21 fev, 2025 - 09:30 • Teresa Almeida , João Malheiro
Cerca de 66 crianças e jovens sofrem de violência doméstica por semana, segundo dados da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).
Numa entrevista à Renascença, Carla Ferreira, da APAV, refere que atendeu mais 12.500 chamadas do que em 2023, no ano passado.
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Os dados da APAV relativos a 2024, surgem na véspera do Dia Europeu da Vítima de Crime, e revelam que a violência doméstica continua a ser o crime mais prevalecente, representando 76% do total, seguindo-se os crimes sexuais contra crianças e jovens e ofensas à integridade física.
O ano passado, a APAV apoiou diretamente mais de 16 mil pessoas - somando um total de mais de 31 mil crimes e outras formas de violência. Atendeu uma média de 45 vítimas por dia.
Durante 2024, atendeu em média 177 mulheres adultas, 66 crianças e jovens, 36 homens adultos e 33 pessoas idosas.
Na entrevista à Renascença, Carla Ferreira analisa os números ao detalhe.
O que salta à vista neste estudo?
Bem, salta à vista um aumento nos principais parâmetros que a APAV costuma dar destaque, nomeadamente, o número de vítimas que apoiamos.
Também os crimes que registámos e o atendimento das intervenções que realizamos junto das pessoas que nos procuraram, que todos eles sofreram aqui um aumento, em média em 2024.
Alguma razão específica?
Naturalmente, quando temos um aumento no número de vítimas, é expectável que tenhamos um aumento nos outros dois campos - nos atendimentos e nos crimes.
Mas, de facto, aqui há maior sensibilidade e há maior atenção às necessidades e aos direitos das vítimas. Tem sido, certamente, uma das explicações, muito embora não seja possível traçar aqui uma correlação também com um eventual efetivo aumento da criminalidade, porque, como sabemos, estamos a falar aqui de uma violência que é subreportada.
Até porque, olhando, temos aqui uma grande presença da violência em contexto familiar que, por variadíssimas razões, é muitas vezes não reportada e não denunciada pelas pessoas que são vítimas e por quem conhece as situações.
Podemos estar a falar do aumento da atenção destes crimes, mas não um aumento do crime em si?
Não podemos ter essa certeza, mas isso também não nos deve descansar, porque nós não temos um estudo nacional que nos permita ter uma noção real da criminalidade que pode estar a acontecer, para além da criminalidade reportada às autoridades.
Portanto, não é possível também excluir a possibilidade de estar a haver aqui um aumento efetivo da criminalidade que acontece, para além da que é reportada.
No caso das crianças, o que é que está a acontecer? Há maior indicação do número de casos que chegam ou estão mesmo a aumentar também?
A linha de pensamento é a mesma, porque estamos a falar do mesmo tipo de criminalidade. Não nos podemos esquecer que as cerca de 66 crianças que acompanhamos por semana em 2024, a maior parte delas e uma larga maioria, foi vítima dentro de portas, pelos pais ou pelas mães.
E isto, obviamente, deve preocupar-nos. Ao contrário daquilo que idealizamos e que gostaríamos que acontecesse.
A casa não é um lugar seguro para muitas crianças e este aumento significativo no número de pedidos de ajuda que recebe relativamente a crianças deve, sem dúvida, merecer uma enorme reflexão e preocupação de todos nós enquanto sociedade.
Até porque a relação dessas crianças com a pessoa agressora tem a ver com o pai e a mãe, na maioria.
Exatamente, e as que não são pai e mãe, são também padrastos, madrastas, avós, irmãos, irmãs, tios. Portanto, há, normalmente, uma relação de proximidade, familiaridade e de confiança entre as crianças que são vítimas e as pessoas que praticam estes crimes.
E isto é válido, quer no contexto de violência doméstica, quer também, sobretudo, e falando aqui também de crimes sexuais contra crianças e jovens, é claramente o foco. Normalmente, estamos a falar de cerca de 90% das crianças serem vítima de quem conhece.
Ou seja, não estamos a falar aqui do desconhecido. Estamos a falar, muitas vezes, de pessoas com quem a criança está diariamente e no seu quotidiano.
No caso das crianças, houve um crescimento em relação a 2023?
Sim. Ou seja, em 2023, tínhamos apoiado 3.066 crianças, o que leva a que uma média de 59 crianças por semana.
Em 2024, passamos para 3.424, o que dá aqui uma média de 66 por semana. Estamos a falar de mais de sete crianças por semana, apoiadas em 2024.
No caso da violência doméstica, o aumento também é significativo em relação a 2023?
É relativamente próximo em termos de peso global. Nos crimes reportados pela APAV, estamos a falar mais ou menos de três em cada quatro crimes que nós reportamos.
São crimes de violência doméstica nas suas múltiplas formas e vertentes da violência e com os seus múltiplos intervenientes.
Quando passamos para a parte distrital destes crimes, quando falamos na violência, no abuso sexual de crianças, vemos o Porto em primeiro lugar. Mas depois, quando falamos em violência doméstica, está Faro. Como é que se avaliam estes valores?
Primeiro, estamos a falar de dois distritos com uma grande densidade populacional. Depois, também aqui o facto de, por exemplo, em Faro, a APAV ter uma rede muito extensa presente em todo o distrito, o que acaba por, de alguma forma, cobrir muitas zonas que até então não eram geograficamente acessíveis em termos de serviços de apoio.
Por outro lado, no distrito do Porto nós temos aqui uma maior dispersão de serviços de apoio, além dos que são os serviços da APAV, o que acaba também por levar a esta maior dispersão no número de pedidos de ajuda às vítimas. Tem mais mecanismos e mais estruturas junto das quais podem pedir apoio.
Muito embora isto sejam oscilações que vamos tendo ao longo do tempo e que vão variando diante de um conjunto diverso de fatores.
O ideal seria o crescimento do número de gabinetes de apoio da APAV? Para que a situação fosse mais vista e revista no terreno?
A APAV deseja sempre chegar mais perto das pessoas. Ainda assim, e ainda considerando os serviços que neste momento temos, nós chegamos a pessoas que residem em cerca de 93% dos municípios do território de Portugal continental e região autónomas, o que é muito significativo.
Mas não nos podemos esquecer que a está a zona do interior do país, sem dúvida, quer no interior, norte e centro, quer também a zona do Alentejo, onde a APAV tem muito poucas respostas.
E sem dúvida que a violência e as vítimas de crime merecem essa atenção ao nível das políticas públicas.
Para além da violência doméstica e dos crimes sexuais contra crianças, há algum outro crime que esteja a crescer, também de forma significativa?
Sim, tivemos aqui um crescimento significativo nos pedidos de ajuda para as situações de discriminação, incitamento ao ódio e à violência. Em 2023 tínhamos recebido 197 crimes registados nesta categoria e no ano passado tivemos 307.
Portanto, é uma subida muito significativa, eu diria quase 50% em números redondos, e que também deve fazer nos refletir nos motivos que estão associados a este crescimento.
Ou seja, este crime cresceu quase 50%, o que significa que está a aumentar.
Sem dúvida. E nós temos depois, muitas vezes, essas situações de discriminação associadas a outras formas de violência. Quer seja, por exemplo, situações de ofensa à integridade física, de crimes mais gravosos, nomeadamente de homicídios e homicídios na forma tentada, quer de ameaças.
É importante dizer que esta discriminação, normalmente, não aparece sozinha, aparece muitas vezes acoplada a outras formas de criminalidade que afetam as vítimas que nos procuram.
Esta discriminação tem haver com imigração?
Sim, estamos a falar de, essencialmente, aquilo que se chamam os crimes de ódio. Portanto, estamos a falar aqui de pessoas que, por exemplo, são migrantes ou têm uma diferente origem étnica, racial, de diferentes religiões e que, de alguma forma, por esses motivos, são vítimas de uma panóplia de situações de discriminação e de crimes que podem ter aqui motivos discriminatórios.
Em que zonas do país é que são maioritários estes crimes?
Nós acabamos por não ter aqui um grande destaque em nenhum dos distritos, naquilo que nós consideramos o top 3 de crimes por distrito.
Mas temos tido, sem dúvida, muitos pedidos de ajuda também nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo, Setúbal também e, obviamente, o Porto também pelas questões que têm a ver com a densidade populacional.
Alguma nota final?
Temos um grande número de pedidos de ajuda a chegar para acompanhar as vítimas em diligências processuais, que era algo que não era tão comum.
Antigamente, tínhamos, a APAV a solicitar aos tribunais a especial atenção para as vítimas poderem ser acompanhadas nestas diligências.
Neste momento quase que se inverteu aqui o ónus e temos proativamente os serviços dos tribunais e da Justiça a pedirem que a APAV acompanhe as vítimas nas diligências processuais e, desta forma, também torne este momento, que é sempre tão penoso e tão difícil para as vítimas, um pouco mais confortável e também um destaque do dos nossos dados de 2024.
Para que as vítimas possam prestar declarações de uma forma acompanhada, informada e apoiada em todo este processo.