jogo. Ambos desenvolveram a compulsão quando ainda eram menores. Começaram no universo analógico, mas depois transitaram para o online, confundiram sorte com perspicácia e perderam milhares de euros em apostas (maioritariamente) desportivas.
Os dois estão em recuperação e participam regularmente em reuniões dos Jogadores Anónimos – comunidade de apoio estruturada à imagem dos Alcoólicos Anónimos. E contam cada novo dia sem jogar como uma conquista.
No sábado, 11 de janeiro, Dinis comemorou um ano sem recaídas, o período mais longo desde que começou a jogar, aos 12 anos. Vasco, que principiou um pouco mais tarde, aos 15, também já ultrapassou a barreira dos 365 dias. Não joga desde 24 de novembro de 2023.
“Não há uma semana que não passe sem fazer reuniões [dos Jogadores Anónimos]. Tenho de ter todas as semanas alguma coisa que me lembre que sou jogador”, conta Dinis, estudante de Medicina na Universidade da Beira Interior, à Renascença.
A adição do futuro médico começou com uma aposta inocente, em família, no site Placard, dias depois do jogo da Santa Casa da Misericórdia ter sido lançado, em setembro de 2015. (E cerca de quatro meses após ter sido aprovado o Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online.) Então, estava no 8.º ano e vivia em Viseu, cidade de que é natural.
Dinis pediu ao pai, que costumava jogar no Euromilhões, para apostar “um euro com ele” no Placard. O progenitor assentiu, mas deixou um aviso: “Deixo-te apostar desta vez, mas é a última vez.”
Essa primeira aposta não trouxe retorno. Mas a adição manifestou-se. “Ganhei a compulsão muito rápido.” A motivação, garante, nunca foi financeira. Afinal, vem de uma família com algumas posses, de “classe média, classe média-alta”; tem duas irmãs, uma mais nova, ainda no 12.º ano, outra mais velha, já formada em Medicina.
Cerca de quinze dias depois da primeira experiência, Dinis voltou a tentar a sua sorte no Placard. O jogo em causa, recorda, foi o Feirense – FC Porto, para a Taça da Liga. Daquela feita, sem a ajuda do pai, arranjou forma de contornar a lei que impede menores de 18 anos de jogarem a dinheiro: o dono de um espaço onde costumava almoçar fez a aposta por ele. (Já fazia o mesmo para outros miúdos.)
“Tenho a lembrança de chegar a casa um dia e ter começado a chatear o meu pai para me deixar apostar no Placard. Não sei de onde veio a ideia. Se vi numa papelaria, se vi um anúncio", recorda Vasco, hoje com 22 anos.
“Se lhe déssemos dinheiro, ele ia lá ao café ao lado, com o NIF dele, metia a aposta. Depois, se ganhássemos, ia lá levantar. Se perdíamos, o talão ia parar ao lixo”, conta.
Dias mais tarde, em casa, com os Dragões a perderem por 2-0 diante do Feirense aos 80 minutos, Dinis sentiu-se com o “rei na barriga” e não resistiu a partilhar com os pais que fizera uma nova aposta e que, daquela vez, ia ganhar. “Eles não ficaram lá muito contentes. Foi um adulto que foi apostar por mim.”
O jovem (sportinguista e jogador de ténis “às portas” do Top50 nacional) ganhou 10 euros com a derrota do Porto, dinheiro que acabou por desaparecer em apostas seguintes. O ensinamento que retirou desta situação, porém, foi: os pais não aprovavam que apostasse, devia jogar às escondidas.
Vasco, natural de Lisboa, também fez a sua primeira aposta em contexto familiar, e no Placard. Aconteceu perto do final do 9.º ano. “Tenho a lembrança de chegar a casa um dia e ter começado a chatear o meu pai para me deixar apostar no Placard. Não sei de onde veio a ideia. Se vi numa papelaria, se vi um anúncio. Veio-me assim de repente à ideia”, diz.
O jovem lisboeta (e benfiquista) era jogador de futebol federado e tinha “ansiedade” de “ter muito dinheiro rápido”. “Andava sempre com ideias de negócio. Sempre a tentar.” Além disso, julgava saber melhor o que se passava dentro das quatro linhas do que outros apostadores. “Fazia um grande esforço para estudar os jogos. Tinha essa confiança.”
Por puro acaso, as suas expectativas quanto à sua capacidade de “antecipar” resultados foram confirmadas na primeira semana – o que ajudou a adição a espalhar raízes. Com um euro e três apostas múltiplas, ganhou 1800 euros. “Foi muito forte. Estava convencido de que sabia muito mais. De que ia fazer vida disto. E os meus pais diziam que tinha sido só sorte”, conta.
A notícia dos ganhos de Vasco espalhou-se pela sua escola. “Fui o maior”, houve “bué pessoal que começou a apostar” por causa daquele exemplo. Com os lucros obtidos, recorda, comprou uns ténis, um iPhone e uma PlayStation VR. “Deve ter sido a única vez na vida que gozei o dinheiro das apostas.” Daí em diante, tudo mudou.
Desde que há jogos de azar, existem apostadores compulsivos. O perfil, todavia, parece estar a mudar.
Entre setembro de 2023 e o mesmo mês em 2024, a maior fatia (30,9%, cerca de 83 mil) de novos registos nas plataformas de jogo online em Portugal foi de jovens com idades entre os 18 e os 24 anos.
Pedro Hubert, psicólogo clínico e diretor do Instituto de Apoio ao Jogador (IAJ), lida com o problema da adição há mais de 20 anos. O primeiro paciente que acompanhou, recorda, foi um professor catedrático de matemática, “ironia do destino”, com um grave problema de roleta e máquinas.
Num tempo ainda analógico, o jogador-tipo era um homem de meia-idade, com um certo nível social, classe média, “algum dinheiro, alguma formação”. Nos idos de 2010, porém, com o advento do online e a “febre do poker”, começou a mudar.
“Temos muitos jovens com 18, 19 anos, com problemas gravíssimos de jogo. E isso quer dizer que não começaram e não ficaram adictos num dia", afirma Pedro Hubert, psicólogo clínico.
Cético da evolução tecnológica, recorda-se de perguntar a pacientes: “Não tem medo de estar ali a meter e aquilo ser tudo combinado, aldrabado? O dinheiro na internet, que segurança? Para mim, era estranho.”
Começaram, então, a aparecer no IAJ jogadores mais jovens a procurar ajuda. Algo que se acentuou ainda mais, em 2015, com o “boom” das apostas desportivas e a aprovação, quase em simultâneo,do Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online. Uma maior acessibilidade tecnológica trouxe consigo um “potencial de dano maior”. “Cartões pré-pagos, MbWay, Paypal, toda essa panóplia de coisas facilita o acesso ao jogo.”
Nos dias que correm, a maior parte das pessoas que procuram os serviços do IAJ têm “problemas de apostas desportivas e jogo online”. Alguns, trazidos pelos pais, são ainda menores ou passaram há pouco essa fronteira.
“Temos muitos jovens com 18, 19 anos, com problemas gravíssimos de jogo. E isso quer dizer que não começaram e não ficaram adictos num dia. Normalmente, têm um percurso, que por vezes pode ser muito rápido, mas mesmo quando é muito rápido, é seis meses, um ano, ano e meio”, explica Hubert.
Uma fração desses jovens são também desportistas ou têm alguma ligação ao setor. “Pelo menos 20% dos pacientes que temos são ou foram ou estão ligados ao mundo do desporto. Isto tem uma razão de ser, são as características da competitividade, do desafio, do gosto em ganhar, etc.”
O prognóstico não é “animador”, mas Pedro Hubert não imputa culpas. O diretor do IAJ considera “bastante aceitável” a fiscalização feita pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (SRIJ): só no terceiro trimestre de 2024, enviou 47 notificações de encerramento, bloqueou 133 sites de apostas online e fez cinco participações ao Ministério Público.
Hubert defende também que o mecanismo de autoexclusão – que bloqueia o acesso a casinos (físicos) e o registo em plataformas de jogo (online) – para jogadores compulsivos, criado em maio de 2016, funciona “bem”. Já recebeu 276,2 mil pedidos de autoexclusão. (É impossível dizer de quantos portugueses estamos a falar. Por norma, cada pessoa tem mais do que um registo.)
É “muito fácil”, porém, contornar o regime de autoexclusão e outros limites legais. As pessoas “que têm problemas de jogo vão apostar em sites não-regulados em Portugal, porque têm melhores 'odds' [cotações].” E os menores que apostam fazem-no, em muitos casos, “com o Cartão de Cidadão do irmão mais velho ou até dos próprios pais”, refere o psicólogo clínico.
Vasco e Dinis desenvolveram a compulsão de forma muito rápida. Em pouco tempo, passou a dominá-los.
Para o jovem de Viseu, apostar tornou-se uma tamanha necessidade, que começou a roubar em casa. “Rapidamente comecei a roubar dinheiro da carteira do meu pai. Tirava 20 euros todas as semanas, depois passei a tirar 20 euros entre dois e três dias, depois a tirar diariamente. Os lucros eram sempre todos para a mesma coisa”, lembra.
Os pais demoraram algum tempo até se aperceberem. E quando se aperceberam, suspeitaram primeiro que pudesse ser a empregada doméstica.
Para tentar descobrir quem andava a surripiar o dinheiro, o pai marcou – em segredo – um conjunto de notas, que acabaram por aparecer na carteira do filho. “Neguei até ao máximo, quando ele me mostrou a prova, estava lá a nota marcada.”
Ser confrontado com o problema fez Dinis parar durante algum tempo. Durante a maior parte do 10.º ano, não jogou. Mas, depois, a adição voltou.
Em vez de tirar da carteira dos pais, adotou novas estratégias. Pedia dinheiro para almoçar fora com colegas. “Se ganhasse, tinha dinheiro para almoçar. Se não, não almoçava.” Pedia dinheiro para ir ao cinema. “Ficava nas escadas a fazer tempo, a ver os jogos.” Vendia também maços de cigarros dos pais a amigos.
"Descubro que consigo apostar com o cartão do meu pai. Gastei 1000 euros em vinte minutos. E só não gastei mais porque ligaram [do banco] ao meu pai”, conta Dinis, hoje com 23 anos.
Houve fases, algumas melhores, outras piores. “Parava, diminuía e depois voltava em força.” No verão do 11.º ano, a situação agudizou-se. A morte do avô deixou-o “muito mal psicologicamente”. “Avario da cabeça completamente, descubro que consigo apostar [online, poker] com o cartão [do banco] do meu pai. Gastei 1000 euros em vinte minutos. E só não gastei mais porque ligaram [do banco] ao meu pai”, conta.
Os pais puseram-no de castigo, fechado em casa durante o resto do verão, sem acesso à internet ou telemóvel. Compraram também um cofre.
Com o regresso à escola para o 12.º ano, tudo voltou ao “normal”. Sem ter mais como “roubar em casa”, Dinis procurou “outras soluções”. Quando tinha educação física na escola, “era o último a ficar no balneário”. Se as avós iam lá a casa almoçar, “saía da mesa e ia-lhes à carteira”. Descobriu ainda onde a explicadora de Matemática “guardava dinheiro”, mas acabou apanhado. “Tinha roubado 800 euros.”
Desesperados, “para não me porem fora de casa”, os pais mandaram-no para um colégio interno, até completar o 12.º ano.
Mesmo com altos e baixos, Dinis completou o secundário, com uma média suficientemente alta para entrar em Medicina. Tentou mentalizar-se: “Quando for [estudar] para a Covilhã, vai ser mesmo vida nova, conhecer pessoas novas, não quero ter fama de nada.”
Vasco não teve tanta sorte, nem tanto azar. Em retrospetiva, porém, é-lhe evidente que a adição boicotou a sua entrada na universidade.
Após os primeiros dias de lucros e fama no recinto escolar, abandonou a estratégia de “estudar” antes de apostar. “Já fazia tudo sem cabeça, no desespero e ansiedade.” Deixou de apostar apenas em futebol e passou a seguir outros desportos como ténis, basquete, basquete, futebol americano ou hóquei. “Comecei a ver tudo.” Abandonou os relvados e começou a experimentar com haxixe e álcool. “Estava um bocado mal mentalmente, fisicamente, espiritualmente.”
O jovem lisboeta nunca mais parou. Durante algum tempo, o pai continuou a meter-lhe as apostas no Placard. Mais tarde, porém, acabou por ficar “com o NIF dele” e começou a jogar com os amigos. “Tinha um rapaz na minha turma [do secundário] que já tinha chumbado duas vezes e fazia-o por mim, mas muitas vezes fazia com o NIF do meu pai”, lembra.
Quando a mesada deixou de ser suficiente para sustentar a adição, Vasco começou a inventar despesas — “contas do dentista”, um “jantar que tinha sido mais caro” — e a “deixar de sair de casa, comprar roupa”, para juntar dinheiro para o jogo.
Roubou pequenas quantias aos pais, avó e mesmo “umas moedas do mealheiro” da irmã mais nova. “Tirava pouco, nunca repararam.” As dívidas que contraiu, junto de amigos, eram “quantias pequenas, devolvia até rápido”. Ainda antes de ter 18 anos, registou-se e começou a jogar em casinos online não-licenciados para operar em Portugal, contornando as limitações à transferência de dinheiro com recurso a plataformas como a PaySafe.
O impacto da adição estava ainda mais ao menos oculto da família, quando terminou o secundário (no ano de 2020, em plena pandemia). Pesou, embora, na hora de escolher o seu futuro. Em 2021, terminado o período de confinamento e interdição de voos, com 19 anos, emigrou para a Holanda. Queria ganhar dinheiro rápido, “continuar a jogar”.
Nos últimos três anos, Vasco concorreu e foi colocado no Ensino Superior em Portugal três vezes. “E desisti sempre no primeiro mês.”
Começar a estudar Medicina na Covilhã não mudou nada para Dinis. Emigrar para a Holanda também não surtiu um efeito positivo para Vasco. Quando muito, piorou. Os dois jovens ficaram sem rotinas nem supervisão.
Os pais de Dinis foram levá-lo num domingo à Covilhã. Na segunda-feira, antes sequer da primeira aula, “foi meter uma aposta e apanhar uma bebedeira”. Entre setembro e novembro, começou a jogar online, contraiu dívidas com novos colegas. Quando deu por si, devia mais de 1000 euros a um total de 40 pessoas. “Já havia pessoas a ligar aos meus pais. Faltava a frequências, não tomava banho.”
Numa visita a casa, Dinis foi mais uma vez confrontado pelos pais. Pediram-lhe uma lista das suas dívidas e deram-lhe duas opções: “No domingo à noite vais para a Covilhã outra vez e nós não te pagamos nada disto. Arranjas-te. Ou vais para tratamento.”
Dinis foi para o Centro de Recuperação de Alcoólicos e Narcóticos (RAN) de Vila Real. (Já ligeiramente consciente do problema de que sofria, ainda antes de fazer o check-in no tratamento, pediu a autoexclusão dos jogos de azar em Portugal.) Pensava que seriam “só 15 dias”, mas os pais mentiram-lhe: foram três meses. Era o único paciente com problemas de adição com jogo – e o mais novo. Tinha 18 anos.
“Estava como numa prisão. Não fez sentido nenhum o primeiro tratamento. Mas por culpa minha. Não foi o tratamento que foi mau. Eu é que ainda tinha na cabeça que não tinha problema nenhum. Ia sair de lá e podia depois apostar, que me ia controlar. Andei a contar os dias. Recaí no dia a seguir a sair de lá”, diz.
“Na mesma semana, comprei uma PlayStation, um plasma, fui parar ao hospital quase em overdose. No final da semana, já tinha gastado o dinheiro todo", recorda Dinis.
Findo o tratamento, começou a pandemia da Covid-19. Parou o desporto. De forma artificial, o “gatilho” para o jogo de Dinis desapareceu. (Mesmo hoje não consegue ter uma aplicação de resultados desportivos no telemóvel.)
Durante nove meses, não apostou. Começou também a ser acompanhado, de 15 em 15 dias, por uma psicóloga do Instituto de Apoio ao Jogador.
Mas quando a normalidade desportiva regressou, teve a sua maior e mais grave recaída. “Descobri onde é que a minha mãe guardava o ouro e durante seis meses vendi o ouro quase todo.” Até durante as consultas de psicologia jogava. “Conseguia ao mesmo tempo estar focado em dar uma tanga à psicóloga e com um site de apostas ao lado, apostar, a ver jogos.”
Perdeu mais de 100 mil euros em apostas – no Placard, usando o NIF de amigos, e em casinos ilegais online. Se com uma aposta de 200 euros ainda chegou a ganhar 5000, rapidamente também os perdeu.
“Na mesma semana, comprei uma PlayStation, um plasma, fui parar ao hospital quase em overdose. Tinha muito dinheiro, gastei mesmo à maluco. E, depois, no final da semana, já tinha gastado o dinheiro todo. Vendi a PlayStation, vendi a televisão. Tudo o que tinha comprado, vendi a metade do preço. E apostei esse dinheiro, que acabei por perder”, conta.
A recaída só parou porque, um dia, um amigo dos pais de Dinis o viu a entrar numa casa de compra e venda de ouro e alertou-os. “A minha mãe foi ver o ouro e já só restavam três peças.”
Os pais chamaram a polícia a casa para fazer queixa do filho, mas os agentes disseram que não havia nada a fazer. “Quando estava a polícia em minha casa, quase quis ser preso para me libertar daquilo. Para não ter acesso ao jogo. Estava farto. Sabia que estava completamente agarrado. E aí não tive dúvida nenhuma de que tinha uma doença”, confessa.
Passadas duas semanas, Dinis foi internado na clínica Linha d´Água, em Leiria. Ficou lá seis meses. Ali, já não era o único com problemas de adição com o jogo. Havia um rapaz um ano mais velho. “Sei que está mal. Ainda na semana passada me veio pedir dinheiro emprestado.”
Dinis “saiu” do tratamento a 1 de janeiro de 2022, procurou ajuda junto dos Jogadores Anónimos. E continuou sem apostar durante “algum tempo”.
Desde então, sofreu duas recaídas, que coincidiram sempre com períodos em que deixou de fazer reuniões do grupo de apoio. Todavia, não voltou a gerar “grandes danos” financeiros.
Da primeira vez, mal viu que estava a dever 150 euros, pediu ajuda. Da segunda, a mais recente, passou “um mau” período de quatro meses. A 11 de janeiro de 2024, ficou com “saldo zero”, mas sem dever dinheiro a ninguém. Pediu ajuda. Fez 90 dias, 90 reuniões dos Jogadores Anónimos. Ainda não voltou a jogar.
Os sites de jogo online “sabem quem são as pessoas com adição" e "agarram-se a essas pessoas”, denuncia Vasco.
Vasco está apenas um pouco à frente do calendário de recuperação de Dinis. Por um mês e alguns dias.
Em 2021, emigrou para a Holanda, começou a trabalhar num armazém e passou a jogar exclusivamente online (quase sempre em plataformas não-licenciadas, para onde era mais fácil transferir dinheiro e fazer o registo). Recebia à semana, todas as segundas-feiras 400 euros. “E todas as quintas-feiras já não tinha dinheiro. Nem para comer.”
A ânsia de fazer dinheiro continuava a subjugá-lo. Após marcar umas férias em Portugal, meteu na cabeça que queria vir “com 20 mil euros”. Durante oito semanas consecutivas, apostou quase a totalidade do seu salário. Acabou “por vir a zero”. “Tive de pedir dinheiro ao meu pai e contei-lhe. E ele aí percebeu o problema”, diz.
Durante as férias, Vasco procurou ajuda. Foi ver um psiquiatra. Mas não gostou da experiência. “Mal falei com ele um minuto já me estava a receitar não sei quantos comprimidos, não tinha ouvido nada do que eu lhe tinha para dizer. E eu não achei que isso fosse correto.”
O clínico recomendou-lhe também que procurasse os Jogadores Anónimos. Vasco ainda apareceu numa reunião online, mas acabou “por sair a meio”. “Nunca gostei muito de coisas online, prefiro em pessoa.” Terminadas as férias, voltou para a Holanda. “Duas semanas depois, já estava a jogar outra vez.”
Assustado consigo mesmo, Vasco decidiu regressar a Portugal. Sozinho, em esforço, passou algum tempo sem apostar. Quando se sentiu mais estável, voltou a emigrar, desta feita para a Grécia, para trabalhar como animador num hotel, durante três meses. Correu tudo bem, nunca jogou.
O novo retorno a Lisboa, porém, fê-lo perder-se. “As circunstâncias mudaram e perdi tudo e mais alguma coisa. Coisas que tinha, coisas que me deram.”
Mais uma vez, o jovem português passou por um período de abstinência, “cerca de um mês”. Depois, em busca de trabalho, optou por retornar à Holanda. Na época, tomou o cuidado de mudar de email e número de telemóvel, pois já sabia que estaria sempre a “ser bombardeado com mensagens” de sites de jogo online. “Eles sabem quem são as pessoas com adição. Que só dão, dão dinheiro. Os sites agarram-se a essas pessoas.”
A última vez que recaiu foi precisamente por causa de publicidade via email. “De dois em dois dias, mandavam-me um bónus melhor. E nesse dia estavam-me a dar um bónus de 50 euros no casino, uma coisa assim. Fui lá e perdi o bónus, não joguei mais”, conta.
Desde essa data, 24 de novembro de 2023, Vasco não voltou a jogar. Tornou, sim, para Portugal, para junto dos pais, e procurou ajuda. Mal aterrou em Lisboa, autoexcluiu-se de entradas em casinos. Com o auxílio dos Jogadores Anónimos, fez o mesmo em todas as plataformas de jogo online.
“Com o meu nível de desespero e com a consciência que tinha, era a única coisa que eu achava que me podia ajudar.”
Os últimos dados do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (SICAD), aqueles que o Governo usa para definir políticas públicas, ainda não sinalizam uma mudança estrutural no “jogador-tipo” nacional. Nem um aumento substancial de jogadores.
Pedro Hubert não sabe dizer o “porquê”, mas suspeita de algum “erro”. “Tudo aponta no sentido contrário. Vejo a faturação da indústria do jogo a aumentar, o número de pessoas nos sites a aumentar todos os anos. No IAJ, cada vez mais pedidos de consultas, mais pessoas nos Jogadores Anónimos. Acho muito estranho. Deve ter havido algum problema na metodologia. Eu acho que há um aumento”, afirma.
A Santa Casa da Misericórdia tem uma Linha de Apoio ao Jogo Responsável , em parceria com o IAJ. Dados cedidos à Renascença indicam que, entre 2023 e 2024, houve um aumento da proporção de utentes que reportam problemas (exclusivamente) com o jogo online: passou de 38 (39,58% do total de pedidos) para 63 contactos (48,09%).
O estudo “Blindgame: as atividades de jogo de azar ‘online’ dos jovens portugueses”, publicado em janeiro de 2024, sinaliza que as apostas online são cada vez mais comuns entre os jovens.
De uma amostra de 2028 jovens portugueses, com idades entre os 15 e os 34 anos, 1371 (67,6%) assumiram já ter apostado dinheiro em algum jogo de azar. Destes, 100 (7,3%) admitiram gastar mais de 100 euros por mês e 24 (1,8%) confessaram mesmo ultrapassar a fasquia dos 250 euros.
Entre os inquiridos, as apostas desportivas online apareceram como a forma de jogo mais popular: 13,5% assumiram apostar todos os meses, 17,8% todas as semanas e 8,1% fazer “apostas diárias ou mesmo várias vezes ao dia”.
Ana Rita Farias, autora principal do estudo e professora na Universidade Lusófona, nota que a amostra do estudo – recolhida pela GFK – “tem uma limitação”. “Foi muito, muito difícil conseguir inquiridos abaixo dos 18 anos.” Por lei, os menores não podem apostar. Isso não quer dizer, contudo, que não o façam. Nem que não sejam expostos a esse universo.
A ideia do estudo surgiu-lhe durante a pandemia, enquanto dava aulas à noite. Ana, cujo principal objeto de investigação é o comportamento online dos jovens, cruzou-se, então, com a plataforma de streaming Twitch e um fenómeno: influencers a “jogarem slots, casino online” nas plataformas licenciadas em Portugal e a transmitirem em direto.
Estava a ser criado “um mercado, muito, muito complexo”. “Havia mais propostas deste género e havia um plano de marketing alicerçado nisso. A receita perfeita para haver um boom de usuários”, pensou.
E foi isso que, efetivamente, aconteceu. Houve uma evolução quase “exponencial” no volume de jogo online em Portugal. Em 2019, no quarto trimestre do ano, o setor faturou 64,8 milhões de euros. Em 2020, no mesmo intervalo, já havia escalado para 113,2 milhões de euros. E desde então não abrandou.
No último trimestre de 2024, os portugueses gastaram 266,3 milhões de euros em apostas online.“A ideia de que [após a pandemia] muitas das apostas que se perpetuavam no Placard ou em soluções mais clássicas foram permutadas para soluções online é algo que não é completamente desprovido de sustento. É alicerçado nos números”, afirma Ana Rita Farias.
A investigadora defende, ainda assim, que é errado colocar a culpa “no tecnológico”, nas plataformas (legais) e mecanismos de transferência de fundos.
“É confundir um bocadinho as coisas. Os meios são ótimos para que nós, sem sair de casa, assinemos um documento digitalmente. E se não fosse possível isso seria muito mais complexo. Obviamente também nos permitem aceder a comprar coisas mais facilmente. Também nos permitem a ir a casinos online. Não é o meio que vamos culpar”, diz.
Em 2025, é praticamente impossível navegar pela internet, ver televisão ou folhear um jornal sem passar por anúncios, quer dos tradicionais jogos da Santa Casa da Misericórdia, quer das plataformas de jogo online.
Para muitos “jogadores em recuperação”, a disseminação deste tipo de gatilhos não é um problema. “Nunca fui jogar por causa de um anúncio. Muitas vezes vejo, aparece-me. Muitas vezes até me rio. Aquilo não me engana. O anúncio não me puxa para ir jogar”, diz Dinis.
Mas para outros, como Vasco, é diferente. O jovem lisboeta – que já faz planos de voltar à universidade e ao futebol federado – diz que os jogos de azar são hoje omnipresentes. Recentemente, comprou uma camisola do Benfica e reparou: “Tem o símbolo da Betano”. “A nossa Liga [de futebol] é a Betclic”, aponta ainda. “Quando estou a ver televisão com a minha avó, um jogo, no intervalo passam quinze anúncios de apostas. É respirar fundo.”
“Tinha conta na XBET, um site ilegal. Eu excluía-me das mensagens, mas eles continuavam a enviar”, conta Vasco.
Os anúncios constantes fazem-no sentir “um pouco ansioso, impotente”. Mas falar sobre isso, ajuda. “Até chegar ao grupo [dos Jogadores Anónimos], não me lembro de dizer eu sinto isto ou sinto aquilo, de expressar os meus sentimentos.”
No universo online, o mecanismo de autoexclusão funciona muito bem nas plataformas licenciadas, mas não nas ilegais. “Tinha conta na XBET, um site ilegal. Eu excluía-me das mensagens, mas eles continuavam a enviar.” Nas redes sociais, é “fácil”, basta “sinalizar” os anúncios algumas vezes e “deixam de aparecer”.
No dia-a-dia, porém, é impossível “bloquear” o gatilho do jogo. Ou esquecer de todo a compulsão.
Dinis ainda há dois meses foi ver o jogo Sporting-Braga (a despedida de Rúben Amorim) com uns amigos que “metem umas apostas”. E, estando o Sporting a perder por 2-0, eles decidiram apostar na reviravolta. “O meu pensamento foi: nem que ganhasse mil euros com isto. Não quero saber”, conta.
O futuro médico, cuja tese de mestrado irá focar-se no “jogo patológico”, sabe que não é caso único. Tem três amigos que “têm ainda mais compulsão para o jogo” do que ele alguma vez teve. “E eu tive muita.” “Ainda não está na altura deles. Ainda não reconhecem que têm um problema. Eu, de fora, é muito fácil reconhecer, principalmente tendo o mesmo problema. Eles acham que não têm”, conta.
Dos três, o primeiro deve dinheiro a “casas de apostas ilegais, agiotas”. O segundo, no espaço de um mês, já lhe perguntou três vezes o que tem de fazer para pedir autoexclusão “de tudo”. E o terceiro, ainda há dias, pediu-lhe dinheiro emprestado. “Não tinha luz em casa.”