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Saúde

"Conflito de interesses", "serviços desviados" e estudos "à medida". Oposições rejeitam hospitais nas Misericórdias

26 fev, 2025 - 09:00 • Miguel Marques Ribeiro

Misericórdia de Santo Tirso diz que vai tomar conta do hospital a 1 de abril, mas Ministério da Saúde ainda não tem pronto o estudo prévio. Em São João da Madeira, Bloco de Esquerda questiona a ministra da Saúde sobre um eventual conflito de interesses do ministro da Coesão Territorial e teme que haja valências do hospital a serem transferidas para Ovar.

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O Ministério da Saúde faz depender a transferência de hospitais públicos para as Misericórdias dos resultados de estudos prévios que ainda estão por realizar, mas em Santo Tirso a Misericórdia já anunciou a data de 1 de abril para tomar posse, o que leva o autarca local, Alberto Costa (PS), a falar de “estudos à medida”, encomendados para “justificar a decisão que já está tomada antes”.

Esta é apenas uma das muitas críticas que o processo está a desencadear nos partidos da oposição, depois de em dezembro o Governo ter anunciado o plano de passar os hospitais de Santo Tirso e de São João da Madeira para a alçada do setor social.

Em resposta por escrito a pedidos de esclarecimento da Renascença, o Ministério da Saúde explicou que a “intenção política (…) depende da análise que está em curso” e só “ocorrerá após a entrega e avaliação” de um “estudo prévio (…) envolvendo uma análise custo benefício”.

“Estes estudos”, acrescenta o gabinete de Ana Paula Martins, “serão realizados por um grupo de trabalho, nomeado para o efeito e composto por representantes do Ministério da Saúde, da ACSS, das Unidades Locais de Saúde envolvidas, da Direção Executiva do SNS e das Misericórdias em causa”.

No entanto, na semana passada, a Santa Casa de Santo Tirso fez uma publicação nas redes sociais em que anunciou que está “prevista a efetivação da transferência da gestão do Hospital Conde S. Bento para a Misericórdia de Santo Tirso a 1 de abril".

A informação não é propriamente nova, pois já tinha sido divulgada no início do mês aos trabalhadores, numa nota interna do Conselho de Administração da ULS do Médio Ave, mas esta é a primeira vez que um interveniente direto no processo reconhece publicamente que a decisão é entendida como estando tomada, numa fase em que as análises anunciadas pelo executivo ainda não estão concluídas.

No mesmo comunicado, a Santa Casa explica que a "gestão transitará para esta Misericórdia, sob a tutela do Governo" e que a unidade "continuará a integrar o Serviço Nacional de Saúde".

Outras garantias dadas pelos responsáveis prendem-se com os trabalhadores. A Misericórdia afirma que não estão "em causa despedimentos" e que os profissionais manterão o seu "estatuto", "regalias" e "direitos".

Não é possível, a esta data, dar resposta definitiva (...) por não estarem concluídos os respetivos estudos prévios" - Ministério da Saúde

Contactados pela Renascença, os responsáveis da instituição de Santo Tirso escusaram-se a acrescentar mais pormenores, adiantando apenas que o “processo de negociações mantém-se em curso”.

O Ministério da Saúde, por seu turno, declarou, face a novo pedido de esclarecimentos, que "sem prejuízo da concretização da intenção referida [de transferir o hospital de Santo Tirso a 1 de abril] não é possível, a esta data, dar resposta definitiva (...) por não estarem concluídos os respetivos estudos prévios".

A Santa Casa de São João da Madeira também é parca em informações, confirmando apenas, por escrito, estar a desenvolver "um processo negocial que garanta a permanência do hospital local no Serviço Nacional de Saúde, a qualificação das suas operações, e que acautele os direitos dos trabalhadores".

BE denuncia desvio de valências. USF fala em "reafetação" de serviços

A intenção de entregar os dois hospitais às Misericórdias foi mal recebida pelos autarcas socialistas de São João da Madeira e de Santo Tirso. Este último entregou mesmo uma carta aberta à ministra da Saúde, com críticas ao silêncio da tutela sobre o processo. À Renascença, Alberto Costa fala de uma medida "estranha" e "incompreensível", onde persiste uma "panóplia grande de questões por esclarecer".

Em São João da Madeira, o Bloco de Esquerda também tomou posição. O partido denunciou o que considera serem "serviços desviados" para o hospital de Ovar, com a finalidade — "premeditada e deliberada" — de "reduzir a produtividade e serviços do hospital de S. João da Madeira", de forma a preparar terreno para a sua transferência para a Misericórdia.

Numa pergunta enviada à ministra da Saúde na semana passada, a deputada Marisa Matias critica o encerramento, a partir de 1 de março, de toda a atividade cirúrgica de otorrinolaringologia e de "sessões operatórias habitualmente previstas nos mapas" de oftalmologia.

Contactada pela Renascença, a administração da ULS do Entre Douro e Vouga (ULSEDV) desmente a existência de um "encerramento de atividade cirúrgica ou de consultas no hospital de São João da Madeira" e justifica a "reafetação" de serviços com a abertura, em novembro, de um novo bloco operatório no hospital de Ovar.

A mesma fonte lembra que esta unidade passou a fazer parte do Entre Douro e Vouga, em outubro de 2024, e que 15% dos utentes globais da ULS são oriundos daquele concelho.

Conflito de interesses de Castro Almeida? Ministro rejeita

Os bloquistas apresentaram ainda um segundo requerimento na Assembleia da República, em que questionam a ministra da Saúde sobre um eventual conflito de interesses do ministro da Coesão Territorial, que desempenhou funções na Misericórdia de São João da Madeira nos últimos anos, entre as quais a de presidente da Assembleia Geral entre 2021 e 2024.

Numa pergunta dirigida por Marisa Matias à ministra da Saúde e a cujo conteúdo a Renascença teve acesso, a deputada sublinha que "o Governo preparou, já durante o ano de 2024, o acordo genérico que assinou com a União de Misericórdias" e que nesse mesmo ano Manuel Castro Almeida "integrava os órgãos sociais da Santa Casa da Misericórdia de São João da Madeira".

As dúvidas lançadas pelo Bloco recuperam críticas feitas em 2015, quando foi feita a primeira tentativa de passagem do hospital de São João da Madeira para a Misericórdia local.

"Já em 2015, havia um conflito de interesses com a mesma pessoa, em funções muito parecidas — simultaneamente no Governo que dá o hospital e na entidade que procura receber o hospital", declara Moisés Ferreira, da distrital de Aveiro do BE.

Questionado pela Renascença, o gabinete do governante rejeitou qualquer conflito de interesses. "Como ministro Adjunto e da Coesão Territorial [Castro Almeida] não teve, nem tem, qualquer intervenção na eventual transferência do hospital de São João da Madeira para a Santa Casa da Misericórdia."

As respostas, enviadas por escrito, clarificam ainda que o ministro se desvinculou da instituição antes de tomar posse: "Desde 30 de março de 2024 que o ministro não tem qualquer cargo ou exerce qualquer função na Santa Casa da Misericórdia de São João da Madeira."

Transferência ou devolução?

A história da transferência de hospitais para as Misericórdias é antiga e cruza-se com a revolução de 1974. Após o 25 de Abril, e estando em marcha a criação do Sistema Nacional de Saúde (SNS), “os hospitais das Misericórdias foram nacionalizados e integrados” na rede pública, lembra Pedro Pita Barros, investigador de Economia da Saúde na Nova SBE.

A intenção do atual Governo recupera a iniciativa legislativa de 2013, quando surgiu “um movimento para devolver à gestão das Misericórdias os hospitais que antes eram geridos por elas”, explica o professor.

De um grupo de cinco hospitais que deveriam ter sido entregues às Misericórdias em 2015, por decisão governamental, dois (precisamente o de Santo Tirso e o de São João da Madeira) ficaram pelo caminho, um revés que trouxe “prejuízos financeiros” e abalou a “confiança” das Misericórdias no Estado, considerou, na altura, o presidente da União das Misericórdias Portuguesas (UMP), Manuel Lemos.

Em sentido contrário, os hospitais de Fafe, Anadia e Serpa passaram a ser geridos por estas instituições. Foi “a chamada devolução, mas que foi sobretudo uma transferência da propriedade de gestão, mantendo-os dentro do Serviço Nacional de Saúde, através de acordos de cooperação”, explica o professor.

Uma posição "agnóstica" devido à ausência de estudos

A eventual ausência de dados técnicos que fundamentem a transferência destes bens públicos não se aplica só aos dois hospitais atualmente em equação. Pedro Pita Barros alerta para o facto de, até à data, não ter sido divulgado publicamente qualquer relatório sobre os resultados obtidos pelo lote anterior de hospitais transferidos para as Misericórdias em 2015, em moldes que o Governo pretende agora replicar.

Tenho uma posição agnóstica neste momento. Não posso dizer que sou contra, não posso dizer que sou a favor" - Pedro Pita Barros, investigador da Nova SBE

“Neste processo era importante conhecer com mais detalhe o que é que foi a experiência das devoluções feitas há cerca de uma década. Perceber que resultados é que deu. Seria importante para a tomada de decisão agora. Se não, estamos a cair numa decisão que é puramente ideológica e não numa lógica do que é melhor para o cidadão”, alerta o investigador.

Em causa, estão os mecanismos de acompanhamento que estavam previstos nos acordos que foram feitos com as Misericórdias há dez anos, no final da governação de Pedro Passos Coelho, e cujos resultados não são conhecidos publicamente.

“Tenho uma posição agnóstica neste momento. Não posso dizer que sou contra, porque pode ter resultado. Não posso dizer que sou a favor, porque não sei se resultou bem”, afirma o professor da Nova SBE.

Decisão do Governo pode "carecer de um suporte jurídico"

Além da ausência de estudos sobre as experiências passadas, pode estar em causa a fundamentação jurídica do processo. Em 2016, quando o Governo de então, liderado por António Costa, decidiu fazer marcha atrás na entrega dos hospitais de Santo Tirso e São João da Madeira, Adalberto Campos Fernandes era ministro da Saúde.

À Renascença, o ex-governante recorda que foi pedida uma "avaliação do enquadramento jurídico" que estava previsto e que esta "foi no sentido de que os hospitais deviam permanecer na esfera pública".

A decisão que o Governo está a está a tomar carece de um suporte jurídico, um suporte legal? Sim ou não? Eu admito que careça." - Adalberto Campos Fernandes

Campos Fernandes vai mais longe e afirma que o decreto-lei de 2013 pode não ser suficiente para dar respaldo jurídico à mudança anunciada pelo Governo. "Pode haver efetivamente limitações na aplicação da lei. Os decretos-leis de enquadramento não são perfeitos."

Assim, defende que há a necessidade de reforçar esta alteração em termos legais. "A decisão que o Governo está a tomar carece de um suporte jurídico, um suporte legal? Sim ou não? Eu admito que careça", declarou.

O antigo governante sublinha, porém, que não tem uma posição de princípio contra a entrega destes equipamentos às Misericórdias: "Não vejo inconveniente numa maior relevância, uma maior importância do setor social", esclarece.

"Angústia" e "falta de transparência"

O anúncio de Luís Montenegro foi feito a 12 de dezembro, durante a sessão pública de assinatura de um protocolo com a União das Misericórdias Portuguesas para a área da Saúde. Desde então, os profissionais do hospital de São João da Madeira continuam à espera que o Governo preste esclarecimentos. “Há uma falta de transparência enorme”, desabafa Fernanda Lopes, enfermeira-gestora na unidade de psiquiatria e dirigente do Sindicato de Enfermeiros do Norte.

É um tema que está presente na nossa cabeça desde a hora em que entramos no nosso trabalho, no nosso serviço, até sai.r" - Fernanda Lopes, enfermeira-gestora

Desde o anúncio governamental que pelos corredores do hospital não se fala de outra coisa. “É um tema que está presente na nossa cabeça desde a hora que a gente entra no nosso trabalho, no nosso serviço, até sair. São vivências que as pessoas estão a sentir, sentem-se muito desestabilizadas, porque não há informações”.

Fernanda afirma que existe “medo” e “angústia” devido à incerteza que foi criada. “Os profissionais de saúde não têm informações formais de como é que as coisas vão ser feitas, se têm de fazer ou não opções, se têm ou não de fazer mobilidade de serviço”. Até ao momento, tudo o que sabem chegou-lhes através da comunicação social.

No hospital, que integra a USF de Entre Douro e Vouga, funcionam serviços “que são importantíssimos” e que a enfermeira teme que possam ser postos em causa com a mudança anunciada. As valências de psiquiatria, de oncologia e do serviço de cirurgia de ambulatório têm “uma movimentação de doentes enorme”, assegura.

Segundo dados divulgados pelo Bloco de Esquerda, o hospital realizou 75% da cirurgia de ambulatório de toda a ULSEDV em 2024, mais concretamente 13.300 cirurgias a cerca de 11.000 doentes. Uma evolução relevante quando comparado com 2015, quando foram operados 3600.

Críticas à redução de custos

Mais a norte, em Santo Tirso, foi criada uma força de oposição à mudança do hospital para as mãos da Santa Casa. O porta-voz do Movimento de Utentes do hospital local critica o corte de despesas (previsto no Decreto-Lei n.º 138/2013) que a Misericórdia local terá de aplicar para assumir o controlo da unidade de saúde.

“Em vez de investirem na criação de mais postos de trabalho, porque há carências nos hospitais, o objetivo é a redução de cerca de 25% dos custos com o hospital”, declara.

Em 2015 tentaram privatizá-lo, não conseguiram. A luta valeu a pena e vamos continuar a lutar." - Rodrigo Azevedo, do movimento de utentes do hospital de Santo Tirso

Rodrigo Azevedo, que é também militante do Partido Comunista, sublinha que a existência de um hospital público é fundamental para dar resposta às necessidades de uma população cada vez mais envelhecida e que vive, na sua maioria, com o salário mínimo ou de baixas reformas.

A 8 de fevereiro, o movimento reuniu quase 200 pessoas num protesto realizado em frente ao hospital pertencente à USF do Médio Ave. “Em 2015 tentaram privatizá-lo, não conseguiram. A luta valeu a pena e vamos continuar a lutar”, garante.

“Já marcamos uma reunião para o dia 1 de março, aberta a todas as pessoas que queiram participar. As pessoas manifestaram muito interesse nisso e vamos inclusive depois fazer um desfile ou um cordão humano para o dia 15 de março”.

"Não há sinais" de privatização do SNS

Apesar de a decisão do Governo beneficiar o setor social, Pedro Pita Barros não vê "sinais" de que "este passo possa representar um início da privatização do SNS”.

Diferente seria, por exemplo, se o executivo decidisse transferir para uma gestão privada uma fatia significativa dos hospitais existentes no país, nomeadamente aqueles que pertencem às áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.

"Passarão a ter uma gestão diferente e não será uma lógica de privatização" - Pedro Pita Barros, investigador da Nova SBE

”Aí sim, acho que poderia colocar essa questão, de estarmos a desestruturar em pontos essenciais a rede do Serviço Nacional de Saúde enquanto prestadora de cuidados de saúde". Dada a dimensão dos hospitais de São João da Madeira e de Santo Tirso, eles "servirão de pontes de rede que passarão a ter uma gestão diferente e não será uma lógica de privatização”, argumenta.

No entanto, sobre o acordo agora celebrado e que foi considerado “histórico” pela União das Misericórdias Portuguesas, Pita Barros considera ser prioritário que se esclareçam algumas matérias. “Nós não sabemos exatamente qual é o modelo que vai ser usado, se vai ser usado um modelo de concessionar a gestão, se vai ser o modelo de cooperação, que já estava previsto anteriormente, em que a própria propriedade volta para as Misericórdias e contrata-se com elas a prestação de serviços”.

Para o especialista, mais do que aproveitar esta iniciativa do Governo para debater se o SNS deve ser público ou privado, o importante é garantir que existe "um contrato que seja bastante claro naquilo que é esperado de ambos os lados".

“Não há uma regra geral de que é sempre pior ou sempre melhor, por ser público, por ser privado com fins lucrativos, ou privado sem fins lucrativos", garante. "Encontramos experiências boas e más em todas as configurações”.

O destino dos investimentos realizados

Em aberto, está também a tomada de decisões sobre os investimentos públicos realizados ou já programados para estes equipamentos. No caso específico de Santo Tirso, o presidente da autarquia lembra que foram gastos mais de cinco milhões de euros na nova unidade de saúde mental e em obras de manutenção e melhoramento.

A ter em conta há ainda investimentos até final do ano no valor de cerca de dois milhões de euros. "O que é que vai acontecer? Esse investimento vai avançar? Não vai avançar?", questiona Alberto Costa.

Para já, o ministério de Ana Paula Martins garante que não existem mais unidades de saúde em equação para entregar às Misericórdias. A decisão sobre essa matéria caberá sempre, assegura, a grupos de trabalhos semelhantes aos que estão a avaliar a transferência de Santo Tirso e de São João Madeira e cujas conclusões permanecem, para já, no segredo dos gabinetes.

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